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Bajulação, denúncias e frenesi: "fim" do Noma resgata polêmicas e críticas

Equipe do Noma, em Copenhagen - Reprodução
Equipe do Noma, em Copenhagen Imagem: Reprodução

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa, de Porto (Portugal)

12/01/2023 04h00

Foi em um post em seu perfil do Instagram que o chef Dan Giusti resumiu tudo: "Eu recebi mais pedidos de entrevista hoje, por conta do fechamento do Noma, do que todo o ano passado sobre o Brigaid, o trabalho que nós fazemos alocando chefs em escolas públicas, lares de idosos e prisões".

Giusti foi por anos um dos cozinheiros de frente do famoso restaurante dinamarquês, eleito por cinco vezes o melhor do mundo na influente lista dos 50 Best, que anunciou no começo dessa semana que vai fechar as portas em 2024.

É claro: não há outro restaurante no mundo hoje tão influente quanto o Noma, que colocou a culinária nórdica nos holofotes da alta cozinha e determinou muito do que foi servido em menus por todos os continentes nos últimos anos (dos fermentados às PANCs, as plantas alimentícias não-convencionais).

Por isso, o anúncio causou tanto frenesi. Saiu em todos os jornais globais: "The New York Times" (que foi o primeiro a informar), "Guardian", "The Washington Post", "El País", "Le Monde". Poucas notícias da gastronomia renderam tanto interesse nos últimos anos.

O anúncio foi meticulosamente orquestrado nas redes sociais de Redzepi e do restaurante para criar a maior repercussão possível (aliado à reportagem potente no "Times", claro, que também teve direito a um texto extra de crítico gastronômico do jornal).

Deu certo: até hoje, o assunto segue quente nos meios de comunicação e nas redes sociais: as seções de opiniões, posts acalentamos, tuítes. Ainda que, para o azar do marketing do Noma, nem tão positivos assim.

Fechado? Não era bem isso

A primeira reação negativa diz respeito à estratégia de comunicar o fechamento de um restaurante quase dois anos antes dele acontecer — o Noma segue em seu formato atual até o final de 2024.

"Tanta coisa acontecendo no mundo da gastronomia e o NYT escala dois jornalistas — seu crítico e uma repórter sênior — para cobrir o fechamento do Noma dois anos a partir de agora? E nós questionamos por que o bajulamento de chefs ainda existe?", publicou no Twitter o perfil The Restaurant Manifesto.

Ainda sobre o anúncio de "encerrar as atividades", a crítica foi ainda mais fervorosa pelo fato de que o restaurante não vai, afinal, fechar. O espaço continuará aberto com sua cozinha para testes de novas receitas, desenvolvimento de produtos próprios e? jantares — sim, como os que acontecem nos restaurantes tradicionais.

E que a ideia de transformar o espaço em "um novo capítulo de experimentações", como diz o comunicado, é demasiadamente inspirado em um movimento feito por aquele que foi considerado o restaurante mais importante restaurante da história recente da gastronomia, o El Bulli (que em 2011 fechou definitivamente para se transformar em uma fundação).

"Essa mudança é, tipo, exatamente a mesma que o El Bulli anunciou quando fechou e nenhuma reportagem sequer mencionou que que o anúncio foi apenas um copia e cola?", publicou outro perfil no Twitter.

Equipe do Noma em ação, em Copenhagen - Reprodução - Reprodução
Equipe do Noma em ação, em Copenhagen
Imagem: Reprodução
Noma, em Copenhagen - Reprodução - Reprodução
Noma, em Copenhagen
Imagem: Reprodução

Agora, o que muda no Noma é que os jantares serão organizados em formato pop-up, ou seja, por temporadas, onde os clientes deverão comprar os limitadíssimos lugares por preços provavelmente ainda mais caros do que os R$ 4.000 (por pessoa, com vinhos) cobrados para jantar ali hoje.

Ação que o portal americano "Eater" tratou de explicar em uma reportagem cujo título era "Você nunca irá ao Noma de qualquer forma" — dissecando o difícil sistema de para conseguir uma mesa.

