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Piriri e mulas? O que é verdade na viagem de Dom Pedro até o 7 de Setembro

A Proclamação da Independência (1844) de François-René Moreaux foi feita a pedido do Senado e dá olhar romântico sobre momento do grito de Dom Pedro 1º - Acervo do Museu Imperial/IPHAN/MinC
A Proclamação da Independência (1844) de François-René Moreaux foi feita a pedido do Senado e dá olhar romântico sobre momento do grito de Dom Pedro 1º Imagem: Acervo do Museu Imperial/IPHAN/MinC

Eduardo Vessoni

Colaboração para Nossa

07/09/2022 04h00

Tão sinuosa quanto o caminho político que levaria o Brasil à independência de Portugal, há exatos 200 anos, a viagem de Dom Pedro 1º do Rio de Janeiro a São Paulo também teve perrengues.

Estradas precárias que rasgavam a Serra do Mar, travessias de rio a nado e até uma disenteria do príncipe regente marcaram a travessia até o famoso grito às margens do Ipiranga.

Após transferir o poder para sua "muito amada e prezada esposa" Dona Leopoldina, Dom Pedro 1º levaria 12 dias até São Paulo, província que naquele momento se agitava com a elite que recusava cumprir ordens da então capital do Brasil, ameaçando a unidade nacional.

A pequena comitiva de sete homens que fariam a viagem era formada, entre outros, pelo amigo de farras do jovem Pedro, o Chalaça ("espirituoso" ou "zombeteiro", segundo dicionários); Luís Saldanha da Gama, futuro visconde de Taubaté; e o major Francisco de Castro Canto e Melo, irmão da Marquesa de Santos.

12.jan.2015  - Prédio do Museu Nacional, localizado na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio de Janeiro - Pedro Teixeira / Agência O Globo - Pedro Teixeira / Agência O Globo
Quinta da Boa Vista: local da partida do Rio de Janeiro rumo a São Paulo
Imagem: Pedro Teixeira / Agência O Globo

Mini São Paulo

A viagem de 634 quilômetros até São Paulo começou na manhã do dia 14 de agosto de 1822, onde hoje fica a Quinta da Boa Vista (RJ), e passou por localidades do interior paulista, como Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté e Jacareí.

O itinerário passaria também por lugares bem conhecidos dos paulistanos, como o bairro da Penha, na Zona Leste.

Rua Dr. João Ribeiro, na Penha, era conhecida como Rua Direita e era principal chega de quem vinha do Rio de Janeiro ... - Veja mais em https://publicador.uolinc.com/media.jsp?contentUri=/br/com/uol/nossa/news/redacao/2022/09/06/disenteria-e-mulheres-casadas-a-viagem-de-dom-pedro-i-rumo-a-independencia.xml&cmpid=copiaecola - Acervo do Memorial Penha de França/Reprodução - Acervo do Memorial Penha de França/Reprodução
Rua Dr. João Ribeiro era conhecida como Rua Direita e era principal rota de quem vinha do Rio de Janeiro
Imagem: Acervo do Memorial Penha de França/Reprodução

Naquela época, São Paulo era uma pequena vila com casas de pau a pique ou taipa de pilão, onde moravam cerca de 10 mil pessoas, incluindo as da área rural.

"Apesar de ser pequena, era estrategicamente importante por causa do regime fluvial que corre para dentro do Brasil", conta para Nossa o arquiteto e urbanista Paulo Rezzutti, autor do livro "Independência, a História Não Contada" (ed. LeYa).

Estrada de lama

Rota de pedras preciosas que seguiam para Portugal, uma das "estradas" por onde Dom Pedro 1º passou com sua comitiva era conhecida como "Caminho Geral do Rio a São Paulo", atual Via Dutra.

De acordo com o jornalista Eduardo Bueno, autor do livro ilustrado "Dicionário da Independência" (ed. Piu), aquela via sinuosa "era cheia de lamaçais, trechos íngremes, mata cerrada e rios que precisavam ser cruzados sem o auxílio de pontes".

Hoje conhecida como Rodovia Presidente Dutra, esta rota se chamava 'Caminho Geral do Rio a São Paulo' - Luís Lima Jr./Fotoarena/Estadão Conteúdo - Luís Lima Jr./Fotoarena/Estadão Conteúdo
Hoje conhecida como Rodovia Presidente Dutra, esta rota se chamava 'Caminho Geral do Rio a São Paulo.
Imagem: Luís Lima Jr./Fotoarena/Estadão Conteúdo

Atlântida brasileira

No segundo pernoite da viagem, a comitiva se hospedou na Fazenda Olaria, em São João Marcos do Príncipe, no Rio de Janeiro.

