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Com cozinha criativa, ela resistiu à tragédia de Brumadinho e à pandemia

Genilda Delabrida, cozinheira do Ponto Gê - 2 - Nona Rocha/UOL
Genilda Delabrida, cozinheira do Ponto Gê - 2
Imagem: Nona Rocha/UOL

Nina Rocha

Colaboração para Nossa, de Brumadinho (MG)

10/02/2022 04h00

Nos fundos da casa onde nasceu, em Brumadinho (MG), Genilda Delabrida comanda um fogão a lenha e faz tantos pratos que é até difícil enxergar a superfície que recebe as pesadas panelas de barro que usa para cozinhar.

Os recipientes acomodam as criações que surgem do encontro entre a riqueza da culinária mineira, a cozinha de fusão e suas ideias nada convencionais: purê de batata com lavanda, chuchu confitado, sopa de graviola, moqueca de caju, carpaccio de pitaya, quiabo com fisális e torta salgada de pêra são alguns dos pratos servidos no Ponto Gê.

O restaurante funciona no quintal que divide fronteira com a linha de trem que corta a cidade transportando o que a mineração produz em Minas Gerais. Gê, como gosta de ser chamada, tem 54 anos e já trabalhou como professora de jovens e adultos e até com gestão de contratos.

Gê passou a servir o publico que ia ao museu Inhotim e o sucesso correu de boca em boca - Nina Rocha/UOL - Nina Rocha/UOL
Gê passou a servir o público que ia ao museu Inhotim, e a fama do restaurante correu de boca em boca
Imagem: Nina Rocha/UOL

Depois de perder a filha mais velha para uma pneumonia, quis tentar algo novo e mudar de vida. Com o turismo crescente por conta do Inhotim, a 5,5 quilômetros de sua casa, pensou em oferecer uma opção de jantar para o público que chegava à região para visitar o museu.

O Ponto Gê abriu em 2015, mas a culinária já era sua conhecida de longa data: Gê cresceu zanzando pelo bar do pai e a mercearia da mãe. Muito do que sabe, veio de suas observações.

Aprendi a cozinhar em família, sentindo o cheiro da feijoada com o meu avô, a sopa de cará da minha tia"

A cozinha sempre foi um lugar de alegria e entusiasmo. "A minha mãe era uma pessoa mal-humorada e na cozinha ela ria demais. Também aprendi muito com ela, que achava que tudo se curava com comida".

Ponto Gê, restaurante, brumadinho, minas - Reprodução - Reprodução
Mesmo nos pratos mais clássicos da culinária mineira, Gê coloca seu "algo a mais"
Imagem: Reprodução

As memórias gustativas foram incorporadas ao repertório gastronômico que criou ao longo de mais de 30 anos comandando panelas por aí. Acostumada a preparar banquetes de graça para amigos e familiares, Gê viu a possibilidade de gerar renda com os alimentos que preparava e trabalhou em vários restaurantes e hotéis da região de Brumadinho.

Com o cabelo cacheado preso por tecidos coloridos, ela se considera uma pesquisadora nata e se deleita testando combinações de aromas e texturas.

Sou curiosa e inquieta. Tem comidas que são muito comuns, aí penso que posso colocar algo a mais"

Especiarias e ervas frescas são detalhes importantes na assinatura da Gê na cozinha. "Adoro usar coisas que deixem o sabor dos alimentos mais acentuado. Não tem um tempero padrão, não uso salsinha e cebolinha em tudo, por exemplo, para tudo não ficar com o mesmo gosto."

Os pratos são preparados no fogão à lenha: tradição - Nina Rocha/UOL - Nina Rocha/UOL
Os pratos são preparados no fogão à lenha: tradição
Imagem: Nina Rocha/UOL
Além da criatividade em sabores e temperos, Gê aposta em produtos sempre frescos, da estação - Nina Rocha/UOL - Nina Rocha/UOL
Além da criatividade em sabores e temperos, Gê faz questão de produtos sempre frescos, da estação
Imagem: Nina Rocha/UOL

Quem quer conhecer a comida do Ponto Gê precisa fazer uma reserva para o jantar ao menos um dia antes. É essa antecedência que garante que os ingredientes estejam sempre frescos e que a sazonalidade dos alimentos seja respeitada: Gê dificilmente aceita a entrada de produtos congelados em seu espaço.

