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Caiu a ficha: quando brasileiros no exterior viram a gravidade do covid-19

O designer Daniel Motta vive em Helsinque, na Finlândia, o ponto da Europa ocidental mais próximo da Ásia - Arquivo pessoal
O designer Daniel Motta vive em Helsinque, na Finlândia, o ponto da Europa ocidental mais próximo da Ásia
Imagem: Arquivo pessoal

Adriana Negreiros

Colaboração para Nossa

22/03/2020 04h00

Quando as primeiras notícias sobre a infecção por coronavírus começaram a ganhar o noticiário, em janeiro, a reação de muitos foi de indiferença. Como se aquele vírus, tão distante, jamais fosse mudar suas vidas. Houve ainda quem se apegasse aos índices de mortalidade da doença e, comparando-os ao de outros males, tratasse-o por um mero resfriado sem maiores consequências.

Mesmo os que moram no exterior - e vivenciaram, antes de quem está no Brasil, o momento de agravamento da situação - tiveram seus momentos de negação. A seguir, oito brasileiros com residência na Europa e um nos Estados Unidos relatam como passaram do descrédito à forte preocupação.

Maryan - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Maryan Id, 29 anos, bacharel em Direito
Vive em Roma, Itália, há 3 anos

Quando caiu a ficha
"Trabalho na Via del Corso, uma das ruas de comércio mais conhecidas de Roma. Fica perto de dois pontos turísticos: a Piazza Venezia e a Piazza di Spagna, locais com fluxo enorme de pessoas. No momento em que notei esses lugares vazios, fiquei assustada. Até então, achava que a situação era mais grave no norte do país. Pensava que Roma estava poupada. A ficha caiu, mesmo, quando o governo decretou a quarentena e fechou tudo, menos os serviços essenciais".

Cena mais marcante
São inúmeras, mas resumo em um sentimento: num dia, você está trabalhando, dando risadas. No outro, está trancada em casa, com medo da polícia - e também de perder trabalho. Você se vê limpando embaixo do sofá para ocupar a mente. Meu aniversário foi no último dia 17. Minhas amigas vieram para a frente do meu prédio, com cartazes de parabéns. Minha vontade era de pedir para que subissem, que pudéssemos comer alguma coisa, nos abraçar. Mas claro que não fizemos isso".


Ivan cavalcanti - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Ivan Cavalcanti, 31 anos, historiador
Vive no Porto, Portugal, há um 1 ano e sete meses

Quando caiu a ficha
"No dia 3 de março, após um mês de trabalho no Brasil, peguei um voo do Recife para o Porto, com escala em Madri. A ficha caiu quando pousamos em solo espanhol. Embora, no voo, muitos já estivessem de máscaras - inclusive o alemão que sentou na poltrona grudada à minha - foi no aeroporto que senti a tensão com toda a sua força. Muitos transeuntes protegidos com máscaras e luvas e as pessoas tentando, visivelmente, manter distância umas das outras".

Cena mais marcante
"A primeira ida ao supermercado, após a recomendação do governo para que todos fiquem em casa. Tive um impacto positivo: ao contrário do que escutamos falar em outros países, aqui há um forte senso de responsabilidade por parte dos portugueses, que tentam comprar apenas o necessário e, assim, evitar o desabastecimento".

Marina - brasileiros - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Marina Lima Medeiros, 35 anos, arquiteta
Vive em Viena, Áustria, há um 1 ano e 2 meses

Quando caiu a ficha
"Aqui nunca estivemos em estado de negação, pois a situação na Itália, que faz fronteira com a Áustria, já nos causava muita tristeza e preocupação. Porém, na quinta-feira, dia 12, dei-me conta de que havíamos passado para um outro estágio. Dois dias antes, o governo tinha anunciado as primeiras medidas de emergência para o controle do contágio. O caminho para o escritório foi bastante tenso, com pessoas se evitando e tentando não tocar nas superfícies do metrô. A partir do dia seguinte, comecei a trabalhar em regime de home office".

Cena mais marcante
"Neste dia 20, começou, oficialmente, a primavera no hemisfério norte. Este costuma ser um dia feliz. No dia 19, fui ao supermercado e aproveitei para passear no parque perto de casa. Os passeios curtos ainda são permitidos, embora as aglomerações sejam proibidas. O parque estava bem vazio, mas ainda assim vi policiais pedindo a quem estava sentado em bancos ou lendo, ao sol, que voltasse para casa. É estranho que num dia tão bonito e numa data tão festiva estejamos todos tensos e enclausurados."

