Luciana Bugni

Luciana Bugni

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

'Um Dia', na Netflix: frisson por personagens é viagem em busca de si mesmo

Quando David Nicholls lançou o livro "Um Dia", houve um frisson na minha geração, à época com 30 anos, que vivia com dúvidas reais entre casar e comprar uma bicicleta. A história se passa sempre nos dias 15 de julho de cada ano — desde 1988, quando os dois se conheceram na festa de formatura da faculdade. De lá até 2007, a personalidade dos dois, que viram melhores amigos, é descrita. O livro, lançado no Brasil em 2011, voltou com tudo aos temas das conversas após o lançamento da série inspirada na história, na Netflix.

Emma Morley é uma estudante de humanas, com ideais progressistas na Inglaterra do fim dos anos 80 e preocupações reais sobre como vai pagar o aluguel no mês seguinte. Dexter Mayhew é um rapaz rico e bonito, que não pensa muito no futuro, nem precisa, mas tem bom papo e se encanta pela garota. A construção dos personagens é conjunta. Apesar de completamente diferentes, Em e Dex são capazes de causar profundas transformações um no outro.

Isso explica um pouco do fascínio pela história. Todas nós somos um pouco Emma na faculdade, tentando se bastar e escoradas no olhar irônico para levar a vida de uma maneira mais leve e menos sofrida. A mulher que cresceu e teve sua personalidade moldada antes da última onda feminista, passou por poucas e boas na tentativa de entender quem era e quais humilhações precisava ou não passar. Emma só viveu isso antes.

Ambika Mod e Leo Woodall são Emma Morely e Dexter Mayhew na nova adaptação de 'Um Dia'
Ambika Mod e Leo Woodall são Emma Morely e Dexter Mayhew na nova adaptação de 'Um Dia' Imagem: Divulgação/Netflix

O quem tem de Emma em você?

No pacote desse jeito Emma de ser, está olhar a utopia do rapaz mais bonito do lugar e efetivamente não saber direito o que fazer quando é ele, seminu, que está deitado em sua cama. Até o empoderamento (será que dá para chamar assim?) de optar por não fazer nada, ou deixar o sexo para o dia seguinte e, assim, prendê-lo por mais algumas horas, parece uma saída de vanguarda para uma garota nos anos 80.

Mas, no fundo, é só uma moça usando as armas que a gente usa até hoje. "Nunca nenhum homem vai te tratar tão bem quanto aquele que quer transar com você pela primeira vez", disse a filósofa Yasmin Brunet no começo desse 2024. A frase nunca vai sair da minha cabeça.

O livro de Nicholls havia virado filme no mesmo 2011, quando os lindíssimos Anne Hathaway e Jim Sturgges protagonizaram a trama, resumida em quase duas horas. Ali, a tensão sexual é explorada nas voltas da nossa vida, que corre por vias aparentemente independentes. É possível viver uma história de amor sem concretizações sexuais? Parece que sim, suspiram as Emmas que conheço por aí. O amor está nas entrelinhas de dedicatórias de livros, de cartas beijadas com batom e o que mais fosse possível na bagunça que os anos 90 deixaram em nossos corações.

Visitar Em e Dex parece uma escapadinha nostálgica da vida adulta que levamos hoje. É bom dividir uma cama de solteiro com um desconhecido e pensar no que você gostaria de ser aos 40 anos? Eu olho o teto deitada em uma cama queen, aqui dos 40, e fico tentando buscar aquela Luciana jovenzinha que mora em alguma parte de mim (onde foi que guardei essa garota?). Ali, deve haver mais respostas do que a gente imagina.

Continua após a publicidade

Vidas Passadas, filme que concorre ao Oscar, trata um pouco do assunto. O que teria sido se não fosse diferente? Cada vez que revejo Emma, resgato um pouquinho outras "eus" em possibilidades que nunca serão contempladas. Emma sou eu, em um dia 15 de julho, vendo uma das minhas melhores amigas conhecer o amor de sua vida. Ou sou eu, anos depois, no mesmo dia 15 de julho, com um teste de gravidez positivo na mão, olhando o tapete de crochê de um lavabo. Histórias verídicas. Todo dia ordinário é aniversário de algo muito especial.

"Faça uma pausa, você que está lendo, e pense na grande corrente de ferro, de ouro, de espinhos ou flores que jamais o teria prendido não fosse o encadeamento do primeiro elo, em um dia memorável", diz Charles Dickens no texto que abre o livro e a série da Netflix.

Em e Dex, meus amigos há mais de 10 anos, seguem povoando a imaginação do que "poderia ser se não fosse". No fim, deitada na cama de solteiro da faculdade ou na cama queen da vida adulta, a máxima parece ser a mesma. A dúvida também — os casamentos e a bicicleta, que traçam o destino de outras Emmas no vai e vem de um roteiro que sabe-se lá quem escreveu. O negócio é viver um dia de cada vez. Eu recomendo lenços para a viagem.

Você pode discordar de mim no Instagram.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes