Não há só política em Brasília: Planalto Central é produtor de vinhos finos

Sentados nas mesas do Bistrô do Vinhedo Lacustre, no alto da propriedade de 20 mil m², turistas e locais almoçam e provam os vinhos ali produzidos, como o Cabernet Sauvignon Vista Norte ou o Merlot Reserva, enquanto apreciam a vista das videiras. Ao fundo, pode-se ver a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes.

O Vinhedo Lacustre, um projeto do enólogo Carlos Sanabria e do arquiteto Marcos Ritter, fica dentro do perímetro urbano de Brasília, num terreno residencial do Lago Norte. A capital do nosso país, o Distrito Federal como um todo e Goiás, quem diria, hoje produzem vinhos finos.

Calcula-se que a região conte hoje com mais de 50 empreendimentos voltados para a produção de vinhos. No caso do Vinhedo Lacustre, há uma pequena vinícola na propriedade, mas muitos desses projetos são apenas vinhedos. Alguns recém-plantados, outros começando a fase de produção.

A vinificação, nesses casos, é feita por terceiros, da região ou mesmo de outros estados, mas quase todos planejam construir sua própria vinícola um dia.

Em 20 anos, Brasília e Goiás serão um polo importante de produção de vinhos e enoturismo.
Carlos Sanabria, enólogo

História começou há 10 anos

Vinhedo Lacustre
Vinhedo Lacustre Imagem: Divulgação

A história da viticultura na região não começou hoje. Durante o Festival Gastronômico de Pirenópolis de 2010, no saguão de entrada do teatro em que foram realizadas palestras e workshops de chefs famosos como o brasileiro Alex Atala, o médico goiano Marcelo Souza e Silva montou uma mesinha para apresentar uns vinhos que estava produzindo bem perto dali, no município de Cocalzinho de Goiás (GO).

Na época, ninguém falava em vinhos de inverno. Boa parte das pessoas que passaram pela sala, inclusive alguns dos chefs, certamente pensaram que Marcelo era representante de uma loja de vinhos, não pararam para olhar nem prestaram atenção no que estava acontecendo ali: o início de uma nova fase na produção de vinhos no Brasil.

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Embora não tenha formação na área, Marcelo foi um dos pioneiros da viticultura de inverno no Brasil. Um autodidata, em 2004, quando Murillo de Albuquerque Regina, pesquisador da Epamig, estava desenvolvendo o seu famoso sistema de dupla poda que permitiu a produção dos vinhos de colheita de inverno, Marcelo comprou um terreno de 4 hectares em Cocalzinho, já com o objetivo de montar a Pireneus Vinhos e Vinhedos. Não sabia do trabalho de Regina, mas havia lido sobre a colheita invertida praticada em países como a Índia.

Vinhedo Lacustre
Vinhedo Lacustre Imagem: Divulgação

Mais ou menos na mesma época, o pai de Marcus Ritter, o médico Odelmo de Gregório, plantava uvas de mesa no Vinhedo Lacustre, a um quilômetro do Lago Paranoá. Em Paraúna, no sudoeste, goiano, por coincidência, outro médico, Sebastião Ferro, também experimentava com uvas de mesa no que viria a ser a vinícola Serra das Galés, hoje produtora de vinhos finos. E em Planaltina, no Distrito Federal, o fazendeiro Wanderley Zimmermann, com o apoio da Emater-DF, foi outro que investiu no cultivo de uvas de mesa.

Marcelo, no entanto, foi o primeiro a se arriscar com a plantação de uvas vitis viníferas, aquelas próprias para a produção de vinhos finos, muito mais difíceis de cultivar. Plantou syrah, tempranillo e barbera e, por conta própria, baseando-se no que lia, foi orientando o manejo das videiras para que a colheita acontecesse no inverno, quando não chove, e não no verão, como costuma ser a viticultura tradicional.

A primeira safra

Em 2008, colheu sua primeira safra, segundo ele mesmo, quase matou as videiras, mas produziu seus primeiros vinhos —dois anos antes da primeira safra do Primeira Estrada, o vinho da vinícola Estrada Real, de Murillo Regina, que deu início à produção dos vinhos finos no sudeste brasileiro.

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Em 2010, Marcelo estava lá no festival exibindo seus vinhos Bandeiras (barbera) e Intrépido (syrah) e dizendo que um dia o Planalto Central seria uma região reconhecida como produtora de grandes vinhos. Ninguém dava muita bola.