Ela também faz questão de conhecer bem a origem do que usa nos preparos. Agroecológicos e orgânicos produzidos na região são prioridades: estar perto dos fornecedores garante a qualidade dos ingredientes. "Gosto da proximidade de conhecer a origem, de saber quem está vendendo, como é produzido. É uma forma de colocar a saúde no prato, respeitar os alimentos e o meio ambiente".

A afetividade da cozinha perpassa todos esses processos"

Das reservas ao serviço, tudo é feito por Gê e seu esposo, Josiel João da Silva, de 55 anos. Jô é o responsável pelo mise en place, a preparação de carnes e a produção da caipirinha feita com ervas como lavanda e manjericão. O casal está junto há quase 20 anos e recebem os clientes com carinho e sorrisos cobertos pelas máscaras no quintal de casa.

Há 20 anos juntos: Josiel é o fiel escudeiro de Gê na cozinha e na lida com o restaurante - Nina Rocha/UOL - Nina Rocha/UOL
Há 20 anos juntos: Josiel é o fiel escudeiro de Gê na cozinha e na lida com o restaurante
Imagem: Nina Rocha/UOL

O espaço amplo tem o chão de brita, uma mini-horta e comporta mesas cobertas por forros coloridos de chita. Distanciadas por conta das medidas de saúde exigidas pela pandemia, as mesas recebem uma lotação máxima de até 20 pessoas por vez. Em outros tempos, elas ficavam mais próximas e até juntas: o Ponto Gê já chegou a receber 120 pessoas por noite. As reservas eram marcadas por turnos para que todos os clientes pudessem ser atendidos.

As lembranças do quintal cheio e do público se ajuntando entre as panelas para observar os pratos surgirem em tempo real deixam a cozinheira saudosa. Desde o rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão que devastou o município em 2019, a realidade é outra. O crime ambiental, que completou 3 anos em 25 de janeiro, aconteceu na alta temporada, quando estava com uma agenda ininterrupta fechada até fevereiro daquele ano.

Baque após de baque: nem bem se reergueu da tragédia de Brumadinho, veio a pandemia - Nina Rocha/UOL - Nina Rocha/UOL
Baque após de baque: nem bem se reergueu da tragédia de Brumadinho, veio a pandemia
Imagem: Nina Rocha/UOL

As reservas foram canceladas e o restaurante ficou fechado diante da tragédia. Gê buscou alternativas, como servir refeições para os trabalhadores de empresas terceirizadas que trabalhavam nas buscas e resgates na região e até tentou levar o restaurante para outras cidades.

Entre episódios depressivos e crises, quis deixar a tragédia que segue afetando a vida dos moradores de Brumadinho para trás, mas não conseguiu se adaptar.

Não gosto de fazer comida em série, mil pratos por dia. O tradicional prende muito a gente na culinária"

Depois do crime ambiental, o Ponto Gê ficou fechado por mais de um ano. Os únicos eventos que realizou foram jantares que clientes de vários estados do Brasil se juntaram para custear como uma forma de acolher os familiares das vítimas.

Antes que o restaurante e vários outros empreendimentos da cidade pudessem recuperar forças e retomar as atividades, veio a pandemia e todos seus impactos na cadeia de turismo e hospitalidade. Só em agosto de 2021, diante das taxas decrescentes de contaminação do coronavírus, que Gê pôde reabrir as portas com algumas limitações.

A gastronomia inventiva e afetiva é uma escolha que Gê não quer abrir mão - Nina Rocha/UOL - Nina Rocha/UOL
A gastronomia inventiva e afetiva é uma escolha que Gê não quer abrir mão
Imagem: Nina Rocha/UOL

O mês de dezembro teve bom movimento, mas com as chuvas intensas que chegaram em Minas Gerais em janeiro, as entradas para Brumadinho ficaram fechadas e mais de 90 cancelamentos foram feitos.

As dificuldades se impõem e muitas vezes Gê pensa em mudar o estilo do serviço que oferece para algo mais rentável e até em tentar outros recomeços longe das memórias que ainda amargam tanto a cidade, mas a vontade de seguir com uma gastronomia inventiva e que carrega sua personalidade ainda persiste.

Sou romântica, idealista. Prefiro continuar acreditando e sempre vou apostar na cozinha"