Flavia Guerra

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'Mussum' é a história das famílias pretas brasileiras, diz Silvio Guidane

"Uma das preocupações que a gente tinha era a de contar a história deste cara, de trazermos esse personagem para o espectador rir com ele, se divertir com ele, sonhar com ele, para poder se emocionar com ele. O cinema de que mais gosto é aquele que o espectador acompanha o personagem. E não o que a gente busca na figura do diretor ou isso, ou aquilo."

Assim o diretor Silvio Guindane, que assina com "Mussum - O Filmis", seu primeiro longa-metragem, fala de um dos pontos cruciais do filme, que venceu o Festival de Gramado em agosto deste ano e que chega aos cinemas nesta semana. É a trajetória de Mussum que conduz a história. Os temas, dos mais engraçados aos mais sensíveis, estão na tela, mas o que vai guiar o espectador é a história de Carlinhos do Pandeiro, Carlinhos, Antônio Carlos Bernardes Gomes e, finalmente, a de Mussum.

"Mussum" conta a história de um menino de origem humilde, filho de uma empregada doméstica que lutou diariamente para que o filho tivesse educação e, diferentemente dela, direito e poder de escolher o que queria ser na vida. História mais brasileira, mais comum e, exatamente por isso, mais especial, não há.

Pode parecer óbvio, mas escolher acompanhar um personagem que é um dos maiores humoristas e, também, um dos grandes sambistas brasileiros para além do caricatural Mussum dos Trapalhões, que marcou época na TV, não é tarefa fácil. Afinal, a tentação de cair somente nas alegorias é grande quando se fala de um tipo tão genial como o que Carlos Bernardes Gomes criou.

Esta foi a principal tarefa não só do roteirista Paulo Cursino, mas principalmente, de Yuri Marçal, que vive o Mussum quando jovem, e de Ailton Graça, que interpreta o personagem na fase adulta, do garoto Thawan Lucas Bandeira, o Carlinhos na infância.

Ele não é apenas a figura maravilhosa que representou para a gente como músico, como comediante, levando humor e mansidão para a casa das pessoas. É um filme humano, que conta a história de uma família brasileira, que reflete a maioria das famílias pretas brasileiras e que a mãe cuida dos filhos a ferro e fogo, principalmente naquela época. Diretor Silvio Guindane para Splash em conversa durante Gramado.

A escolha de focar no personagem e de construir um filme com amplo diálogo com o público deu certo. Em Gramado, "Mussum" recebeu seis prêmios: melhor filme, prêmio do público, melhor ator (Ailton Graça), atriz coadjuvante (Neusa Borges), melhor ator coadjuvante (Yuri Marçal) e trilha sonora.

Equipe de "Mussum, o filmis", que levou seis prêmios no Festival de Gramado 2023
Equipe de "Mussum, o filmis", que levou seis prêmios no Festival de Gramado 2023 Imagem: Edison Vara/Agência Pressphoto / divulgação
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"Fiquei muito emocionado. Mas é uma emoção muito grande de entrar neste tapete vermelho majoritariamente com um elenco e uma equipe preta protagonizando este filme", diz Silvio Guindane, que atua desde a infância e estreou em Gramado há 27 anos em "Como Nascem os Anjos", além de ter estrelado "De Passagem", dirigido por Ricardo Elias, que levou o Kikito de melhor filme em 2003, entre tantos outros trabalhos.

A trajetória de Guindane casa perfeitamente com um projeto que tem como principal objetivo de se comunicar com o grande público, com uma narrativa leve, mas que não deixa de trazer pontos delicados da vida de Mussum. Um de seus maiores dramas, o da dúvida entre seguir a carreira no samba ou se assumir humorista em tempo integral, é o principal ponto de tensão da narrativa.

Mas as crises nos casamentos, sua ausência muitas vezes por conta do trabalho, a origem humilde, a relação com a mãe, sua grande inspiradora e incentivadora, têm espaço numa trama que pode parecer linear, mas que quer contar bem uma vida singular.

Ator Ailton Graça e o diretor Silvio Guindane do longa-metragem brasileiro "Mussum, O Filmis"
Ator Ailton Graça e o diretor Silvio Guindane do longa-metragem brasileiro "Mussum, O Filmis" Imagem: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

"Mussum", o filme, começa na infância pobre do menino Carlinhos, passa pela carreira militar, sonhada por sua mãe, Dona Malvina (Cacau Protásio, na juventude e Neusa Borges, na maturidade), a relação com a Mangueira, a paixão pelo samba e o sucesso com os Originais do Samba, além de bastidores de "Os Trapalhões", que o tornou famoso em todo o Brasil e referência para gerações.