Acho que tem muita propaganda no anúncio. É também uma forma de aumentar a procura pelas reservas nos próximos anos: 'se o Noma vai fechar, melhor eu conseguir um lugar'", diz o chef português Vasco Coelho Santos, do Euskalduna Studio.

"Insustentável"

René Redzepi (2º da dir. para esq.) em Quioto, no Japão - Reprodução - Reprodução
René Redzepi (2º da dir. para esq.) em Quioto, no Japão
Imagem: Reprodução

Tem sido assim na história do restaurante: criar um certo fetiche por tudo o que fazem. Entre março e maio, o Noma vai abrir um pop-up em Quioto, Japão. As mesas para todas as datas foram vendidas "em menos de um minuto", como se gabou Redzepi em um vídeo no Instagram.

A venda de alguns dos produtos do selo Noma Projects feitos dentro do famoso laboratório de fermentação do restaurante — um garum de cogumelos e um vinagre de rosas — também esgotaram em pouquíssimo tempo. Tudo com o Noma é superlativo.

E agora também com as críticas, em resposta à declaração do próprio chef ao "NYT" de que o modelo de restaurantes fine dining hoje "é insustentável".

Ainda que o restaurante tenha estado aberto assim por duas décadas — muitas das quais contratando dezenas de estagiários não-remunerados para trabalhar ali, algo que só mudou no ano passado, quando toda a equipe passou a ser paga.

"Se um restaurante onde uma refeição para dois custa mais de US$ 900 (sem contar com a harmonização de sumos) não consegue pagar 100% de seus funcionários decentemente, então ele simplesmente não deveria existir. E isso não é nenhuma tragédia", tuitou o podcaster e youtuber americano Mike Rugnetta.

Genial ou monstruoso?

Em entrevistas que tem dado há alguns meses, o chef tem falado sobre essa relação com o staff: ao receber o prêmio de melhor restaurante do mundo em 2021, disse no palco que o Noma não era o melhor do mundo, "mas o restaurante com a melhor equipe do mundo".

As críticas mais duras que inundaram a internet vêm nesse sentido: uma ex-colaboradora do Noma, Lisa Lind Dunbar, (@lisalinddunbar), transformou seu perfil no Instagram em uma metralhadora às práticas do restaurante e de René: as críticas já são publicadas há meses, mas se intensificaram nesta semana.

Cena de "The Menu" - Reprodução - Reprodução
Cena de "The Menu"
Imagem: Reprodução

Entre memes, stories e posts que publica, há fotos fazendo referências a cenas de filmes como "The Menu" (em que o chef/personagem principal cria um ambiente de terror com seus comensais, decepando até dedos) e faz acusações sobre atitudes do chef de "não pagar trabalhadores e os colocar em ambiente de trabalho insalubre" — algumas delas também levantadas pela reportagem do "Times".

Mas Durban critica até mesmo o tom benemerente que a reportagem tratou alguns casos de maus tratos ao pessoal: em uma foto postada, mostra uma falsa capa em que abaixo do logo do jornal a manchete diz "Nós faremos tudo o que Redzepi nos disser".

No mesmo tom, o cozinheiro Eric Rivera faz a artilharia em outra rede, o Twitter. Entre alguns de seus tuítes, diz que "Redzepi sabia que estava explorando pessoas, gozou do sucesso que isso trouxe, ganhou investidores e em nenhum momento priorizou pagá-las de forma justa".

Ou que ele "mentiu sobre os valores que o restaurante ganhava" justamente para justificar o fato de não pagar a equipe e que os estagiários "eram informados para ficarem em silêncio" e "proibidos de rir".

Outros chefs, muitos deles amigos de Redzepi, saíram em sua defesa, como o também apresentador e dono de um império de restaurantes nos EUA, David Chang. Para ele, o Noma foi um desses "restaurantes iconoclastas que a cada 20 anos muda a alta cozinha para sempre".

A ver como serão os próximos anos, quando o restaurante estiver "fechado".