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Quarentena surreal: um diário direto do maior campo de refugiados da Europa

De costas, por motivo de segurança, o jovem afegão que relata para Nossa os primeiros dias de quarentena no campo de refugiados - André Naddeo
De costas, por motivo de segurança, o jovem afegão que relata para Nossa os primeiros dias de quarentena no campo de refugiados
Imagem: André Naddeo

Mustafá Nazari *

Depoimento a André Naddeo, da Grécia. Colaboração para Nossa

28/03/2020 04h00

O diário que você verá nesta reportagem foi escrito por um jovem que aqui vou chamar de Mustafá Nazari, um afegão fantástico, super inteligente e culto, que tinha visto Cidade de Deus algumas vezes e sabia mais ou menos a realidade das favelas brasileiras. Para compreender melhor sua realidade, as palavras fortes do relato que fez para Nossa e o impacto de uma quarentena em um campo de refugiados, permita-me contar, antes, onde mora este rapaz.

Mustafá vive na região de Moria, um vilarejo de mil habitantes na ilha grega de Lesbos, no mar Egeu. Realisticamente, trata-se de um grande terreno montanhoso repleto de olivos onde foi construído um espaço inicialmente desenhado para 3 mil pessoas, mas que já é o "lar" de 20 mil solicitantes de asilo. É a grande porta de entrada rumo à Europa. A Turquia está logo ali, a menos de 20 quilômetros. É o maior campo de refugiados e imigrantes do Velho Continente.

Oriundos de países como Síria, Somália e Congo, mas, predominantemente, Afeganistão, vivem aglomerados em contêineres. A maioria divide barracos paupérrimos de madeira molhada sem qualquer tipo de higiene básica dentro da chamada jungle, a floresta, nos arredores, ou, se preferir, numa grande favela de refugiados.

Moria é a capital da maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. E é uma bomba relógio humana prestes a explodir de vez.

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O maior campo de refugiados e imigrantes do Velho Continente cresce pelo terreno montanhoso da região
Imagem: André Naddeo

Desde que um caso de covid-19 foi anunciado oficialmente em Mitilene, a capital de Lesbos, existe o pavor de que o coronavírus seja o estopim de uma catástrofe humana ainda sem precedentes. Porque, claro, fazer quarentena dentro de quatro paredes, protegido efetivamente de qualquer infecção, exige uma mudança de comportamento, mas dá para tocar a vida. E quem não tem uma casa?

Pior: quem não tem sequer a oportunidade de voltar para a sua terra natal, como muitos brasileiros conseguiram fazer quando eclodiu a pandemia? Se isso acontece, o Talibã, com ou sem coronavírus, vai estar lá te esperando no Afeganistão. É o caso de Mustafá.

As linhas a seguir são o diário que este jovem afegão fez para Nossa durante essa semana. É o relato cheio de sonhos de quem está vivendo agora uma quarentena surreal, com exigências impossíveis de serem concretizadas. Um realidade nua e crua:

20 de março: o anúncio oficial

"Sou um jovem que deixou o Afeganistão pelos motivos da maioria: pela violência, pela guerra diária em nosso país. Tenho 20 anos de idade. Estou vivendo em Moria com o meu pai e duas irmãs. A mais nova tem 4 anos e a outra, 13. Deixamos o Afeganistão porque tememos por nossas vidas. Estivemos por seis meses entre Irã e Turquia, antes de chegar à Grécia, em dezembro do ano passado. Estamos há quatro meses no campo de Moria.

No dia 20 de março, há pouco mais de uma semana, nós estávamos sentados dentro da nossa casinha de madeira quando eles anunciaram pelos alto falantes: "Vocês devem evitar sair de casa, tenham cuidado com a higiene pessoal, usem máscaras e não estejam em ambientes cheios, com outras pessoas, para evitar a propagação do coronavírus".

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Péssimas condições: as moradias onde as famílias de refugiados vivem na região de Moria
Imagem: André Naddeo

A partir daquele momento e pelo menos os próximos 30 dias, vamos estar em regime de quarentena. Ninguém entra, ninguém sai de Moria, anunciaram. O máximo que estamos autorizados é ir ao mercado aqui ao lado. E somente um membro de cada família. Tudo controlado pela polícia grega. Escapou? Te pegaram? Multa de 150 euros.