Porém, essa antiga vila na Serra das Araras, o "primeiro degrau na escalada para o planalto paulista", foi alagada no início do século passado para dar lugar à represa da Light, de acordo com descrição do historiador e cartógrafo Eduardo Canabrava Barreiros, autor do livro "Itinerário da Independência" (ed. José Olympio).

Pintura de Dom Pedro 1º - Reprodução - Reprodução
Pintura de Dom Pedro 1º
Imagem: Reprodução

A inundação da vila, que hoje "dorme, qual nova Atlântida", levou para debaixo d'água uma estrutura urbana com casas neoclássicas, escolas, hospital e igrejas.

Príncipe à paisana

Como conta Rezzutti, que é também membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, diz a lenda que ao se hospedar na Fazenda Pau d'Alho, na Serra da Bocaina, Dom Pedro 1º não se identificou como príncipe ao solicitar comida.

Por isso, a proprietária d. Maria Rosa de Jesus pediu então que o forasteiro "se servisse na cozinha, e não na sala, que estava sendo preparada para receber o príncipe".

Basílica Histórica, em Aparecida, no interior de São Paulo  - Thiago Leon/Divulgação - Thiago Leon/Divulgação
Basílica Histórica, em Aparecida, no interior de São Paulo
Imagem: Thiago Leon/Divulgação

Devoto de Aparecida

Entre Guaratinguetá e Pindamonhangaba, Dom Pedro 1º esteve onde hoje fica o Santuário de Aparecida, no interior paulista.

Foi ali, dias antes de proclamar a independência, que ele rezou diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida, "implorando intercessão à Virgem para a sua jornada".

Tombada há 40 anos pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), a primeira basílica do Brasil, conhecida também como Basílica Velha, ainda tem a placa indicando sua passagem pelo local.

Placa na Basílica Histórica, em Aparecida  - Victor Hugo Barros/Divulgação - Victor Hugo Barros/Divulgação
Placa na Basílica Histórica, em Aparecida
Imagem: Victor Hugo Barros/Divulgação

Figueira das Taipas

O município paulista de Pindamonhangaba abriga até hoje a figueira onde Dom Pedro 1º teria descansado nessa mesma viagem.

A 'Figueira do Imperador', no bairro das Taipas, no distrito Moreira César, tem 18 metros de altura e, atualmente, está em processo de tombamento pelo Conselho Municipal do Patrimônio.

Figueira das Taipas, em Pindamonhangaba - Osmar Carvalho/Fundação Florestal - Osmar Carvalho/Fundação Florestal
Figueira das Taipas, em Pindamonhangaba
Imagem: Osmar Carvalho/Fundação Florestal

Essa cidade a 150 km da capital tem também o Chafariz do Cônego Tobias, onde a tropa teria parado para que os animais bebessem água, e o panteão com os restos mortais de pindamonhangabenses da Guarda de Honra de Dom Pedro 1º, na Igreja de São José da Vila Real de Pindamonhangaba.

Aliás, os restos mortais do imperador chegaram a pernoitar na cidade, durante seu traslado de Portugal para São Paulo, em 1972.

'Só mulher feia'

Em Taubaté, o príncipe não só foi recebido por um grande números de cavaleiros, mas também por senhoras casadas e consideradas por eles como "feias".

Como conta Paulo Rezzutti, de acordo com outra lenda da viagem, o vigário local teria pedido que todas as moças bonitas deixassem a então vila paulista por conta do "fraco do príncipe por jovens formosas".

Troca de calças

Em um dado momento da travessia, em Jacareí, o jovem Pedro teria preferido cruzar o rio Paraíba a nado.

Com as calças completamente molhadas, o príncipe procurou na Guarda alguém que tivesse medidas parecidas às suas, trocando sua roupa encharcada com a do guarda Adriano Gomes Vieira de Almeida, que tinha cruzado o Paraíba de balsa.

