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Roberto Sadovski

REPORTAGEM

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Alvy Ray, fundador da Pixar: "O inventor do cinema não é quem você imagina"

Alvy Ray Smith, cofundador do estúdio de animação Pixar - Reprodução
Alvy Ray Smith, cofundador do estúdio de animação Pixar Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

03/03/2021 05h11

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"Quem inventou o cinema?" A pergunta de Alvy Ray Smith me pega de surpresa. A resposta, ao menos em meu próprio HD, parece óbvia. "Os irmãos Lumiére...", respondo, hesitante, esperando a pegadinha. "Essa é uma das três respostas mais populares", continua Ray. "Mas ela não é inteiramente verdadeira."

Faz sentido. Ao longo de toda sua carreira, este engenheiro elétrico, depois PhD em ciência da computação, procurou as verdades e os erros na área à qual dedicou sua vida: a criação de gráficos em computadores. O resultado é "A Biography of the Pixel" (ou "Uma Biografia do Pixel"), livro programado para agosto, em que Alvy Ray explora como o bit se tornou linguagem universal e o pixel, matéria-prima de toda imagem no planeta, a base da mídia moderna - consequentemente, de nossa memória.

Ao longo de uma década, Alvy Ray mergulhou em uma pesquisa extensa para descobrir, em suas próprias palavras, "quem de fato fez cada coisa e quando elas aconteceram". "Não que eu tenha sentado direto por uma década!", brinca. "Mas foi uma pesquisa que precisou ser desprovida de ego, já que em minha arrogância eu achava que sabia como poucos a história dos gráficos de computador."

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Ed Catmull, Alvy Ray Smith e o cientista Loren Carpenter nos primórdios da Pixar
Imagem: Reprodução

Se Ray sabia, ou achava que sabia, era por observação e prática: sua trajetória profissional confunde-se com a própria história que ele se propôs a relatar. Já no começo de sua carreira, experimentando com novos computadores capazes de realizar sua visão, ele buscou combinar tecnologia e arte. Para isso, dividia os laboratórios com uma empresa de animação tradicional. Era uma expressão artística que pouco evoluíra desde o estouro de "Branca de Neve e os Sete Anões" no final dos anos 1930.

Nessa época Ray, convidado como palestrante em fevereiro na conferência VXF RIO, que segue online no próximo dia 21 de março, já experimentava a criação de imagens geradas por computador. Na prática, ele foi a pessoa que ensinou o computador a pintar. "Eu comecei a trabalhar com esse programa de pintura digital porque eu criava com tinta a óleo quando criança", explica. "Para mim foi natural pensar que era possível usar pixels coloridos como um programa de pintura."

Logo depois ele trabalhou no primeiro programa de pintura do mundo, na Xerox. Foi nessa época que Alvy conheceu o cientista de computador Ed Catmull, e os interesses passaram a convergir. "Logo percebermos que estávamos lidando não só com um programa de pintura", continua. "Mas sim com uma ferramenta para manipular uma imagem de diversas formas." O trabalho da dupla, ao lado de engenheiros e animadores, foi o embrião da Pixar, hoje uma das maiores potências de animação digital no mundo.

LEI DE MOORE

"Eu e Ed já sabíamos, quando nos juntamos nos anos 1970, que o futuro de nosso trabalho seria fazer filmes", lembra. "Era nosso instinto, mas também seguia a lógica da evolução da tecnologia, momentos de mudança em que os recursos dão um salto. A gente só precisava estar lá e perceber esse momento."

Alvy Ray se refere à Lei de Moore, princípio que crava que a tecnologia tem um avanço multiplicado por dez a cada cinco anos. "Essa relação era uma em 1965 quando fiz meu primeiro gráfico", ressalta. "Hoje ela é 100 bilhões de vezes mais avançada, em 2025 será um trilhão de vezes à frente do que era quando comecei."

Pura matemática e incerteza, já que as mudanças tecnológicas, segundo o engenheiro, não podem ser antecipadas, e sim experimentadas. "Tudo que hoje é bom em relação a computadores, como o preço baixo, a alta densidade, a velocidade e o tamanho, é 100 bilhões de vezes melhor do que quando eu comecei", continua. "Quando eu, Ed e o grupo que eventualmente se tornaria a Pixar se juntou, essa relação era de apenas mil vezes melhor. Mas em algum ponto a gente já sabia que as coisas ficariam insanas, bastava a gente seguir o fluxo. Fazer um filme fazia todo sentido!"

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George Lucas e Francis Ford Coppola: visionários dos anos 1970
Imagem: Reprodução

Alvy e Ed partiram, então, em busca de investidores na área do entretenimento - e viram portas se fechando como dominós. Inclusive na Disney, onde a dupla tinha certeza que sua visão do futuro seria recebida de braços abertos.

"Estávamos perdendo fé em nosso primeiro investidor, um milionário de Long Island que não tinha interesse por filmes", lembra. "Foi quando Francis Ford Coppola e George Lucas nos procuraram, já que eles buscavam as melhores pessoas que trabalhavam com tecnologia - e éramos nós!" Para a frustração de Ray, os cineastas não buscavam um caminho para tecnologia em produzir o conteúdo gráfico dos filmes: o interesse era sobre a tecnologia do hardware.

"Coppola e Lucas entendiam que Hollywood estava presa ao passado em relação a tecnologia e era o momento de investir em equipamentos eletrônicos, se não digitais", explica. "Francis usava o que hoje chamamos de vídeo de alta resolução para trabalhar com o material bruto de cada dia de filmagem. George, por sua vez, tinha interesse em migrar toda tecnologia. Substituímos a moviola por equipamento de edição digital. Fizemos o mesmo com material de áudio e com a impressora ótica. George já sabia, antes de todo mundo, que Hollywood tinha de ser digital."

O que não aconteceu, entretanto, foi a criação artística, ambição inicial de Alvy, compartilhada por Ed. Os dois eram vistos como gênios de hardware e software, mas não como artistas. A mudança começou lentamente no início dos anos 1980, quando Alvy produziu o "efeito gênese" para "Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan", quando o grupo estava na Industrial Light & Magic. A sequência, pioneira na animação digital para o cinema, mostrava um planeta sendo terraformado em segundos.

O salto veio anos depois, surgindo mais de uma provocação do que de um impulso criativo. "Existe esse evento chamado SIGGRAPH, que é uma conferência anual sobre computação gráfica, e é onde a gente se exibe para os colegas", brinca. "Estávamos voltando da reunião de 1983 e Ed disse que para o evento do ano seguinte a gente devia anunciar para o mundo que fazemos animação de personagens."

Imagens digitais até então começavam a ser usadas em publicidade, como logos flutuantes, e no cinema timidamente com veículos futuristas, como em "Tron". "No próprio avião eu comecei a desenhar os storyboards de "Andre & Wally B"", lembra. "Era nosso anúncio para o mundo que nós, a turma dos gráficos de computador, conseguimos animar personagens. Conseguimos mostrar que uma pilha de polígonos está viva e consciente. Sorri. Sente dor." O segredo, segundo Alvy, não era a tecnologia, e sim o animador: "Nessa época havíamos contratado John Lassater, e ele adicionou esse fragmento de magia à nossa tecnologia. Essa combinação mudou tudo".

"Andre e Wally B", que tem direção de Alvy Ray Smith, foi a fagulha que incendiou a revolução digital moderna, apresentando uma ferramenta que alterou profundamente a forma de fazer filmes. A Pixar finalmente tornou-se uma empresa independente em 1986, com investimento de um certo Steve Jobs. Uma discussão acalorada com o homem da Apple afastou Ray da empresa que ajudara a fundar. Mas não freou seu ímpeto criativo, e ele seguiu trabalhando para a evolução dos gráficos digitais, trabalho de ajudou a forrar suas paredes de diplomas e premiações.

É assim que ele segue observando o presente e imaginando o futuro. Mesmo com os avanços tecnológicos, uma constante estará sempre na equação: o fator humano. "Muita gente pergunta se vamos substituir os atores, e eu respondo obviamente que não", aponta, enfático. "Mas vamos substituir a aparência dos atores. Vamos colocar avatares na tela que serão totalmente convincentes. Só que eles precisam ser conduzidos por artistas, seja um ator, seja um animador. Eu não acho que existe diferença entre um ator e um animador. Um animador nos convence que uma pilha de polígonos está viva. Tem emoções. Tem alguma coisa em sua mente. Mas ainda não sabemos ensinar um computador a atuar."

