Uma noite em Veneza

Entre drinques, tetas e assassinatos, as histórias escondidas pela noite de Veneza

Passamos um final de semana em Veneza com uma missão muito certeira: dar um rolê na cidade mais romântica do mundo de noite e descobrir as histórias que aqueles becos e canais seculares escondem.

De dia, é invadida por milhares de turistas, mas o que acontece quando o sol se põe? A cidade se despe e resplende a lua, às vezes a única a iluminar seus becos.

Veneza não tem baladinha, não tem lugar pra dançar, não tem boteco pra beber até o dia raiar. O ápice da balada rola nos "bacaros", os botequins espalhados pela lagoa. Eles são o ponto de encontro da juventude na cidade que vê seus moradores envelhecendo.

A história de Veneza é marcada pela água que corre sob as mais de 400 pontes que ligam as mais de 100 ilhas da lagoa. Nesse universo multifacetado histórias de quando Veneza ainda era a Sereníssima República (de 697 a 1797) se misturam a narrativas e crônicas, por vezes violentas, como num filme noir.

Aqui, se a curiosidade é sua amiga, você não vai ficar na mão. Nós, por exemplo, tínhamos um roteiro, mas ele foi pro brejo já no início da primeira noite.

A ideia era começar pelo Harry 's bar, que fica na praça San Marco, mas caminhamos até a ponte das tetas, que fica perto da região de San Polo.

Pontes, putas e assassinos

"Ponte das tetas". Só pelo nome já dá pra imaginar o que rolava ali. Durante o reinado da Sereníssima, as prostitutas mais jovens passavam horas nas janelas dos prédios mostrando os seios nus para atrair clientes para os vários bordéis que ficavam na beira do canal, em ambos os lados da ponte.

Na verdade, a prostituição foi incentivada pelos doges, os governantes de Veneza entre os séculos 15 e 16 para tentar "combater" a homossexualidade, e havia prostíbulos por tudo que é lado na cidade. Até na região de San Marco. Ali as casas de luz vermelha ficavam na Calle della Mandola.

A gente também foi lá dar uma olhadinha e quando chegamos nos deparamos com a Calle dei Calle dei Assassini que hoje se chama Rio Tera' dei Assassini. Um dia essa Calle foi um rio e para atravessá-lo se passava por uma ponte que hoje não existe mais. Ela foi demolida em 1971, ano em que o rio foi enterrado.

Daquela ponte hoje resta só o nome: "ponte dei assassini" (ponte dos assassinos, em português), como ficou popularmente conhecida porque de noite, ali, se cometiam vários crimes e os corpos eram jogados no rio. Isso rolava nos primórdios da Sereníssima. A única pista que as autoridades tinham sobre os criminosos é que usavam barba.

A situação ficou tão fora do controle que, no ano 1128, o doge da época, Domenico Michiel, proibiu os venezianos de usarem barbas grossas e longas. Além do decreto contra as barbas, o Doge ainda ordenou que fossem colocadas velas nos becos mais escuros da cidade. Segundo os venezianos, foi graças à ação dos bandidos que surgiu a ideia da iluminação pública.

Pois bem, na esquina da Calle dei Assassini com a Calle della Mandola demos de frente com uma cena distópica: um bar chamado Brasília.

Depois, fomos atrás do Palazzo Maurogonato, que fica no Campo Santa Maria del Giglio, e hoje pertence ao hotel Ala. No início de 1900 o Palazzo foi palco do caso que ficou conhecido como "os negócios dos russos".

Foi quando uma mulher chamada Maria Tarnowska usou seus amantes para matar o futuro marido aqui — a ideia era ficar com a grana de uma apólice de seguro em que ela era a beneficiária.

Quem nos contou essa história foi o Bubu, o gerente do local atualmente. Ele nos recebeu no American Bar do hotel que levava o nome da Tarnowska.

Este é o Palazzo onde moravam o conde Padel Kamarovskij e a condessa Tarnowska. Eles costumavam dar umas festas hard para época, regadas a sexo e drogas, mas sem rock and roll, porque na época não existia.

