Flavia Guerra

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Opinião

'As 4 Filhas de Olfa': entre a revolução feminista e o Estado Islâmico

"As 4 Filhas de Olfa" é um desses filmes que não se parecem com nada e é difícil resumir a sinopse sem parecer um grande labirinto. Talvez seja exatamente essa a grande qualidade do filme da tunisiana Kaouther Ben Hania. Afinal, sua inventividade de formato e sua coragem temática fazem dele um filme único e universal.

Ao contar a história de drama, tragédia e até momentos engraçados da vida de Olfa Hamrouni e suas filhas, Kaouther trata não só do que é ser mulher na sociedade islâmica, mas em todo o mundo. Ainda que com gradações, que dependem da geografia, cultura, condição social, raça, religião, entre outros fatores, a condição feminina em todo o Planeta é submetida a regras castradoras, preconceitos, julgamentos morais, violências (por vezes físicas e verbais).

A condição implica ter muita força, perspicácia, coragem, humor, sororidade e curiosidade em descobrir o que de fato é ser e se perceber mulher, seja em que lugar for. É essa jornada que "As 4 Filhas de Olfa" propõe ao espectador (homem ou mulher).

Olfa vive com as duas filhas mais jovens, Eya Chikhaoui e Tayssir Chikhaoui, em uma casa simples, na Tunísia. Já as filhas mais velhas, Rahma Chikhaoui e Ghofrane Chikhaoui, aos 15 e 16 anos, respectivamente, foram seduzidas por ideias radicais, fugiram para Líbia e se casaram com líderes do Estado Islâmico.

As duas irmãs foram presas após o cerco contra líderes do EI na Líbia, onde estão até hoje. Raham e Ghofrane foram condenadas a 16 anos de prisão em 2023 e Fatma, filha de Ghofrane, hoje de 9 para 10 anos, cresce na prisão.

"As 4 Filhas de Olfa" investiga como jovens de uma família tunisiana enfrentam o machismo estrutural e lidam com o desejo de pertencimento
"As 4 Filhas de Olfa" investiga como jovens de uma família tunisiana enfrentam o machismo estrutural e lidam com o desejo de pertencimento Imagem: divulgação

Ao falar do destino das filhas mais velhas, Olfa afirma que há uma maldição em sua família, que faz com que as mulheres sejam violentas, pois ela teve uma infância repleta de abusos e violências (cresceu em uma família sem pai e precisou se brutalizar para defender a si, a sua mãe e suas irmãs). Na vida adulta, mais uma vez para sobreviver em uma sociedade em que rígidos códigos morais e sociais podem destruir a reputação e uma vida, tornou-se violenta com suas filhas.

Quando Ghofrane e Rahma foram presas, o caso se tornou um assunto nacional e a família de Olfa, uma família de personas non gratas no país. Os ciclos de violência, tanto os da esfera pública quanto os da privada, são repassados e repetidos de geração em geração, principalmente contra as mulheres. Entender como isso ocorre é o grande objetivo de "As 4 Filhas de Olfa".

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O que fez com que duas jovens tomassem este caminho?

As quatro filhas de Olfa não estão apartadas da História. Pertencentes a uma família humilde, as irmãs faziam parte da juventude que viu a Primavera Árabe sacudir o Norte da África e o Oriente Médio a partir de 2010/2011, quando, justamente na Tunísia, a revolução e o movimento contra o governo totalitário pediam mais educação, saúde, modernização e uma vida melhor, inclusive, para as mulheres.

Eya Chikhaoui e Tayssir Chikhaoui em cena de "As 4 Filhas de Olfa", que concorreu ao Oscar de Melhor Documentário 2024
Eya Chikhaoui e Tayssir Chikhaoui em cena de "As 4 Filhas de Olfa", que concorreu ao Oscar de Melhor Documentário 2024 Imagem: Divulgação

À medida que a revolução trazia abertura e mudanças dos costumes, havia uma resposta de quem era contrário à "perda da identidade, à influência da cultura ocidental, da ameaça aos valores islâmicos." De um país em que nem todas as mulheres usavam o hijab (o mais tradicional véu), passou a ter pregadores que convenciam as mais jovens que adotar posturas mais conservadoras, incluindo a usar o niqab (o véu preto que deixa apenas os olhos à mostra).

De jovens que se aventuraram pela cultura gótica e até tingiram o cabelo, Rahma e Ghofrane viram no poder moral que endossar um Niqab (e tudo que ele representava) a liberdade em relação a uma mãe que as amava, mas que, para protegê-las das agressões "da rua", agredia as filhas "antes" em casa, humilhava, era violenta e castradora.

É tão surreal quanto verossímil, sejam na cultura islâmica quanto na ocidental, histórias de gerações de mulheres que, para sobreviver em uma sociedade machista e violenta, introjetam seus preceitos, reproduzem e se tornam julgadoras e violentas consigo e com outras mulheres.

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"As 4 Filhas de Olfa" investiga como jovens de uma família tunisiana enfrentam o machismo estrutural e lidam com o desejo de pertencimento
"As 4 Filhas de Olfa" investiga como jovens de uma família tunisiana enfrentam o machismo estrutural e lidam com o desejo de pertencimento Imagem: Divulgação

A partida de Ghofrane e Rahma é um trauma tão grande na vida das três mulheres que ficaram que somente falar disso já é gatilho suficiente para que Olfa tenha uma crise nervosa e as irmãs Eya e Tayssir caiam no choro. Compreender o que aconteceu com Rahma e Ghofrane é o ponto-chave para entender esta família, e, sobretudo, as mulheres e a própria juventude do Oriente Médio contemporâneo.