Luiz paulo 2 brasileiros - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Luiz Paulo Ferraz, 32 anos, doutorando em história da América Latina
Vive em Providence, Estados Unidos, há 1 ano

Quando a ficha caiu
"Durante um tempo, o governo americano desdenhou do que estava acontecendo. Mas, quando ocorreu a primeira morte, em Washington, houve uma mudança no tom. A mim, a coisa pareceu mais séria quando as universidades começaram a adotar medidas de corte de financiamento para viagens (primeiro, internacionais; depois, domésticas) e suspensão de aulas. Aos poucos, os supermercados passaram a ficar mais lotados, com falta de produtos nas prateleiras. Na rua, todos se evitavam, tentando, ao máximo, passar longe uns dos outros"

Cena mais marcante
"Um dia, estava na rua quando avistei, ao longe, dois casais, andando em sentidos opostos. De repente, um deles avançou para o meio da rua, rapidamente, só para não cruzar com o outro. Isso me pareceu bastante estranho".

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Imagem: Arquivo pessoal
Rafaela Diógenes, 31 anos, professora de teatro
Vive em Barcelona, Espanha, há 7 anos

Quando a ficha caiu
"No momento em que as escolas começaram a fechar".

Cena mais marcante
"São muitas. Moro em um apartamento com varanda de frente para uma praça e, assim, posso observar, durante a quarentena, o que se passa lá fora. Fico impressionada quando vejo a praça, usualmente tão movimentada, completamente vazia. Por outro lado, fico igualmente chocada quando noto a presença de pessoas ali. São sentimentos contraditórios.

Também há cenas bonitas. Todos os dias, às 8 da noite, vamos às janelas e varandas para aplaudir os profissionais de saúde. Ficamos assim, batendo palmas, por cerca de cinco minutos. Depois disso, meu vizinho costuma tocar uma música. Então dançamos, todos. À distância, mas juntos, de alguma maneira".

Daniel Motta - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Daniel Motta, 39 anos, designer gráfico
Vive em Helsinque, Finlândia, há 6 meses

Quando a ficha caiu
No final da semana passada, houve uma reunião na agência em que trabalho em que fomos orientados a trabalhar a partir de casa. Naquele dia, ao sair do trabalho, passei no supermercado para comprar pão e encontrei prateleiras totalmente vazias. Na de papel higiênico, então, não havia nada. Foi quando percebi que as coisas iriam mudar".

Cena mais marcante
Ver o Stockmann, o principal shopping da cidade, completamente vazio. Este lugar é sempre lotado, porque oferece descontos para os turistas. Helsique é o ponto da Europa ocidental mais próximo da Ásia, então sempre encontramos muitos viajantes do Japão e da China por ali, fazendo compras.

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Imagem: Arquivo pessoal
Taís Rocha 28 anos, estudante de Administração
Vive em Berlim, Alemanha, há 4 anos

Quando a ficha caiu
"Foi o agravamento da situação na Itália que me fez mudar de ideia. No momento em que a quarentena foi decretada para os italianos, convenci-me, totalmente, da gravidade do problema. Trata-se de uma medida muito drástica numa democracia, embora essencial, para reduzir a velocidade de contágio do vírus".

Cena mais marcante
"Ver muitas pessoas usando máscaras e luvas descartáveis".

Alvaro vidal - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Alvaro Vidal Filho, 37 anos, advogado
Vive em Londres, Inglaterra, há 15 anos

Quando a ficha caiu
"Em fevereiro, fiz uma viagem para a Ásia. Estive em Singapura, na Malásia e nas Filipinas. Quando voltei para Londres, eu e meu marido fomos orientados a permanecer em quarentena. Enquanto estávamos isolados, fomos notando o crescimento da tensão. Mas foi ao perceber o agravamento da situação na Itália que caiu a ficha de que, de fato, não estávamos diante de só mais uma gripe".

Cena mais marcante
"Nos supermercados, ver idosos de cestas vazias na mão. Em muitos deles, já não há mais ovos, macarrão ou arroz. Pessoas de certa idade, muitas delas vivendo sozinhas, não têm condições de fazer uma feira grande. Não conseguem nem levar as compras para casa. É muito triste ver alguém mais velho tentando comprar alguma coisa, sem encontrar nada, porque as prateleiras estão vazias".

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Imagem: Arquivo pessoal
Hugo Fitipaldi, 31 anos, fisioterapeuta e doutorando em Epidemiologia Genética e Molecular
Vive em Malmo, Suécia, há 3 anos e meio

Quando a ficha caiu
"O ponto de virada ocorreu quando os casos começaram a aumentar na Itália e, logo na sequência, surgiram as primeiras notícias de casos aqui na Suécia. Em fevereiro, as escolas suecas param por uma semana e, durante o período, muitas famílias viajam para o norte da Itália. Isso gerou muita preocupação entre os moradores. Pessoalmente, senti o impacto quando os eventos científicos da universidade começaram a ser cancelados".

Cena mais marcante
"Vivo perto da fronteira com Copenhagen, capital da Dinamarca. Quando aquele país anunciou o fechamento das fronteiras, houve uma certa histeria entre os suecos, com corrida aos supermercados. Houve quem fizesse compras em grandes quantidades, o que contribui para o desabastecimento. Entristeceu-me ver os interesses individuais sobressaindo-se aos coletivos. Muitos acumulam alimentos em casa, enquanto outros passam por privação".