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Colorido e com sabor de resistência, milho crioulo ganha espaço no Brasil

Milho Crioulo, do Projeto Crioulo - Anna Guasti
Milho Crioulo, do Projeto Crioulo Imagem: Anna Guasti

Gabriela Mendes

Colaboração para Nossa

03/03/2022 04h00

Bolo de fubá, pamonha, curau, cuscuz, milho verde assado. São tantas as preparações de milho na gastronomia brasileira, mas, certamente, a primeira (e, muitas vezes, a única) imagem que temos desse cereal é aquela espiga bem amarela, com palha verde.

Porém, se engana quem pensa que os grãos coloridos só existem nos países andinos ou no México, pois eles também são nativos do Brasil. Esse tipo de semente é chamada de milho crioulo por não passar pela indústria e ser livre de agrotóxicos, pesticidas ou modificações genéticas.

"Escondido" entre o cultivo majoritariamente transgênico no Brasil — cerca de 90%—, o milho crioulo precisa de pouco para ganhar destaque, seja pelo sabor ou por seu papel de resistência na história da gastronomia tradicional brasileira.

Milho Crioulo, do Projeto Crioulo - Anna Guasti - Anna Guasti
Milho Crioulo, do Projeto Crioulo
Imagem: Anna Guasti

Tem milho em tudo

85 milhões de toneladas de milho: essa foi a produção de milho só no Brasil entre 2020/2021, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), deixando o país em terceiro lugar na produção mundial.

E essa quantidade, além do grande volume destinado à exportação, não está presente apenas nos pratos tão amados que consumimos. O milho faz parte da composição de muitos alimentos processados, como café, molho shoyu, xaropes, biscoitos, entre outros. É só olhar os rótulos nas prateleiras do mercado e ele está até onde nem se imagina.

A espiga amarela que vive em nosso imaginário também é parte do arco-íris das sementes crioulas. Ou seja, existe milho crioulo amarelo. Porém, com a introdução dos transgênicos na agricultura brasileira, no início dos anos 2000, a semente amarela passou a ser dominante e padronizada. Ela foi selecionada para a produção industrial, em larga escala, deixando de lado as outras colorações. Por isso, há toda uma geração que nunca viu uma espiga vermelha, laranja ou preta.

A viagem do milho

Milho teve cultivo aprimorado ao longo dos anos - Naomi Mayer - Naomi Mayer
Milho teve cultivo aprimorado ao longo dos anos
Imagem: Naomi Mayer

O milho só é milho pela interferência humana. A espiga era ralinha, quase como um trigo, que foi semeado, cruzado pelos povos indígenas pré-colombianos, entre as regiões onde hoje fica o México e a Amazônia, há mais de dez mil anos. Seu cultivo foi fruto de saberes milenares.

No Brasil, ele começou a ser cultivado principalmente pelos povos tupis-guaranis, ao migrarem para a América do Sul. Com eles, veio o milho, seu principal alimento, fonte de subsistência e elemento essencial de muitos ritos religiosos. A importância do cereal é tão grande, que eles são chamados, até hoje, de "guardiões do milho".

E foi nesse contexto que Naomi Mayer mergulhou na sua dissertação de mestrado, quando acompanhou o desenvolvimento de uma aldeia guarani localizada em uma ilha no litoral do Porto de Paranaguá, no Paraná.

A antropóloga da Universidade Federal do Paraná (UFPR), reparou que, um dos símbolos de resistência, era a plantação de milho crioulo. Cultivá-lo significa resistir ao apagamento da história daquele povo. O interessante é que grande parte da sua produção vai para a festa do batismo do milho, quando as crianças da tribo recebem seu nome.

Os guarani têm contato há muito tempo com o colonizador, desde o início. Então, desde essa época, tem registros sobre o milho e sobre as festas feitas com ele, como o batismo".

Do desprezo à resistência

Apesar de toda essa importância, o alimento escolhido como símbolo nacional foi a mandioca, pois, na constituição da república, o desejo era de criar uma identidade nacional, que se diferenciasse do colonizador e dos países hispânicos latinos. Uma das estratégias foi deixar o milho de escanteio, que já era uma representação forte dos vizinhos.

O milho foi, por muito tempo, considerado um alimento "menor", atribuído à alimentação de animais, como galinhas e, de forma pejorativa, aos trabalhadores do campo.