Calçada do Lorena, no parque Caminho do Mar, entre São Bernardo do Campo e Cubatão - Adilson Moralez/Divulgação - Adilson Moralez/Divulgação
Calçada do Lorena, no parque Caminho do Mar, entre São Bernardo do Campo e Cubatão
Imagem: Adilson Moralez/Divulgação

Estrada da Independência

Construído em 1792 como o primeiro caminho pavimentado entre o litoral paulista e o Planalto, esse traçado em ziguezague e pavimentação de pedra viu Dom Pedro 1º nessa mesma viagem.

"Era a melhor estrada do Brasil àquela época e como ela poucas eram vistas na Europa", conta para a reportagem Benedito Lima de Toledo, arquiteto e pós doutor na Calçada do Lorena.

Localizado no parque Caminhos do Mar, no ABC paulista, o atrativo é conhecido como Calçada do Lorena e hoje pode ser percorrido em uma trilha de 7 km (ida e volta) que corta a Estrada Velha de Santos em três trechos.

Calçada do Lorena, no parque Caminho do Mar  - Divulgação - Divulgação
Calçada do Lorena, no parque Caminho do Mar
Imagem: Divulgação

Dom Pedro 1º I na ZL

Se, atualmente, Penha, Aricanduva e Tatuapé são bairros da Zona Leste bem conhecidos por quem mora em São Paulo, na época da viagem eram destinos distantes que serviam como porta de entrada para a cidade.

Enquanto Aricanduva era apenas um ribeirão e Tatuapé, um rio, a Penha serviu de hospedagem para o viajante ilustre que, do alto de um morro, podia avistar São Paulo.

"Confinada entre os rios Tamanduateí a leste e Anhangabaú a oeste, a cidade desenvolvia-se, ou melhor, acomodava-se molemente entre suas barreiras líquidas", descreve Barreiros.

Após participar de uma missa na igreja da Penha, no dia 25 de agosto, Dom Pedro 1º chegou à ladeira do Carmo, hoje rua Rangel Pestana, com a roupa cheia de barro e foi recebido por uma grande multidão.

Fachada do Pátio do Colégio, em São Paulo - Rivaldo Gomes/Folhapress - Rivaldo Gomes/Folhapress
Fachada do Pátio do Colégio, em São Paulo: uma das paradas de Dom Pedro 1º
Imagem: Rivaldo Gomes/Folhapress

A São Paulo que Dom Pedro 1º viu

Antes de seguir para Santos, no litoral paulista, o príncipe permaneceu em São Paulo durante "10 dias de atividades políticas intensas".

"Para se ter uma ideia daquela pequena povoação, o centro urbano era praticamente um triângulo formado pelo Pátio do Colégio e pelos mosteiros de São Bento e de São Francisco", descreve Rezzutti.

Dom Pedro 1º visitou a antiga Catedral de São Paulo, no Largo da Sé, o "coração da cidade" que deu lugar à Catedral da Sé, o Paço da Cidade (atual praça João Mendes) e o Palácio do Governo (Pátio do Colégio).

Mosteiro São Bento, ao lado da Estação São Bento do metrô, faz parte do roteiro histórico de São Paulo - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Mosteiro São Bento, ao lado da Estação São Bento do metrô, faz parte do roteiro histórico de São Paulo
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

"No local, ele despacharia e daria mais diversos beija-mãos aos locais e às autoridades que continuavam afluindo de toda a província para vê-lo", descreve.

Naquela época, ainda segundo Rezutti, a diversão dos locais se resumia a missas, eventos religiosos e ao Teatro da Ópera de São Paulo, cujo edifício no Pátio do Colégio já não existe mais.

"Não tinha nem cadeiras. Os escravizados precisavam levar as cadeiras para que seus senhores pudessem sentar", completa.

Aliás, foi durante sua passagem pela vila, dias antes da independência, que Dom Pedro 1º — o "Demonão", como ele assinava suas cartas secretas— conheceu sua amante mais famosa, Domitila de Castro, mais tarde, conhecida como Marquesa de Santos, a "Titila".

Vamos a la playa

Mas antes do clássico grito de independência no Ipiranga, o ilustre viajante ainda teve tempo de dar uma passadinha em Santos, no litoral sul paulista.

No dia 5 de setembro, ele deixou São Paulo para verificar a situação das fortificações daquele estratégico destino litorâneo e visitar a família do amigo José Bonifácio, que ficaria conhecido como o "Patrono da Independência do Brasil".

