Histórias do Mar

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Reportagem

Como restos de misterioso navio surgido na praia mudaram vida de uma cidade

Vinte dias atrás, Gordon Blackmore, um jovem canadense de 20 anos de idade, estava caçando aves marinhas na deserta praia da comunidade de Cape Ray, na província de Newfoundland, na costa sudeste do Canadá, quando viu uma sombra escura no mar, bem perto da areia.

Como sempre frequentou aquela praia e nunca havia visto tal coisa, ele correu para casa e avisou a mãe, Wanda Blackmore, que foi ver pessoalmente o "achado" — um grande casco de madeira carcomido pelo tempo, mas ainda em bom estado, de algum barco do passado.

Mas qual? Qual barco teria sido aquele? Como e quando ele teria afundado? E as pessoas que nele estavam? Teriam morrido ou sobrevivido? Se sobreviveram, será que seriam antecedentes dos moradores da região?

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Imagem: Corey Purchase

Desde então, a pequena comunidade de Cape Ray, um minúsculo povoado de 250 moradores, não para de buscar respostas para esta perguntas, e não falam de outra coisa nas ruas, nas redes sociais, e nas muitas entrevistas que vem dando a jornais e emissoras do país inteiro.

Porque o fato de ninguém saber que "navio misterioso" — como o achado passou a ser chamado — é aquele, fez o assunto bombar na imprensa e nas redes sociais.

E os orgulhosos moradores de Cape Ray adoraram isso.

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Imagem: Reprodução Instagram

"Um pedaço da nossa história"

"É um pedaço da História que apareceu bem na nossa praia. E pode ser um pedaço da nossa história!", diz, entusiasmada, a mãe do rapaz que achou os restos do barco, na beira do mar.

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"É a nossa chance de transformar Cape Ray em atração turística", vislumbra Wanda Blackmore, cuja primeira providência foi chamar um amigo fotógrafo, Corey Purchase, para registrar os escombros na praia, com um drone, em imagens que viralizaram país afora.

Não sabem se é histórico ou não

A principal razão para os restos daquele desconhecido barco ter chamado tanta atenção — e deixado os moradores de Cape Ray intrigados e excitados ao mesmo tempo — está justamente no fato dele não ter sido identificado.

Pelo menos não até agora.

No último fim de semana, uma equipe do Escritório Provincial de Arqueologia de Newfoundland foi até a praia de Cape Ray examinar os destroços, que impressionam tanto pelo tamanho quanto pelo seu relativo bom estado — considerando que estão submersos há bastante tempo no mar, a julgar pelos seus formatos.

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Imagem: Anne Osmond

Eles tiraram fotos, gravaram vídeos e coletaram amostras da madeira do casco, para tentar determinar a idade e origem do barco - já que sua identidade, dada a quantidade de naufrágios que ocorreram no passado na perigosa costa leste canadense, será bem mais difícil de precisar. E isso os próprios técnicos já admitem.

"A princípio, o casco, que mede cerca de 25 metros de comprimento, parece ser de carvalho maciço, um tipo de madeira que não existe na região. Se for isso, já saberemos que ele veio de outro país. E como ele possui cavilhas de madeira, em vez de pregos, isso permite supor que, talvez, tenha sido construído no século 19, ou mesmo antes disso", disse o arqueólogo-chefe da equipe, Jamie Brake, que, no entanto, para certa decepção dos moradores de Cape Ray, completou:

Mas é muito cedo para dizer se este naufrágio é historicamente significativo ou não

"De qualquer forma, é um grande evento para a região", contemporizou o presidente da Sociedade de Preservação de Naufrágios de Newfoundland e Labrador, Neil Burgess, tão entusiasmado com o achado quanto os moradores do povoado.

Vigília na praia

Desde que aquele grande casco apareceu na praia, todos os moradores de Cape Ray se uniram para protegê-lo.