Em 2012, em uma degustação às cegas, o Bandeiras 2008 ficou em segundo lugar entre os tintos no concurso da quinta edição da Vinum Brasilis, feira anual que reúne só vinhos brasileiros em Brasília e que costuma ser prestigiada pelos nomes mais importantes do setor no país.

Na edição mais recente da Vinum Brasilis, em outubro de 2023, havia sete produtores do Planalto Central expondo seus vinhos, contando com a Pireneus Vinhos e Vinhedos, que hoje produz um número bem maior de rótulos, incluindo um espumante. Boa parte dos outros seis começou seus projetos inspirados nos resultados de Marcelo.

Vinicola Brasília Monumental
Vinicola Brasília Monumental Imagem: Divulgação

Entre eles, quatro eram sócios da Vinícola Brasília, um projeto de R$ 20 milhões com capacidade para processar 350 mil litros de vinho por safra, no cinturão verde de Brasília, dentro do DF, num assentamento dos anos 1970 conhecido como PDA-DF.

A Vinícola Brasília reúne dez produtores de uvas (Miro Vinhos e Vinhedos, Ercoara Cordeiro e Vinho, Monte Alvor Vinhos Únicos, Marchese Vinhos e Vinhedos, Oma Sena Vinhos e Vinhedos, Horus Vinhos e Vinhedos do Planalto, Casa Vitor, Alto Cerrado Vinhos do Planalto Central, Vista Da Mata e Villa Triacca Eco Pousada e Vinhos), seis deles em fazendas do PDA-DF e quatro em fazendas da divisa do DF com Goiás nas proximidades da instalação industrial.

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A inspiração

A maioria são colonos gaúchos que até trazem na lembrança algo sobre pais ou avós produzirem seu próprio vinho, mas o que os inspirou mesmo foi o sucesso de Marcelo e de outros projetos de colheita de inverno em diferentes regiões do Brasil. É tudo muito recente. Os dez sócios se reuniram em 2018 e nesse mesmo ano alguns começaram o plantio de videiras. Em 2020, começou a construção da vinícola.

Essa será inaugurada oficialmente só em abril de 2024, mas opera desde 2022 e o seu primeiro vinho, o Monumental, um corte de vinhos dos vários sócios, já está à venda por R$ 297. A ideia é que a vinícola produza garrafas com a marca (e as uvas) de cada um dos dez associados e vinhos, como o Monumental, com a marca Vinícola Brasília, que serão blends dos vinhos de vários associados.

Imagem
Imagem: Divulgação

O vinho Monumental é uma homenagem à capital federal, uma referência ao eixo monumental. Foram produzidas apenas 1960 garrafas (esse número lembra alguma coisa?).

É um vinho especial, feito para guarda. Mas provei e acho que já está maravilhoso para beber agora.
Isabella Bonato, agrônoma da família proprietária da Oma Sena

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Esse vinho ficou entre as 16 amostras mais representativas da Avaliação Nacional de Vinhos Safra 2023 - mais uma prova de que a região tem potencial para produzir ótimos vinhos.

Como São Paulo, Minas Gerais e outras regiões produtoras de vinho de colheita de inverno, Goiás era considerado um terroir impróprio para o cultivo de uvas viníferas por ter o período de chuvas concentrado no verão, época tradicional da colheita, já que a chuva traz doenças para os frutos.

"No entanto, no período seco, Goiás é muito mais seco do que essas outras regiões", diz Roberto José de Freitas, coordenador do projeto de extensão em viticultura e professor de agronomia da UEG (Universidade Estadual de Goiás) em Ipameri. Segundo ele, com a colheita de inverno, o terroir acaba se aproximando mais do da Argentina e do Chile do que do do sudeste.

Pesquisas e parcerias

Vinhedo Oma Sena
Vinhedo Oma Sena Imagem: Divulgação

A UEG é a instituição mais dedicada à pesquisa de uva vinífera e vinho na região. Mesmo isso, no entanto, é recente. A Vinícola da Unidade Universitária de Ipameri foi fundada em 2020 e desde então tem vinificado para vários produtores da região (além deles, a Vinícola Brasília e a Vinícola Assunção prestam serviços para terceiros). Antes disso, em 2016, o departamento de agronomia ofereceu cursos rápidos para quem estivesse interessado em começar a plantar uvas.