A breve estadia porém foi suficiente para que a viagem terminasse de forma, digamos, desarranjada.

serra do mar - Denis Ferreira Neto/Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Turismo - Denis Ferreira Neto/Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Turismo
Serra do Mar: muitas paradas para Dom Pedro 1º
Imagem: Denis Ferreira Neto/Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Turismo

Disenteria do príncipe

O último jantar em Santos teria causado uma diarreia em Dom Pedro 1º que o obrigou a pedir que a Guarda de Honra seguisse na frente.

Assim como descreve Eduardo Bueno, o príncipe desarranjado teve de parar oito vezes durante a subida da Serra do Mar.

Bueno conta também que o incômodo imperial só seria aliviado com um chá de folhas de goiabeira feito por uma jovem em Cubatão, município da atual Região Metropolitana da Baixada Santista.

Uma das primeiras paradas que Dom Pedro 1º fez para se aliviar, depois de subir a serra, foi no Ribeirão dos Meninos, em Rudge Ramos, atual bairro de São Bernardo do Campo. Paulo Rezutti

Como o Ipiranga era parte da estrada que levava viajantes para a Baixada Santista, e ali Dom Pedro 1º teve que "ir de novo no matinho", Rezutti lembra que a independência do Brasil ocorreria ali mesmo, às margens de um riacho.

Independência ou Morte, por Pedro Américo, óleo sobre tela, 1888. Exposta no Museu Paulista. - Reprodução - Reprodução
Independência ou Morte, por Pedro Américo, óleo sobre tela, 1888. Exposta no Museu Paulista.
Imagem: Reprodução

'Independência ou Morte'

A cena foi imortalizada pelo pintor Pedro Américo no quadro "Independência ou Morte", encomendado por Pedro 2º e pintado mais de 60 anos depois do clássico grito do Ipiranga.

Detalhe da remoção dos laços portugueses na farda. - Reprodução - Reprodução
Detalhe do quadro de Pedro Américo: guardas retiram brasão português da farda
Imagem: Reprodução

Feita no estúdio desse artista paraibano de Areia, em Florença, na Itália, a obra é uma representação fantasiosa da cena que oficializa a separação do Brasil, como os cavalos puro sangue às margens do riacho dos Campos do Ipiranga, que na cena real provavelmente seriam mulas.

De acordo com Bueno, a imensa tela de 415 cm × 760 cm tem tons inspirados em amostras de barro avermelhado do Ipiranga enviadas para que o pintor fizesse uma obra "o mais realista possível".

Vista aérea do novo Museu do Ipiranga, em São Paulo  - Divulgação - Divulgação
Vista aérea do novo Museu do Ipiranga, em São Paulo
Imagem: Divulgação

Onde ver mais sobre a história

"Dicionário da Independência" (editora Piu)
autor: Eduardo Bueno
Nesse dicionário ilustrado, o jornalista conta os 200 anos da independência do Brasil em 200 divertidos verbetes, divididos em temas como "Diarreia", "Feiura" e "Viagem".

"Itinerário da Independência" (editora José Olympio)
autor: Eduardo Canabrava Barreiros
Nesse clássico, o historiador e cartógrafo mineiro refaz em detalhes e com muitos mapas a viagem de Dom Pedro 1º entre o Rio de Janeiro e São Paulo.

Museu do Ipiranga 2022
O Bicentenário da Independência do Brasil, celebrado em setembro de 2022, será acompanhado da aguardada reabertura do Museu do Ipiranga, considerado o mais antigo de São Paulo. Fechado por uma década, o museu restaurado será aberto no próximo dia seis de setembro com uma nova área de quase sete mil m².

Basílica Histórica
Essa igreja histórica de Aparecida fica aberta de segunda a sexta, das 7h às 19h30; e
sábado e domingo das 7h às 20h30. www.a12.com

Parque Estadual Serra do Mar
SP-148 Estrada Caminho do Mar, km 42 (São Bernardo do Campo) e km 50 (Cubatão). De quarta a domingo e feriados, das 8h às 17h. Ingresso : R$ 40

O Roteiro Ecoturístico na Calçada do Lorena é autoguiado e pode ser acessado tanto pela portaria de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, como pela de Cubatão.

Até 25 de setembro, o parque tem programação relacionada ao bicentenário da independência com atividades como encenação teatral da Proclamação da Independência, oficina de restauro dos monumentos do parque e caminhada simbólica na Calçada do Lorena. www.caminhosdomar.com.br