"Que essa gente vá à merda", disse Hashim, meu amigo, imediatamente. Eu só pensava: "Acho que o coronavírus está com medo dos afegãos, não há outra explicação para esse vírus não ter chegado aqui ainda". Explico para vocês: essa é um pouco a nossa mentalidade. Um pouco no estilo "nada pior pode acontecer comigo agora. Eu já estou vivendo o meu pior". E vale lembrar que nós somos maioria aqui, tipo uns 75% dos habitantes de Moria são afegãos.

Eu posso entender perfeitamente porque meu amigo não deu a mínima para esse anúncio. Temos outros problemas aqui, muito maiores que um vírus. O estresse diário já é o bastante para a gente. Esperar é o momento mais difícil para solicitante de asilo. Minha entrevista oficial, por exemplo, será apenas no final de 2021.

Ou seja, eu tenho que esperar um ano e meio com a minha família para saber se vamos ser aceitos na Grécia ou não. Não sabemos o que o amanhã vai nos trazer. Todo o nosso esforço para chegar aqui terá sido em vão? Conseguem entender que temos preocupações muito maiores? Não é que o covid-19 não preocupe, todos aqui entendem que a situação é grave, mas a cabeça segue funcionando de outra maneira.

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Folheto distribuído para os refugiados com as recomendações contra o covid-19
Imagem: Mustafá
Além do anúncio, a administração do campo também colou cartazes pelo campo explicando o que as pessoas devem fazer para não se infectarem. Informações sobre lavar as mãos pelo menos oito vezes por dia, evitar aglomerações, essas orientações que todos já sabemos de cor e salteado. Eles pensam que a gente não acompanha as notícias, mas sabemos perfeitamente o que está acontecendo no mundo inteiro. É quase impossível, no entanto, não pensar no quão absurdas são essas determinações. Meu amigo, isso é um campo de refugiados.

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Aglomeração: fila para comida no campo de refugiados
Imagem: Mustafá
Vamos ser mais didáticos: três vezes por dia temos que ir para a fila da comida. São duas, três horas esperando por um prato de massa ou arroz. Duas ou três horas numa fila apertada, com um monte de gente respirando, tossindo e espirrando próximo uma das outras. Então, simplesmente não devemos mais ir recolher nossa comida? É isso que eles querem? Entendem agora um pouco melhor porque o meu amigo mandou tudo e todos à merda?

Está claro que, quando o vírus chegar, se é que já não chegou, vai atingir a todos por aqui. Mas o que a gente pode fazer? Em cada barraco são, no mínimo, oito pessoas vivendo juntas. Meus amigos brasileiros, nós não temos outra opção. É impossível uma "quarentena digna" em Moria.

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Campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos, no Mar Egeu
Imagem: André Naddeo

21 de março: feliz ano novo!

Em nosso segundo dia de quarentena, celebranos o Nowruz Mubarak. Significa feliz ano novo em nossa língua materna, o farsi - ou persa, como você preferir. É o primeiro dia do ano do nosso calendário. É a primeira vez que eu passo o Nowruz em regime de quarentena, pensei na hora.

Minha ideia era ir à praia, que está bem próxima daqui, para celebrar esta data tão importante com meus amigos, minha família. O Afeganistão é um país que não tem saída para o mar, então é muito normal que um cara como eu tenha esse fascínio pela praia. Muita gente aqui viu o mar pela primeira vez na vida quando atravessou da Turquia para a Grécia naqueles botes cheio de gente que vocês veem na TV.

Claro que não fomos à praia. Em Moria, você quase nunca consegue o que você quer. Essa é a realidade. Muito menos em tempos de coronavírus e com a polícia fechando todas as estradas de acesso. Eles não deixaram a gente sair para celebrar o nosso ano novo.

Durante a quarentena, você só sai de Moria por algo muito importante, muito necessário, dizem eles. Mas ninguém me explicou o que é muito importante ou muito necessário. Se alguém estiver morrendo, por exemplo, podemos sair? Mas é o que já está acontecendo, de forma lenta e gradual. Enfim.

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Campos de olivo: as árvores foram cortadas para garantir a lenha para cozinhar e se aquecer
Imagem: André Naddeo

Nessas ocasiões especiais, dá ainda mais saudade de casa. Para os gregos, um dia normal. Para nós, afegãos, um dia muito especial. Todos colocam as roupas novas que ainda têm e se cumprimentam. Sim, damos as mãos, nos abraçamos. Lembra do que eu disse de que nada pode ser pior do que já estamos vivendo?