A trajetória destas quatro irmãs diz muito sobre as perspectivas de vida, de pertencimento, de querer fazer parte de um país, de um mundo que muda a cada dia, de estar conectado com a modernidade e, ainda assim, enfrentar o conservadorismo, o fanatismo religioso e o machismo estrutural.

Tratar de tudo isso em um único filme não é tarefa nada fácil. Kaouther decidiu correr um risco alto quando se trata de documentários: a dramatização. Para entender o presente destas mulheres, a diretora precisava ir além das manchetes dos noticiários e mergulhar fundo no passado.

Olfa Hamrouni e a atriz  Hind Sabri, que vive a própria Olfa no documentário "As 4 filhas de Olfa", que mistura linguagens e que concorreu ao Oscar
Olfa Hamrouni e a atriz Hind Sabri, que vive a própria Olfa no documentário "As 4 filhas de Olfa", que mistura linguagens e que concorreu ao Oscar Imagem: Divulgação

Para reconstruir o passado, escalou atrizes para viver Rahma (Nour Karoui), Ghofrane (Ichrak Matar) e Olfa (Hind Sabri) —a última em momentos dramáticos em que a personagem real não conseguia contar ou reencenar momentos cruciais de sua vida. Olfa relata sua história para a câmera, como sua noite de núpcias. Ela conta para Hind Sabri (uma grande celebridade no cinema do Oriente Médio, aliás) e chega a dirigir a atriz e o ator Majd Mastoura.

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Olfa mostra como se esquivou das tentativas desajeitadas do recém-marido, das broncas que levou da irmã por não ceder logo à obrigação de consumar o casamento e mostrar o lençol sujo de sangue. Explica que resolveu a situação esmurrando o nariz do marido, esfregando o lençol no sangue dele e, assim, convencendo os convidados de que tudo estava consumado.

Tanto Olfa (a real) quanto Hind trocaram ideias como uma pequena família das seis mulheres em cena se forma. Em um verdadeiro metadocumentário, além do câmera, de Majd Matoura (que vive todos os homens do filme), a história de "As 4 Filhas de Olfa" era a dinâmica entre essas mulheres, as histórias que contavam, ouviam, as impressões que trocavam e até as broncas e embates que tinham.

Olfa Hamrouni, Tayssir Chikhaoui, a diretora Kaouther Ben Hania (de azul) e  Eya Chikhaoui, personagens de "As 4 Filhas de Olfa" em Cannes 2024
Olfa Hamrouni, Tayssir Chikhaoui, a diretora Kaouther Ben Hania (de azul) e Eya Chikhaoui, personagens de "As 4 Filhas de Olfa" em Cannes 2024 Imagem: Reprodução / Festival de Cannes

Quando estava filmando Olfa e suas filhas, fiquei impressionada com a força delas. São muito fortes e carismáticas. Quando falam, elas são incríveis. Elas têm esse talento inato de contar histórias. E foi muito interessante para mim ver a feminilidade de uma maneira diferente, de uma forma de, como você diz, sobrevivência. Kaouther em conversa para Splash

De fato, as filhas de Olfa são como ela. Fortes, cheias de personalidade, exuberantes, mas vulneráveis. Fruto de um casamento arranjado, tiveram o azar de ter um pai alcoólatra, violento e que as humilhava quando esteve presente em suas vidas. Exausta, e inspirada pelas transformações que a Tunísia passava, Olfa se divorcia e se envolve com um novo homem, cujo passado não conhece muito, mas no presente se parece com um príncipe, capaz de dar a ela todo amor, prazer e liberdade que nunca tivera.

O que começou como um grito de liberdade terminou em mais uma história de violência doméstica, que atingiu suas filhas. A cena em que Eya e Tayssir confrontam Majd Matoura (aqui no papel do marido da mãe que se tornou "mais que um pai" e que as traiu e abusou) é tão rica quanto assustadora. Esta sequência é quase um psicodrama e, como aponta Kaouther, funciona como um teatro brechtiano.

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Elas têm uma vida dura. Elas precisam ter este tipo de força para se defender. Mas também a forma delas de se relacionarem com os homens. A abertura delas para falar sobre essa violência. Não é algo vergonhoso. Você pode pensar na mãe. Ela quer esconder as coisas que as envergonham. Mas as filhas são totalmente o oposto. Elas querem falar sobre isso. Elas querem contar, falar sobre os momentos traumáticos, o que foi realmente, quer dizer, elas são muito corajosas. Kaouther

A força de Olfa, suas filhas e do filme está nessa coragem de abrir o armário cheio de esqueletos, em que mulheres guardam seus traumas há milênios para que as convenções sociais, religiosas e até políticas sejam mantidas para serviço de uma sociedade que protege os violentadores e amordaça as mulheres.

Se o cinema tem de fato algum poder, que seja para que se fale, de tudo, com todas as letras, imagens, encenações e a verdade da cena e de cada mulher que ousa. "Por isso é tão importante ter mulheres e dizer. Precisamos de mais mulheres no cinema porque há coisas em que podemos jogar uma nova luz e dar uma nova perspectiva. Para contar nossas histórias", diz Kaouther.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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