Limpeza do milho crioulo - Naomi Mayer - Naomi Mayer
Limpeza do milho crioulo
Imagem: Naomi Mayer

Porém, com a introdução dos transgênicos, ele surgiu na prateleira do supermercado, amarelinho, padronizado, sem identidade e começou a ser consumido pela elite do país.

Esse é o cenário que ainda conhecemos hoje, tirando uma pequena resistência que está crescendo para que mais pessoas conheçam o milho de verdade, o crioulo.

Falar contra as sementes transgênicas é falar contra uma política de liberação de agrotóxico a rodo. Ter um milho crioulo no seu prato, é se posicionar contra todo esse projeto de destruição", afirma Naomi.

Caça ao tesouro

Milho crioulo é guardado como verdadeiro tesouro - Naomi Mayer - Naomi Mayer
Milho crioulo é guardado como verdadeiro tesouro
Imagem: Naomi Mayer

Alice Lutz, da produção agroecológica Maravilhas São José, decidiu trocar a vida no Rio de Janeiro e se mudar para seu sítio localizado em São José, na Serra da Bocaina, onde descobriu que as famílias das proximidades tinham sementes de milho crioulo guardadas, como uma preciosidade.

A troca das sementes crioulas é, literalmente, de mão a mão, através de conhecidos ou em feiras específicas só para isso, onde agricultores se reúnem e trocam sementes nativas.

No sítio da Alice, há mais de 40 espécies de plantas, frutos e legumes, mas o milho crioulo é a estrela da casa. E conta que ele presta um importante papel para a agroecologia, já que, quando plantado, indica a fertilidade da área.

Eu fico brincando que o milho é meu guia, meu mestre."

Alice vende seu fubá, feito em um moinho de pedra, e pipoca no Maravilhas São José, além de participar das feiras de pequenos produtores da Junta Local, no Rio.

"Quando você leva o bolo de fubá numa feira e dá para uma pessoa provar, ela passa a conhecer o milho crioulo. Minha intenção é poder fazer com que as pessoas tenham conexão através da comida, ser a ferramenta dessa história, que não está no livro, mas está sendo plantada, colhida, tornando essa reconexão possível na cidade", afirma.

Do sítio para a mesa

Para que as pessoas comecem a querer comprar milho crioulo, elas precisam saber que ele existe. Esse foi o norte de Anna Guasti e Lucas Sousa, do Projeto Crioulo. A união dos dois amigos — que tinham seus empreendimentos como a Casa Guasti, uma agência de consultoria e design focada em biodiversidade e gastronomia, e a Fazenda de Orgânicos Vista Alegre — deu fruto à parceria, que nasceu em 2019.

Quando Lucas descobriu que seu vizinho tinha sementes de milho crioulo vermelho, começou a plantar e fazer experimentos. A primeira safra deu 50 quilos e os dois amigos resolveram divulgar a nova empreitada.

Prato que usa fubá de milho crioulo, do restaurante Metzi - Divulgação - Divulgação
Prato que usa fubá de milho crioulo, do restaurante Metzi
Imagem: Divulgação

Entraram em contato com chefs de restaurantes e cozinheiros em São Paulo, como Bel Coelho, Joyce Galvão e a aprovação foi total, afinal, comer um milho crioulo é realmente muito mais gostoso. Atualmente, quase toda a produção vai para o restaurante mexicano Metzi, no bairro de Pinheiros, na capital paulista, além da venda no site do Projeto Crioulo.

Depois de uma quebra de safra em 2020, a safra de 2021 foi um sucesso, mais de 30 toneladas que vieram de 15 sementes. Atualmente o Projeto Crioulo produz fubá de milho preto e vermelho.

Fubás de milho crioulo, do Projeto Crioulo - Anna Guasti - Anna Guasti
Fubás de milho crioulo, do Projeto Crioulo
Imagem: Anna Guasti

Para Anna, o aprendizado não para. O milho preto que eles produziam pipoca, se mostrou muito mais eficaz para o fubá.

Não é só plantar. A biodiversidade, para ser introduzida dentro das Cadegs, precisa ter utilidade e divulgação a nível culinário".

E, para isso, é necessário todo esse resgate dos conhecimentos ancestrais, do tipo de plantio, do ritmo do milharal, do tempo de maturação. "O milho crioulo não é só milho, ele é uma área de vanguarda", conclui.