"Foi durante uma dessas festas que Nikolai Naumov, um dos amantes da condessa, atirou no Kamarovskij. Isso foi em 1907", contou. Três anos após o crime, a Tarnowska foi processada e condenada a oito anos de prisão por ser "mentalmente instável".

Bubu brincando disse que, às vezes, o fantasma da condessa dá uma volta por ali só pra ver se está tudo certinho. Na hora desta foto, Bubo perguntou brincando: "Está bem aqui? Olha que a condessa tá do meu lado".

Próxima à Ponte do Rialto, no Canal Grande, nos deparamos com um estacionamento de gôndolas. Fiquei pensando no quanto elas são usadas e cheguei à conclusão que elas também merecem repouso. Elas e os gondoleiros que as conduzem pelos canais durante os dias.

Em frente aos barcos que estavam cobertos por uma espécie de lona, se via de longe a silhueta de um homem sentado num banquinho. O breu da noite fazia daquela imagem um resplendor quase poético. Lembrava o jazz. E subindo as escadarias da ponte praticamente o encontramos.

Na verdade, a melodia que ouvimos era de uma música basca que parecia um fado. Saía da boca de quatro amigas que em plena madrugada estavam comemorando 23 anos de amizade.

Maria Feliu vinha de Alicante, na Espanha, Ambra Trotto, da Suécia, Sara Colombazzi e Nina Rossi, de Bolonha, aqui da Itália mesmo. Aliás, foi na Universidade de Bolonha que elas se conheceram. Cada uma seguiu um rumo na vida, mas a amizade que construíram ficou para sempre.

"Não é a primeira vez que nos encontramos para comemorar nossa amizade. Fazemos isso sempre. E sempre escolhemos um lugar diferente", contou Trotto que naquele momento era, junto com as amigas, uma grande cantora noturna.

Ligue o som clicando no ícone no canto superior direito e ouça as amigas cantando

Deixamos o quarteto para trás e continuamos a caminhar. Em algumas ruelas tinha um silêncio tão absurdo que a gente só conseguia ouvir o som das nossas solas de sapato batendo no chão.

Sentado no meio da praça do Campo Santo Stefano encontramos Paolo, veneziano, professor aposentado de economia do turismo. Era madrugada, quase três horas da manhã. "Esse é o melhor horário para admirar Veneza. Não tem turista, a cidade está vazia, reina o silêncio", disse o italiano.

Paolo, que ensinou sobre o turismo, agora fugia dele. "A situação está fora de controle, a gente que mora aqui acaba ficando com pouca opção para ver o chão da cidade. Só de noite mesmo", contou.

Ele contou de sua infância e de como corria pelo campo, livre. "Quando era pequeno todo mundo se conhecia, a gente vivia em uma espécie de comunidade, um tomava conta do outro. Eu brincava sempre de correr em volta do poço".

Bom, a gente não podia deixar de fora o Harry's Bar desse rolê noturno. Apesar de fechar cedo (às 23h encerra o batente), o bar é um lugar icônico da cidade. Foi aberto em 1931 por Giuseppe Cipriani e se tornou um ponto de encontro de intelectuais e artistas como, por exemplo, Peggy Guggenheim, Orson Welles, e Ernest Hemingway, que por sinal tinha uma mesa reservada lá.

Loris, o garçom com cara de bravo (mas que no fundo é um pão de gente), nos serviu o Bellini - drinque da casa inventado por Cipriani. A gente foi lá também por isso: tomar o Bellini no lugar onde foi criado, tentando sentir a atmosfera de uma época passada.

Veneza é assim, seja de dia ou de noite, a cidade faz a gente sonhar. Ps: Acordamos rapidinho quando o Loris trouxe a conta, mas isso é uma outra história.

Publicado em 11 de janeiro de 2024

Reportagem: Janaina Cesar
Fotos: Lucas Lima
Edição: Paula Rodrigues