Em nossa tradição, no Afeganistão, o Nowruz é uma data que se celebra na natureza. Não restou outra alternativa senão fazer piquenique nos campos de olivo. Cortamos um pouco das árvores e fizemos nossa fogueira para cozinhar e celebrar.

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A comida à que têm acesso os refugiados
Imagem: Mustafá
A comida é uma merda. Precisamos cozinhar. Não tem fogão. Temos que comprar com o pouco dinheiro que ainda resta dos mercados locais. Quando o dinheiro acaba, tem que fazer fila. Não tem jeito. E agora estamos numa encruzilhada, já que sequer podemos sair para fazer compras sempre que queremos e podemos.

Eles controlam. Dizem que apenas 10% das pessoas podem sair por dia de Moria. Dos 20 mil, então, apenas 2 mil por dia. Como eles controlam isso eu não sei, mas tudo está mais louco do que nunca por aqui, então vamos relaxar um pouco, porque senão a mente não aguenta. Juntamos todos o pouco de comida que tínhamos para celebrar.

Mesmo sem praia, o Nowruz foi incrível. Tantas famílias e crianças celebrando juntas. Os campos estavam enfeitados com flores brancas e vermelhas que as pessoas colhiam das redondezas. Dava a impressão de que estávamos num grande carnaval com tantas cores em meio ao barro e os toldos brancos, verdes e azuis dos milhares de barracos. Ao menos nesse momento, eu me sentia alegre e contente. Feliz ano novo!

22 de março: e mais ironias...

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Fila para a água no campo de refugiados
Imagem: Mustafá
Vejo no meu celular que é o Dia Internacional da Água. Eu acho legal que celebrem o dia da água. Por que não? A questão é que, ironicamente, justo nesse dia, eles não deram...água para a gente. Cortaram a distribuição. Uma vez por dia, além da comida, também fazemos fila para conseguir água mineral. E no dia da água, amigos, não vai ter água. Era só que o me faltava.

"Lavem as mãos oito vezes por dia", eles pedem. Como eu posso fazer isso? Especialmente quando você vive nos campos de olivo, onde não há torneiras. Vamos fazer as contas: eu tenho que ir todos os dias para a fila da comida. São seis, sete horas do dia para café da manhã, almoço e janta. Logo, se me der tempo para comer, tenho que carregar o que eu puder de galões e garrafas de água, em outras viagens até a "torneira mais próxima", do outro lado do campo. Isso tudo para o meu único sustento e higiene requeridos.

Quarentena em Moria? Eles podem falar o que quiserem, mas isso aqui não existe. "Tenham uma boa higiene", eles reforçam todos os dias. No meu setor, não há um único banheiro, um único chuveiro. Eu tenho que andar tudo isso de novo e, com sorte, vou poder fazer minhas necessidades depois de outra meia hora na fila. Quarentena?

Nesse dia internacional sem água, fiquei pensando também como vai ser se o coronavírus se espalhar aqui por Moria. Eu não conheço muito de Lesbos, mas imagino claramente que os hospitais não darão conta do número de pessoas [nota: existe apenas um hospital geral em toda a ilha, com cerca de apenas 20 leitos de UTI]. As poucas clínicas no campo são tão ruins quanto todo o sistema em si de funcionamento.

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Sem condições de higiene, o campo é uma "bomba relógio" para epidemias
Imagem: André Naddeo

23 de março: a nossa violência de cada dia

Nosso quarto dia de quarentena. Pela manhã, acordamos com gritos de um rapaz que havia sido roubado. Levaram o celular dele no alto da floresta, onde às vezes vamos porque o sinal do celular funciona melhor. Levaram também as calças do cara. As calças. Ele passou pelo nosso barraco gritando, só de cuecas.

O pior é que as crianças, várias delas, viram essa cena. Espero que não fique em suas memórias. Meu Nowruz já estava arruinado, como se fosse para lembrar onde eu vivo e qual é a minha situação real. Minha sensação é de que eu vivo aqui há anos.

Moria lembra muito as favelas brasileiras. Lembro sempre daquele filmaço "Cidade de Deus". Mas, claro, nos filmes é divertido. Aqui, a ficha cai e eu lembro que essa é a minha realidade. Não existe ficção. Mas, sim, pelo que eu leio, as condições são muito parecidas com as das favelas brasileiras. Ninguém se importa com a gente.