Ele se lembra de ter o queixo derrubado quando assistiu a "O Curioso Caso de Benjamin Button", que David Fincher dirigiu em 2008. "Em duas ou três tomadas ali Brad Pitt não é Brad Pitt. É um avatar de Brad Pitt, que é conduzido pelo próprio Brad Pitt!", empolga-se. "É a chave: não temos como substituir o talento cênico dos Brad Pitts. Visualmente foi um assombro. Eu tenho o olho treinado para essas coisas e não percebi o avatar digital."

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O avatar de Brad Pitt em 'O Curioso Caso de Benjamin Button'
Imagem: Warner

Outro salto tecnológico espantoso foi a demonstração do Unreal Engine. "Costumávamos nos desafiar pensando quantos polígonos seriam necessários em nossos modelos para convencer um ser humano que ele estava olhando para o mundo real, e não sintético. Chegamos ao número de 8 milhões de polígonos por frame", explica. "Uma imagem com essa perfeição levava três dias para ficar pronta. Esses caras estavam usando ainda mais polígonos e criando um mundo sintético em tempo real. Sonhávamos com essa possibilidade e agora ela existe!"

O mundo assistiu a saltos hercúleos com a tecnologia digital. Do assassino de metal líquido em "O Exterminador do Futuro 2" aos dinossauros de "Jurassic Park", do mundo virtual de "Avatar" às histórias em quadrinhos traduzidas em pixels no Universo Cinematográfico Marvel. O futuro já chegou, mas está prestes a experimentar um novo salto.

"Uma das coisas que eu deixo bem clara no livro é, mais uma vez, a influência da Lei de Moore", explica. "O interessante é que, mesmo sabendo que as coisas estarão dez vezes melhores em cinco anos, eu não sei precisar o que isso significa." Alvy teoriza que os humanos não conseguem pensar além de sua ordem de grandeza. "Os gráficos de computador evoluíram exponencialmente, e em nenhuma das etapas eu pude prever o que aconteceria uma década depois", aponta. "A gente simplesmente descobre quando chegamos lá."

EXTRAPOLANDO O FUTURO

O que não o impede de especular. "Estou extrapolando, mas acredito que as chamadas realidades estendidas poder se tornar... reais", dispara, misterioso. Hoje Alvy presta consultoria para uma start up que trabalha com realidade virtual, criando animação de personagens para usuários de óculos VR. "É um mundo totalmente sintético", continua. "A realidade aumentada já usa esse mundo sintético, gráficos realistas sobrepostos para causar o efeito de movimento, mas não são integrados."

O passo seguinte, explica, é a realidade estendida. A tecnologia permite combinar o mundo sintético que existe no computador em três dimensões com o mundo real, extraindo imediatamente um modelo 3D dele. Esse novo modelo é misturado com o esqueleto sintético, criando um tipo de interação de objetos sólidos e virtuais, combinando luz, sombras e transparências, impactando em tempo real o ambiente. "O poder de processamento para isso é imenso, mas uma nova ordem de grandeza está chegando, e talvez seja isso que faremos com ela", conclui. "É o que eu acho que vai acontecer."

Assim um novo capítulo da "biografia do pixel" é escrito, tendo Alvy Ray Smith mais uma vez como observador ativo. "A verdade é que no fim das contas eu estava errado em relação a muitas coisas", admite com um suspiro. "Percebi que meus colegas também estavam errados, consequentemente o público também estava. O livro, espero, servirá como um farol."

Por falar em verdades, quem afinal inventou o cinema? "Ah, certo. As respostas mais populares são os irmãos Lumiére, Thomas Edison e o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge, pioneiro em fotografia em locomoção ainda no fim do século 19", explica, já passando uma nova rasteira. "No fim, não foi nenhum dos três. Todos contribuíram, mas a pessoa que teve mais trabalho foi William Kennedy-Laurie Dickson, e eu aposto que você nunca ouviu falar dele."

Meu silêncio é quebrado pela risada de Alvy Ray. "Dickson (que você vê no vídeo acima) trabalhava para Edison, e foi a pessoa que juntou todas as disciplinas e descobertas como o cinema que conhecemos hoje", encerra. "Nunca é uma pessoa só, mas sempre um grupo, e eu uso a genealogia para mostrar essa família e como eles trabalharam juntos. Ah, e Edison era um verdadeiro tirano ao lidar com Dickson! É uma boa história."