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Harmonização facial: para eles, maxilar definido é o novo abdômen sarado

A procura do público masculino por intervenções estéticas cresceu durante a pandemia e uma delas se tornou a favorita: o procedimento para a definição do maxilar - Arte/UOL
A procura do público masculino por intervenções estéticas cresceu durante a pandemia e uma delas se tornou a favorita: o procedimento para a definição do maxilar
Imagem: Arte/UOL

De Nossa

07/10/2021 04h00

Bastam alguns minutos no Instagram para notar uma uniformidade na aparência dos influenciadores. O maxilar marcado e "definido", assim como seus abdomens, protagoniza os "antes e depois" de processos para a harmonização facial, em que a mandíbula enquadra (literalmente) o rosto. Esse procedimento de preenchimento facial tem como um dos objetivos propagandeados "masculinizar o rosto" e se popularizou durante a pandemia do coronavírus, período em que as ligações por Zoom fizeram com que víssemos a nós mesmos constantemente nas telas dos computadores.

Há quem leve ainda a estética ao extremo, como o modelo italiano Luca Marchesi, que viralizou ao ensinar, de forma irônica, exercícios para conquistar a aparência tão desejada.

O vídeo, com mais de 3,3 milhões de visualizações no TikTok, é acompanhado de uma legenda desincentivando a prática desse treino, em que após três semanas o maxilar estaria milagrosamente mais instagramável do que nunca.

"Houve, sem sombra de dúvidas, uma maior procura dos homens pelos tratamentos estéticos, em especial os que têm como objetivo redefinir o contorno e o ângulo da mandíbula, além do queixo", afirma em entrevista para Nossa o cirurgião plástico Ricardo Boggio, coordenador da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

O objetivo dos pacientes, segundo o profissional especialista em procedimentos estéticos, tem sido a busca por um aspecto mais viril: "Alguns procuram também a transformação de uma face mais infantil, algumas vezes feminilizadas, em algo mais masculinizado", completa o cirurgião.

Já os motivos que levam esses indivíduos a procurar tais procedimentos são variáveis: desde problemas com a autoestima até a busca por uma melhor colocação no mercado de trabalho. Além, é claro, da "maior percepção da face e o aumento da autocrítica" com os eventos digitais.

"Com isso, os homens passaram a se observar mais e buscar mais tratamentos para o rosto", sugere Ricardo Boggio.

Como é feito o procedimento?
A avaliação, durabilidade e satisfação

O cirurgião plástico explica existirem várias possibilidades para tais intervenções, como o uso de toxina botulínica e de preenchedores de ácido hialurônico. Os procedimentos estéticos são feitos de forma individualizada e customizada para cada paciente em clínicas de dermatologia, de cirurgia plástica e, de acordo com o procedimento, também em consultório odontológicos.

"O mais importante é um exame clinico, no qual o profissional que vai aplicar as injeções faz uma avaliação da face e avalia as proporções", afirma ele sobre o procedimento não cirúrgico, que leva cerca de trinta minutos.

Podemos dividir a face ao meio, verticalmente ou horizontalmente, para termos um equilíbrio facial. Existem ainda programas de computador que avaliam e podem ser empregados nessas situações".
Ricardo Boggio

É importante frisar que tais procedimentos não duram para sempre. Como indica Boggio, a durabilidade do tratamento estético varia entre quatro e seis meses. Sendo assim, é necessária uma manutenção dentre esses períodos, estabelecida pelo médico, para que o rosto permaneça no aspecto buscado.

Além disso, quem decide por adotar esses preenchimentos deve estar atento também ao fato de que o rosto não necessariamente voltará a ter a aparência "original" — ou seja, como era antes da intervenção. Antes de se submeter à mudança, é imprescindível que o paciente esteja ciente da possibilidade e consulte um profissional de confiança.

Nem sempre volta ao estado 0. Às vezes, conseguimos manter ainda um certo resultado, mesmo após o término dos efeitos".

Um dos casos recentes mais conhecidos relacionados ao estranhamento com a harmonização facial é o do cantor Lucas Lucco. Após fazer o procedimento que mudou o formato de seu rosto, ele decidiu retirar todos os produtos aplicados. "Comecei a me reconhecer mais", disse Lucco nas redes sociais sobre o alívio ao reverter o processo.

Os nosso padrões de beleza
E a presença constante do maxilar definido

Assim como o ator Michael B. Jordan, considerado um dos "homens mais sexys do mundo", maxilar dos galãs de Hollywood seguem um estereótipo - Reprodução/Vanity Fair - Reprodução/Vanity Fair
Assim como o ator Michael B. Jordan, considerado um dos "homens mais sexies do mundo", maxilar dos galãs de Hollywood seguem um estereótipo
Imagem: Reprodução/Vanity Fair

Para entendermos essa avalanche de "faces quadradas" nas redes sociais, primeiro precisamos recapitular as nossas primeiras referências de beleza masculina.

Ainda na infância, para muitos de nós, são os príncipes da Disney que protagonizam esse espaço. Em cima de cavalos brancos, esses personagens sempre estiveram presentes no nosso imaginário como os responsáveis por salvar princesas de bruxas e dragões — o que Mulan, felizmente, mostrou ser completamente dispensável.

O que todos eles têm em comum? Além de espadas e roupas engomadinhas, um maxilar marcado, a fim de representar toda a imponência e virilidade.