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"As condições aqui são muito parecidas com as das favelas brasileiras", diz Mustafá
Imagem: André Naddeo

Em Moria há diversas lojinhas. Barracos onde as pessoas vendem ovos, macarrão, cigarro, suprimentos em geral. Claro que se ninguém pode sair e repor esse estoque, os preços já estão aumentando. Como vamos sobreviver nessas condições? Além disso, a situação está ficando mais tensa do que nunca.

Deixa eu explicar um pouco mais da nossa realidade: aqui em Moria, se você tem uma loja dessas, qualquer negócio, tem que pagar imposto para as gangues locais. Eles te ameaçam e exigem pagamento. Não sei qual a porcentagem, mas a questão é que nesse dia algo horrível aconteceu.

Como ninguém está vendendo muito, já que não há reposição do estoque local por conta da quarentena, os vendedores não têm mais dinheiro para pagar essas máfias. Ou naturalmente estão se recusando. O que esses mafiosos fizeram? Um corredor. E eles obrigaram cada um desses vendedores a passar por uma revista.

Abaixavam as calças, checavam os bolsos, roubavam o que essas pessoas estavam guardando para sobreviver. Quem não tinha nada no bolso ou recusava a revista, recebia a ameaça: "vamos queimar o seu barraco com toda a sua família dentro". Bem-vindos a Moria, amigos brasileiros!

24 de março: esquecidos de vez

Vamos para o quinto dia. A "novidade" de hoje é que a polícia grega agora já não está mais fazendo o trabalho de segurança noturno. Escureceu, eles deixam de patrulhar as estradas de acesso, e não estão sequer mais dentro do campo. Todo mundo comentando, mas eu só consigo pensar: qual a grande diferença? Eles nunca protegeram a gente mesmo.

A maioria já não ousava caminhar à noite por Moria. Há dois meses, os somalis invadiram as vielas para protestar a morte de um companheiro assaltado e morto na noite anterior. Eles exigiam a prisão dos culpados e mais segurança no campo. Acredito que faria uma grande diferença se existisse de verdade um sistema de segurança em Moria.

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Refugiado afegão em Moria
Imagem: André Naddeo

As autoridades gregas também já não deixam os voluntários trabalhar aqui. Quarentena, claro. Pouquíssimos estão autorizados a seguir trabalhando. A falta de voluntários está deixando as pessoas loucas. É como se o desamparo fosse, mais do que nunca, oficial.

O esquema aqui é assim: se eu digo "não faça isso" para outro refugiado, ele vai me responder "quem você pensa que é para me dar ordens". Mas se um voluntário branco diz algo, é sempre "sim, senhor", "sim, madame". Quase todos os voluntários são brancos, europeus ou americanos.

Essa gente é valente. Os fascistas aqui da ilha queimaram, há umas semanas, um centro comunitário, um dos poucos lugares onde podíamos aprender algo, ter aulas, atividades etc. Eles foram atacados pelos fascistas. Resistiram. E, agora, não podem entrar mais no campo por causa do vírus.

Estamos esquecidos de uma vez por todas.

25 de março: minha realidade

Vocês me pediram para escrever um diário. Estou aqui já no sexto dia de quarentena e tenho que mandar esse texto para que vocês leiam, se quiserem. Desculpem se está sendo difícil demais ler tudo isso. Nem todo mundo gosta de ler sobre o que acontece, de verdade, aqui em Moria. Mas essa é a nossa realidade, nua e crua. Sorry.

Eu não tenho nenhum sintoma de coronavírus. Minha doença, que me deixa tonto às vezes, é o peso do cotidiano. A pressão diária que sofremos que não nos deixa pensar claramente, sem mencionar os traumas de um passado recente. Por isso precisamos tanto de atenção. E por isso sentimos falta dos voluntários. Acredito que não exista uma força de vontade. É a negligência da agonia alheia. Já estávamos e seguimos vivendo uma catástrofe global, por mais que alguns ainda resistam em dizer que está tudo bem, que é apenas uma gripe.

* O nome real do jovem foi mudado por motivos de segurança, mesmo razão pelo qual não aparecem fotos suas nesta reportagem. André Naddeo é coordenador da associação Planeta de TODOS, na Grécia, além de jornalista. Ele comanda um programa de oficinas de jornalismo para jovens refugiados. O valor do pagamento por esta reportagem será revertido na íntegra para a família do Mustafá.