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A diferença do Nordeste, onde a Embrapa Uva e Vinho fez pesquisas e fomentou a expansão da vitivinicultura, e do Sudeste, onde a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) criou todo um novo sistema de produção para o cultivo de vitis viníferas, o vinho de Goiás de início brotou a partir de iniciativas privadas de meia dúzia de entusiastas.

O próprio professor José Roberto de Freitas é um deles. Em 2010, fez um curso sobre uvas de mesa na Embrapa e começou a implantar cultivares de mesa na fazenda experimental da UEG. Logo depois, ouviu falar do Marcelo e provou seus vinhos. Em 2014, foi visitá-lo. Em 2017, conseguiu recursos federais para construir a vinícola experimental da universidade.

Os recursos, no entanto, eram escassos. Tanto que, pouco depois, Freitas plantou uma série de variedades de uvas viníferas em suas próprias terras para tocar uma pesquisa particular, bancada de seu próprio bolso. Daí surgiu, então, a sua própria vinícola, a Vinhedos do Cerrado, também em Ipameri.

Há a ideia de uma parceria entre Embrapa, Emater-GO (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Goiás) e U EG, mas está meio parada. Dois pesquisadores da Embrapa desenvolvem trabalhos em projetos isolados na região: João Dimas Garcia Maia, com uvas híbridas, desde 2012, na vinícola Serra das Galés, em Paraúnas, e Giuliano Elias Pereira, desde 2019, na Fazenda Trijunção, da família Marinho, na divisa onde Goiás, Bahia e Minas Gerais se encontram.

Ajuda de profissionais

Os próprios produtores acabam por pedir ajuda de profissionais experientes. O casal de engenheiros Carolina Podesta Santana e Milton Sales Santana, por exemplo, começou por conta própria e depois trouxe o enólogo chileno radicado no interior de São Paulo,Christian Sepúlveda, para garantir que o projeto da Monte Castelo, em Jaraguá, iria vingar.

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O enólogo Cristian Sepúlveda
O enólogo Cristian Sepúlveda Imagem: Divulgação

O enólogo presta serviços também para os pais de Carolina, que têm a Vinícola São Patrício, perto dali, em Rianápolis. Ambos produzem vinhos muito elegantes, que deixam clara a experiência do autor.

Alguns nomes começam a ficar famosos na região. Um deles é o de um técnico agrícola que sabe mais sobre uvas do Cerrado do que a maioria dos agrônomos: o paulista Ricardo Pereira.

No início da carreira, Pereira fez um estágio na Embrapa. Depois sempre trabalhou com uvas de mesa. Em 2004, prestou serviços pela primeira vez em Goiás, na fazenda de Wanderley Zimmermann. Em 2005, fez uma enxertia para a Pireneus Vinhos e Vinhedos, mas não demorou muito por lá. Voltou para as uvas de mesa.

Só em 2014 foi trabalhar com uvas viníferas, no sudeste.

Entrei com os mesmos tratamentos e deu certo. As pessoas dizem que uva vinífera tem de sofrer e acabam matando a uva. Eu entrei com adubação e, graças a Deus, tudo o que passou pela minha mão está produzindo.
Ricardo Pereira, técnico agrícola

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Tornou-se tão bom em vinhedos de poda de inverno que as demandas não pararam de crescer e ele acabou por abrir a consultoria Provitis junto com dois agrônomos. Na região de Goiás, a empresa já prestou consultoria para dezenas de vinhedos, entre eles alguns dos sócios da Vinícola Brasília. Segundo ele, cerca de 20 ou 25 dos quais já estão fazendo vinho, mas ainda muitos deles ainda não entraram no mercado.

Outro nome bastante conhecido na região é o do enólogo Marcos Vian. Foi Marcos quem projetou a parte técnica da Vinícola Brasília, por exemplo, e ele é o enólogo de todo o projeto. Sua empresa, a Enovitis, tem uma série de clientes na região, alguns em parceria com a Provitis.

Para muitos, todo o desenvolvimento da produção de vinhos na região está mais voltado para a criação de destinos enoturísticos do que para a produção dos vinhos em si, já que apesar de bons, eles ainda são bastante caros.

"De início, isso é verdade", afirma Vian. "No futuro, no entanto, é provável que as grandes vinícolas se interessem pela região. Há muitas áreas planas que permitem um alto grau de mecanização e uma produção em larga escala." Imaginem só, em vez de soja, um dia o cerrado talvez seja coberto de uvas.

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