Viciados em cruzeiros: 'Não quero nem saber roteiro, não sei o itinerário'

Quando o relógio bate 18h30, não é difícil encontrar o advogado José Carlos da Silva, de 87 anos. Ele estará certamente em um dos salões de dança de um navio.

Venho ao navio só para dançar. Danço o máximo do tempo possível. Só paro quando o músico fica cansado de me ver.
José Carlos

Ao lado da esposa, a também advogada Cynthia Keiko, de 46 anos, ele embarca em cerca de dez cruzeiros por temporada —que dura entre novembro e abril, em média.

Não há limites para os destinos: vale viagem pelos mares brasileiros e travessias mais ousadas.

Para José, Cynthia e outros "viciados em cruzeiros", não tem balanço do mar capaz de fazê-los enjoar da sensação de estar a bordo de um navio.

E, enquanto muitos torcem o nariz para a experiência de ficar confinado e ter apenas o oceano diante dos olhos por dias a fio, para eles nada disso é um problema.

José e Cynthia já fizeram mais de 70 viagens, por várias empresas. O casal viaja desde 1998 —o importante, para eles, é estar no mar. Em abril, seguem para mais uma travessia para a Europa.

Cynthia e José dançando no Costa Diadema
Cynthia e José dançando no Costa Diadema Imagem: Camila Corsini/UOL

"Ele é o Fred Astaire", diz a amiga Beth Hidalgo, 64, sobre o hobby de José, citando o dançarino famoso nos anos 1930. De São Paulo, ela e o marido, o representante comercial Sérgio Hidalgo, de 67 anos, costumam embarcar com Cynthia e José em boa parte das viagens.

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Não sei quantos cruzeiros já fiz, mas são mais de 60. Eu fazia a travessia para a Europa direto --ia levar e buscar o navio. Hoje, faço cerca de cinco cruzeiros por temporada.
Beth Hidalgo

O quarteto sempre foi muito fã do mar —antes, vivia a bordo de lanchas pelo litoral paulista.

E, depois de tantas viagens, o roteiro deixou de ser o principal atrativo. Nem as festas e as piscinas são o ponto alto.

Enquanto José não tira os pés dos salões, Beth gosta de participar dos quizzes de conhecimento geral que acontecem a bordo. "É minha diversão, faço uma revolução. Estudo o ano inteiro para participar."

"Meus olhinhos brilham quando vejo a escada do navio. Não quero saber nem o roteiro. Vim para cá, não sei o itinerário que estou indo. A gente só vê a data. Sou apaixonada, alucinada. Para mim não tem outro tipo de viagem", diz Beth, a bordo de um navio que saiu de Santos rumo ao litoral da Bahia.

Se a possibilidade de ficar dias sem pisar na terra firme afasta muita gente dos cruzeiros, para Beth é justamente o pouco contato com o continente (e seus perigos) uma das partes agradáveis.

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Aqui, estou protegida. Se você vai para um hotel, tem de sair para a rua, ir para lugares, jantar fora. Aqui, tenho uma família, é minha casa de lata.
Beth Hidalgo

Depois de uma viagem de uma semana em fevereiro, ela já planejava embarcar de novo, no dia 17 de março, para comemorar o aniversário a bordo.

Viagem repetida

Quem também não liga muito para o roteiro é a assistente social aposentada Maria das Mercez, de 77 anos.

Entre o Natal e a primeira semana de março, vai completar três vezes a rota nacional do navio Costa Diadema: Santos, Salvador, Ilhéus e Rio de Janeiro.

O motivo de fazer viagem repetida? Ela gosta de apresentar o passeio a quem nunca fez.

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Maria das Mercez está indo para o seu 18º cruzeiro em março
Maria das Mercez está indo para o seu 18º cruzeiro em março Imagem: Camila Corsini/UOL

A primeira viagem de Mercez foi em 2000, quando ela ainda trabalhava. Na época, seu período de férias não batia com a temporada de viagens, então passou um tempo afastada do mar.

Depois voltou e não parou mais. Com a última viagem, de março, completa 18 cruzeiros. E já tem outro marcado para o fim do ano.

A amiga que me convidou a primeira vez fez menos cruzeiros que eu. O melhor de tudo é comer olhando o mar, uma benção.
Maria das Mercez

Do interior de Minas, onde o mar é só de morros, Mercez gosta de levar seus conterrâneos para conhecerem o navio. Na viagem do Natal, o grupo dela tinha cinco pessoas.

"Não sou agente de viagem, mas tenho amizades", brinca. "A gente vê o brilho nos olhos."

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A chance de conhecer gente nova é o ponto alto. O cassino também tem sua vez —mas com cuidado para não perder a linha.

A gente faz amizade com quem está na frente, com quem está atrás. Recebe carinho e também dá carinho. Gosto muito do cassino, apesar de que é difícil e, se você não toma cuidado, perde. Então, não aconselho.
Maria das Mercez

No rol de seus passeios a bordo, teve até aquelas experiências que ninguém poderia imaginar, como as viagens com protocolos contra a covid-19. "Não éramos nem nós que nos servíamos, a gente só apontava o que queria", lembra ela.

Rotas mais longas, como as travessias para o velho continente, estão nos planos. E as da América do Sul já são rotina. "No ano passado, fiz três. E quero fazer de novo ano que vem."

Para os novatos na arte de se tornar um descobridor dos sete mares, Maria tem suas receitinhas. Contra os enjoos, as dicas incluem doses de Dramin e de paciência.

Trago remédio, apesar de nunca ter usado, nem Dramin e nem Vonau. Para quem [está com enjoo e] conversa comigo, eu falo: tenho medicação, dou a medicação, oriento, mas digo: 'tira isso da cabeça, porque é mais psicológico'. Às vezes, a pessoa bebe demais, faz uma misturada: é cerveja, show, vinho...
Maria das Mercez

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'Cruzeiro popularizou'

No caso da comerciante Ieda Saes, de 56 anos, o amor por cruzeiros começou com o pai, que tinha o sonho de viajar de navio, anos atrás.

"Era muito difícil. O valor era totalmente fora para muitas pessoas, não é como hoje." Eles fizeram um esforço e embarcaram pela primeira vez há 15 anos. "A gente se apaixonou."

Quando a gente entrou no navio a primeira vez, foi aquela coisa de o queixo cair. Eu falava: 'não acredito que é assim'.
Ieda Saes

Ieda Saes e Roberto Saes fazem cruzeiros há cerca de 15 anos
Ieda Saes e Roberto Saes fazem cruzeiros há cerca de 15 anos Imagem: Camila Corsini/UOL

Agora, ela já nem sabe mais quantas viagens a bordo de navios fez. "Depois do décimo cruzeiro, parei de contar."

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Com tanto tempo de experiência, Ieda vê as mudanças. "O cruzeiro popularizou. Acho que todo mundo tem de ter o poder de conseguir fazer as coisas, o acesso, conhecer. Isso é muito justo. Só que, por outro lado, ele perdeu um pouco a qualidade. A gente, que já faz há anos, ouve muita gente falar que não vai fazer mais."

Não é o caso de Ieda, que planeja sair do país. "Meu sonho agora é pegar na Itália para fazer as ilhas gregas", diz ela.

O pessoal até tira sarro da gente. Falam que a gente faz tanto cruzeiro que, a qualquer hora, vamos arrumar um que vai até Minas Gerais. É todo ano.
Ieda Saes

*A repórter viajou a convite da Costa Cruzeiros

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