Não à toa, Ailton observa que "Mussum" foi "construído com a missão ancestral de contar a história deste cara, que merecia esse filme".

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"Existem grandes personagens que não têm visibilidade para ter sua história contada. É importante que a gente saiba quem é Luiz Gama, dona Ruth de Souza, Léa Garcia [que morreu recentemente], que era a ternura em pessoa, o afeto em pessoa. Mas é importante contar histórias também de personagens que, de alguma maneira, ficam invisibilizados dentro da construção do cinema nacional", afirma o ator, que há dez anos recebeu o convite do produtor Paulo Santucci para viver o personagem.

Ailton ainda observa que Paulo Santucci convidou Silvio Guindane para dirigir o longa ao entender que "não é um filme para ele dirigir." Ele disse: "Preciso de uma pessoa que tenha este diálogo da negritude, que saiba falar sobre essas pautas tão importantes. E aí ele convidou Silvinho Guindane para estar dentro deste processo todo como diretor.

Ailton Graça em cena de "Mussum, o Filmis", que estreia nos cinemas em 2 de novembro de 2023
Ailton Graça em cena de "Mussum, o Filmis", que estreia nos cinemas em 2 de novembro de 2023 Imagem: Divulgação

A partir daí, Guindane começou a montar seu elenco e sua equipe. "O elenco sonhado, que desse veracidade a esse filme. Foi assim que vieram a Cacau Protásio e a Neusa Borges (que vivem Malvina, a mãe de Mussum), que já tinha sido minha mãe na novela "América", veio o Yuri Marçal também. Os dois, Cacau e Yuri, trouxeram a questão do drama, do tom mais trágico, para desenvolver este lugar. Tudo isso é importante. É um filme que foi criado com muito afeto, muita imersão e muita alegria. No intervalo, a gente cantava os Originais!"

Sobre a importância de uma equipe e um elenco majoritariamente negro na produção, Ailton destaca ter um significado e um significante nisso. "Foi importante também, aqui em Gramado, que antes do nosso trabalho, teve um documentário dos Ianomâmis (o filme"Mãri Hi: A Árvore do Sonho", de Morzaniel Iramari, que levou o Kikito de melhor fotografia e prêmio especial do júri), feito e dirigido pela comunidade. É o lugar de fala, como cita a Djamila Ribeiro, o lugar de contar essa história."

Cacau Protásio (centro) vive Dona Malvina, a mãe de Mussum quando jovem. Yuri Marça vive o humorista e sambista na juventude.
Cacau Protásio (centro) vive Dona Malvina, a mãe de Mussum quando jovem. Yuri Marça vive o humorista e sambista na juventude. Imagem: Desiré do Valle /Divulgação
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Para Ailton, há uma questão cultural que é importante no fato de Guindane comandar a direção do projeto, que foi criado por Santucci. "Ele atravessa uma questão cultural. Isso é da nossa cultura. Silvinho sabe exatamente qual é esse ambiente, que não é contado por um diretor não negro pelo simples motivo de que talvez ele fosse folclorizar a história."

Talvez ele (um diretor não negro) fosse dar veracidade porque existem maneirismos, verbo, coisas que só acontecem dentro de quem conhece este diapasão deste universo paralelo que continua. A história é contada do ponto de vista de quem venceu a guerra e não de quem está lutando por ela, pelas mudanças. Ailton Graça

Ailton Graça (Mussum) e Neusa Borges (Malvina, a mãe de Mussum) em cena de "Mussum - O Filmis"
Ailton Graça (Mussum) e Neusa Borges (Malvina, a mãe de Mussum) em cena de "Mussum - O Filmis" Imagem: Desirée do Valle/ Divulgação

Não por acaso, o final do filme, sem spoilers, traz um grande discurso de Mussum/Ailton para um grupo de crianças e jovens da Mangueira (de um projeto social comandado por Alcione). Em vez do tom didático e de aula que muitos podem sentir, a cena quebra praticamente a chamada quarta parede e é um recado para os jovens espectadores. É principalmente ao público brasileiro jovem com quem "Mussum", o "Filmis", que falar.

Para a gente esse discurso todo do filme não opera no lado didático. Opera do lado da filosofia, como dizia Candeia. O samba é uma filosofia, é a filosofia do morro. A nossa ferramenta para falar sobre filosofia, para falar de Lima Barreto, para falar de Machado de Assis, dona Léa Garcia, Ruth de Souza, Pedro Nascimento, vai passar por esse lugar em que a gente precisa que, na direção, na condução desse trabalho, e até mesmo na mesa de negociação, que tem que ser a nossa maior conquista, para falar dos valores de como esse filme vai acontecer. Ailton Graça

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