Histórias do Mar

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Reportagem

Quem foi o Almirante Negro, tema da Paraíso do Tuiuti na Marquês de Sapucaí

Na madrugada desta segunda-feira (12), a escola de samba Paraíso do Tuiuti leva para a Marquês de Sapucaí o tema "Glória ao Almirante Negro", que expõe a vida e as injustiças cometidas contra um simples marinheiro negro que, no início do século passado, ousou desafiar o governo brasileiro, exigindo o fim dos castigos físicos nos navios da Marinha de Guerra do Brasil.

Mas, quem foi o tal "Almirante Negro", merecedor de tal homenagem? É o que você vai ler aqui.

Contra as chicotadas

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Imagem: Augusto Malta/Acervo Fundação Biblioteca Nacional

Até o início do Século 20, a Marinha do Brasil (naquela época chamada Marinha "de Guerra" do Brasil), ainda punia com castigos físicos, quase sempre chicotadas, os marinheiros que, na visão de seus superiores, tivessem cometido falhas ou irregularidades.

Oficialmente, a abominável prática havia sido extinta na corporação em 1889 - 65 anos após o uso de castigos corporais ter sido proibido na população em geral, pela Constituição Imperial de 1824, e um ano após a abolição da escravatura no Brasil.

Mas, na prática, a bordo dos navios ela persistiu, disfarçada sob regras das "Companhias Correcionais", decisões arbitrárias que davam aos oficiais o direito de aplicar punições aos marinheiros de má conduta, "cujas falhas não fossem tão severas a ponto de serem julgadas por um Conselho Militar" — prática que havia sido herdada dos antigos portugueses.

Tratados como escravizados

As punições eram aplicadas nos conveses dos próprios navios, diante dos demais marinheiros, "para que servissem de lição e alerta" aos demais membros da tripulação — uma barbaridade que espelhava o tratamento dedicado aos escravizados.

Aquilo sempre incomodou muito um dos marinheiros mais especiais da corporação: o jovem negro gaúcho João Cândido Felisberto, que ingressara na Marinha aos 14 anos de idade, levado por um almirante amigo do patrão de seus pais, que eram escravizados em uma fazenda no interior do Rio Grande do Sul (naquela época, a totalidade dos marinheiros e grumetes da Marinha do Brasil eram negros, pobres e igualmente tratados como escravizados).

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Imagem: Acervo Fundação Biblioteca Nacional

A semente a revolta

Na Marinha, João Cândido logo se destacou pela facilidade no aprendizado, e no talento natural para a vida no mar.

Em pouco tempo, tornou-se um timoneiro confiável, e sua habilidade o levou a ser incluído na tripulação brasileira que, em 1906, foi enviada à Inglaterra, para ser treinada nos dois mais novos — e poderosos — navios encomendados pelo governo brasileiro: os encouraçados São Paulo e Minas Geraes.

Lá, além de aprender a movimentar as duas grandes embarcações, o jovem timoneiro tomou conhecimento de dois fatos: a extinção das punições na Marinha Inglesa, muitos anos antes, e o bem-sucedido motim no encouraçado russo Potemkin, ocorrido um ano antes, contra o regime tirânico dos oficiais daquele navio. E aquilo fez com que a semente da revolta brotasse dentro dele.

250 chibatadas

A gota d'água viria logo depois, quando, no retorno ao Brasil, em novembro de 1910, o capitão do Minas Geraes, comandante João Batista das Neves, navio no qual ele passou a servir, determinou que um dos marinheiros, o também negro Marcelino Rodrigues de Menezes, fosse punido com 250 chibatadas.

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O castigo fez com que o acusado chegasse a desmaiar durante as chicotadas, mas, ainda assim, a punição continuou - para total indignação dos demais marinheiros, especialmente João Cândido, que assistiu tudo calado. Mas revoltado.

Naquele dia, o carismático marinheiro — que já era uma espécie de líder entre os marujos, todos negros, justamente por se opor aos castigos físicos - decidiu que, a exemplo do que já haviam feito ingleses e russos, era preciso pôr um ponto final naquela barbárie também na Marinha do Brasil.

João Cândido, então com 32 anos de idade, chamou alguns companheiros, que compartilhavam a mesma opinião, e marcou para o dia seguinte, 22 de novembro de 1910 (quando o Minas Geraes, acompanhado de outras embarcações, estaria na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, então sede do governo brasileiro), a insurreição contra os maus tratos nos navios da corporação.