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Imagem: Shaw Bath

Além do fotógrafo, dois dias depois do achado, dois mergulhadores locais, que trabalham no serviço de limpeza dos portos de Newfoundland, entraram no congelante mar da praia de Cape Ray para amarrar os escombros e prendê-los em pedaços de trilhos de trem fincados na areia, a fim de evitar que eles sejam levados embora pela mesma maré que os trouxe até quase a areia.

"Ele já tinha se movido uma dezena de metros", diz, preocupado, o morador local Bert Osmond, que, por isso mesmo, tomou uma decisão radical: decidiu passar a fazer vigília diária na praia, a fim de monitorar os escombros bem de perto.

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Imagem: Anne Osmond

"Não podemos deixar que ele volte para o mar", diz, enfático, e argumenta:

Se a maré levá-lo embora, jamais saberemos que barco foi esse

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Como ele foi parar ali?

Ninguém sabe como o "Navio Misterioso" surgiu, do nada, na beira da praia - apenas que aqueles escombros nunca foram vistos.

Uma das teorias preferidas dos moradores de Cape Ray é que os escombros estavam soterrados ali mesmo, mas foram removidos da areia pela ação furiosa das ondas geradas pelo furacão Fiona, que atingiu a região em 2022 — ocasião em que destruiu diversas casas no povoado.

Ou que tenham sido arrancados do leito marinho a certa distância e levados até a praia, pelo mesmo motivo.

"É possível", disse a comissão que visitou os escombros neste fim de semana, para jubilo dos habitantes de Cape Ray, que também assumiram o papel de "investigadores".

Ossadas em outra praia

Para colocar ainda mais lenha na fogueira do assunto do momento em toda a região, na semana passada, a Polícia canadense foi acionada para investigar o surgimento de ossadas humanas em falésias que erodiram na beira da praia na vizinha Ilha Prince Edward, do outro lado do Golfo de São Lourenço, onde também fica o povoado de Cape Ray.

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Embora distante e sem nenhuma relação com o "Navio Misterioso" (a Polícia logo tratou de explicar que aparecimentos desse tipo são comuns na costa canadense, já que, no passado, as vítimas de naufrágios costumavam ser enterradas nas próprias praias), os ossos encontrados na ilha próxima deixaram os moradores de Cape Ray ainda mais excitados, porque o mesmo pode ter ocorrido ali. Ou seja: seus antecedentes também podem estar enterrados na areia.

Mas, por enquanto, eles não pensam em sair escavando a praia, em busca de eventuais ossadas, até porque a área faz parte de um parque ambiental e isso não é permitido.

Mas, se ficar provado que eles podem ser descendentes dos sobreviventes daquele naufrágio, quem sabe?

Temem que o mar leve embora

A preocupação dos moradores de Cape Ray em proteger aqueles escombros e impedir que o mar os leve embora novamente procede: nem sempre restos de velhos naufrágios que surgem nas praias ficam para sempre à mostra.

Ao contrário, quase sempre são novamente engolidos pelo mar ou pelas areias em constante movimento. Por isso, é preciso agir rápido.

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Quatro anos atrás, o aparecimento de escombros desse tipo transformou um simples morador da cidade americana de Holland, às margens do Lago Michigan, na divisa entre Estados Unidos e Canadá, em um quase arqueólogo, porque, como era época da pandemia, os pesquisadores não tinham como ir até o local do achado para investigá-lo.

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Imagem: michiganshipwrecks.org

A saída foi usar o telefone celular para instruir o morador, que era completamente leigo no assunto, sobre como medir e avaliar os escombros, de forma que eles pudessem, remotamente, descobrir a qual barco ele pertencera.

E, contrariando as possibilidades, deu certo - como pode ser conferido clicando aqui.

"Não vamos sossegar enquanto não descobrir que "Navio Misterioso" é esse. É a coisa mais importante que aconteceu em Cape Ray nos últimos 100 anos", garante a obstinada mãe do rapaz que achou aquele intrigante casco de madeira na beira do mar, quando buscava simples aves marinhas na praia.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do publicado, Cape Ray fica na costa sudeste do Canadá.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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