Personagens de príncipes da Disney ajudam a criar imaginário de padrão de beleza masculina em que os maxilares definidos se destacam - Reprodução - Reprodução
Personagens de príncipes da Disney ajudam a criar imaginário de padrão de beleza masculina em que os maxilares definidos se destacam
Imagem: Reprodução

À medida que envelhecemos, os galãs de Hollywood são então apresentados a nós, criando assim um não-tão-novo padrão de beleza. Há algumas décadas, eram eles Marlon Brando, James Dean e Clint Eastwood. Atualmente, podemos citar Brad Pitt, Michael B. Jordan, Zac Efron, Timothée Chalamet, entre outros. Todos eles, com pouquíssimas exceções, ostentam maxilares invejáveis.

Clint Eastwood - Getty Images - Getty Images
Clint Eastwood
Imagem: Getty Images
Timothée Chalamet - Getty Images - Getty Images
Timothée Chalamet
Imagem: Getty Images

Jorge Miklos, sociólogo e analista comportamental que coordena uma pesquisa a respeito da contribuição da mídia para a constituição das masculinidades no imaginário brasileiro na UNIP (Universidade Paulista), contribui para essa teoria citando ainda o cowboy hollywoodiano John Wayne.

"Ele foi uma figura icônica e tinha esse rosto mais duro, quadrado e rígido, que expressava esse aspecto do masculino como algo mais viril e forte", diz o pesquisador a Nossa. "Ele tinha esse maxilar, que é um padrão indicativo de força, que de alguma forma se reapresenta hoje nas redes sociais e fora delas".

O ator e cineasta John Wayne - Reprodução - Reprodução
O ator e cineasta John Wayne
Imagem: Reprodução

A arte grega também já tinha sacado isso de alguma forma e retratado a figura do masculino dentro desse ideal, de força e rigidez. São valores que, de alguma forma, estão expressos nessa silhueta do rosto. Um traço indicativo que aponta para esses valores, que estão ligados a uma ideia de masculinidade".
Jorge Miklos

David di Michelangelo - Reprodução - Reprodução
David di Michelangelo
Imagem: Reprodução

A reinterpretação da vaidade masculina

Entre os famosos, Harry Style é um dos ícones da "nova beleza masculina" ao servir as unhas pintadas, por exemplo - Tyler Mitchell/Vogue - Tyler Mitchell/Vogue
Entre os famosos, Harry Style é um dos ícones da "nova beleza masculina" ao servir as unhas pintadas, por exemplo
Imagem: Tyler Mitchell/Vogue

Como apontado pelo cirurgião plástico Ricardo Boggio e facilmente percebido nas redes sociais, a maior procura dos homens por procedimentos estéticos chega a ser particularmente irônica. Ao mesmo tempo em que agora esses indivíduos "aceitam" e abraçam essas intervenções, há ainda uma necessidade de impor a masculinidade.

Para o sociólogo, essa notável reinterpretação da vaidade no comportamento masculino é fruto da publicidade.

"O mundo contemporâneo percebeu que isso é uma estratégia de mercado", opina Jorge Miklos. "Por outro lado, a beleza é muito recompensada. As pessoas que se aproximam de um padrão de beleza são mais notadas, elogiadas e recebem promoção. Isso já é provado cientificamente".

Isso tudo é programado. A gente tende a achar que é quase involuntário, acontece do nada ou pelo acaso, mas não. Isso é pensado. A indústria se prepara para o amanhã. As redes sociais pautam o padrão masculino, mas também são pautadas pela cultura de massa. Não existe relação unilateral".

Jorge faz ainda analogia a Karl Marx e comenta: "para você criar o produto, você precisa inventar o consumidor", o que, na opinião dele, é feito por meio das redes sociais e o grande sistema midiático, que, de diversas formas, incentivam os homens a buscar procedimentos estéticos, como o do maxilar, por exemplo.

A busca pela beleza ideal tem fim?

Apesar de ser utilizada para problemas físicos, disparo na procura de procedimentos estéticos levanta questionamentos sobre saúde mental - iStockphotos - iStockphotos
Disparo na procura de procedimentos estéticos levanta o alerta sobre limites para alcançar a beleza padrão
Imagem: iStockphotos

Na opinião do pesquisador Jorge Miklos, não. Embora faça questão de registrar que as cirurgias plásticas podem ser benevolentes aos indivíduos em alguns casos, o sociólogo levanta como argumento um estudo de que, ao contrário dos argentinos, os brasileiros gastam mais com cirurgias plásticas do que com terapias psicológicas.

"Chega a um ponto que nada satisfaz. Essa insatisfação é muito boa para o mercado. Esse sistema não suporta nos ver satisfeitos. Não é um bom negócio. Se o mercado te entregar algo que você fique plenamente satisfeito, ele vai à falência", opina. "É preciso vender algo que o sujeito possa fazer aquilo e fique satisfeito, mas dure pouco tempo, porque depois de seis meses ele vai estar olhando no espelho e pensando em mudar outra coisa".

Miklos finaliza dizendo que muitas vezes mudanças como a do maxilar são vistas como uma "promessa de felicidade". No entanto, essa felicidade é temporária.

"Mesmo que esse procedimento fosse definitivo, o homem vai chegar em casa e vai olhar para outra parte do corpo e falar: 'não, mas isso não está legal'", reflete o sociólogo. "A fronteira entre a necessidade e o desejo é um pouco nebulosa".