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Imagem: A Careta/Biblioteca Nacional Digital

Assumiu o controle do motim

O plano original previa aproveitar uma saída do comandante do Minas Geraes em terra firme para os insurgentes tomarem posse do navio — e, numa ação conjunta com aliados em outras embarcações da Marinha, forçar o governo do então recém-empossado presidente Hermes da Fonseca a determinar o fim da prática abusiva, além de melhorar os soldos dos marinheiros, que quase nada recebiam pelo trabalho que faziam. Mas o comandante Batista das Neves voltou antes do esperado e, após uma discussão com um dos rebeldes, foi morto, bem como outros dois oficiais.

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João Cândido se opôs às mortes, e assumiu o controle do motim. Em seguida, enviou uma mensagem ao governo brasileiro, na qual apresentava os motivos do levante, e mandou que seus companheiros nos demais navios participantes da ação (nada menos que quatro), apontassem seus canhões para a cidade. E, como forma de pressão, autorizou um disparo de advertência — que, no entanto, por acidente, atingiu uma casa e matou duas crianças.

Nascia o "Almirante Negro"

Durante quatro dias, a Capital Federal ficou sob a mira dos canhões dos navios da própria Marinha, mas agora comandados por João Cândido — que, com a destreza de um bom timoneiro, e com o que aprendeu na Inglaterra sobre as capacidades do Minas Geraes, manobrava com maestria o grande navio dentro da baía.

Nascia o "Almirante Negro", como os jornais da época passaram a chamar o líder dos revoltosos — apelido que ficaria para sempre ligado ao seu nome.

Acuado — e temeroso de que a audácia daqueles marinheiros levasse ao bombardeio da cidade —, o governo descartou uma retaliação militar e optou por uma "alternativa diplomática".

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Imagem: Correio da Manhã/Biblioteca Nacional Digital
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O próprio presidente Hermes da Fonseca negociou com João Cândido o fim do levante — que entraria para a História como a "Revolta das Chibatas" —, aceitando banir os castigos físicos nas instituições do país, e dando anistia aos revoltosos. Mas não foi bem assim que aconteceu.

Traído pelo governo

Terminado o movimento, mais de 1.200 marinheiros foram expulsos da corporação, e outros deles, presos — especialmente João Cândido, um dos dois únicos que sobreviveu às insalubres condições do cárcere privado em uma base da Marinha, na própria Baía de Guanabara, onde 16 companheiros seus morreram na mesma noite, vítimas de sufocamento pela cal viva usada para desinfetar as celas.

Mais tarde, da solitária João Cândido foi enviado para um hospício, sob a alegação ter enlouquecido. Quando conseguiu provar não estava maluco, veio outro golpe vingativo: foi mandado para julgamento, pelo levante contra o governo. Julgado, foi absolvido. Mas, em seguida, expulso da Marinha.

Terminou como pescador

João Cândido passou a viver como pescador na Baia de Guanabara, já que sempre que conseguia emprego como timoneiro em algum barco era rapidamente demitido, por pressões políticas.

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Imagem: Arquivo Edmar Morel/Biblioteca Nacional

E assim foi até sua morte, em 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos, de câncer no intestino, quando o "Almirante Negro" já havia sido homenageado até com letra de música: o sucesso "Mestre-Sala dos Mares, de Aldir Blanc e João Bosco, imortalizado na voz de Elis Regina, na década de 1970 — que, ainda assim, também por pressão dos militares, sofreu alterações nas expressões originais "marinheiro" (que virou "feiticeiro"), "negros" (que deu lugar a "santos") e sobretudo "almirante" (que foi trocado por "navegante").

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Imagem: Arquivo Nacional

Perseguido até hoje

A perseguição da Marinha (que, até hoje, se refere ao movimento como a "Revolta dos Marinheiros", e não "da Chibata") persistiu mesmo após a morte de João Cândido.

Em 2021, após o Senado brasileiro ter concedido anistia post mortem a ele e demais marinheiros participantes da revolta de 111 anos antes (o que desagradou em cheio os militares), a corporação também se opôs à proposta de que o nome do líder dos revoltosos fosse incluído na lista dos "Heróis da Pátria", como um "símbolo da luta antirracista". E, mais uma vez, não conseguiu.

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Hoje, além de batizar um grande navio petroleiro brasileiro, e de ter virado estátua em um dos principais pontos da cidade do Rio de Janeiro — não por acaso, bem diante do palácio onde a Princesa Isabel assinou a lei que aboliu a escravidão no Brasil, em 1888 —, a vida do marinheiro que entrou para a História por sua bravura e senso de justiça, já foi retratada em três filmes, e virou enredo de escola de samba em meia dúzia de oportunidades.

A última delas será em algumas horas no desfile da Paraíso do Tuiuti na Marquês de Sapucaí.

E o povo deve aplaudir de pé.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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