"UTI? Sério?"

Cuca relata dias de luta contra covid-19 em meio ao trabalho que fez do Santos finalista da Libertadores

Gabriel Carneiro e Gabriela Brino Do UOL, em São Paulo e Santos Fernanda Luz/AGIF

Era um sábado e o Santos jogaria no domingo, pelo Brasileirão. No meio da semana tinha sido eliminado da Copa do Brasil para o Ceará, mas o técnico Cuca, de 57 anos, sentia mais do que a pressão e o nervosismo de um momento de instabilidade do time naquele novembro. Era físico mesmo. Dor de cabeça, mal-estar, uma sensação de coração acelerado e o cansaço como se tivesse acabado de correr cem metros.

Depois de passar num hospital a 1,5 km do CT Rei Pelé, fazer exames e receber o diagnóstico positivo para covid-19, foi encaminhado a outro na capital paulista para ser internado. Uma precaução, dado o histórico de problemas cardíacos. O problema é que o quadro só fez piorar.

"Para os jogadores, a covid, graças a Deus, não deixa muitas consequências, porque eles são muito saudáveis. Já para a gente que é mais sedentário e com alguns problemas de saúde, como no meu caso, ela ataca. Atacou meu pulmão, peguei hepatite, fiquei seis dias no hospital, alguns com taquicardia, coração disparado, tomando muito remédio para controlar. Você vai piorando, vai piorando...".

Aí, no sexto dia de internação a doutora Fabiana pegou no meu braço e falou: 'você está mal, você está com pneumonia. Nós vamos te levar lá para a unidade crítica geral'. Eu perguntei: 'você está falando sério?'. Ela: 'sim'. E me levaram."

Cuca ficou quatro dias entre UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e semi-intensiva. Além da hepatite, sofreu com lesões pulmonares e enfraqueceu muito durante o tratamento. Mandou áudios praticamente sem voz pelo celular, o que fez família e amigos temerem pelo pior. Depois daquele jogo, no dia 8 de novembro do ano passado, empate por 1 a 1 com o Red Bull Bragantino, o Santos teve outro no sábado seguinte —vitória por 2 a 0 sobre o Internacional— que o treinador nem viu, sonolento por causa dos remédios.

A luta que ele travava era por muito mais que três pontos. Uma luta da qual seu sogro, Augusto, de 81 anos, e tantos outros não saíram vencedores.

Para muitas pessoas esse é o fim, acaba. Você vai enfraquecendo, entuba, medicam para você não ficar se batendo e acaba. É assim. É um sopro, é um sopro. Assim acabou para o Marcelo Veiga, para o meu sogro, para mais de 200 mil brasileiros. Você não fica dono de você, fica refém, fica pensando que não está com a família, com os filhos, tua mulher, tua mãe, tua neta. Naquela hora você pensa: 'será que eu podia ter feito alguma coisa de diferente?'."

Fernanda Luz/AGIF

Sem chance de contato com familiares — o que é um dos grandes dramas da internação por covid-19 — e sabendo tanto do risco de morrer, quanto da consciência das pessoas próximas dessa possibilidade, Cuca colocou suas esperanças num objeto da sala da UTI.

"Tinha uma cadeira ali do meu lado e eu falei: 'eu tenho que sentar nessa cadeira'. Não conseguia porque estava muito fraco, cheio de coisa enfiada, pendurada, dreno... Teve uma noite em que saí, lutei, tirei tudo aquilo e sentei na cadeira. Aí acho que disparou tudo os negócios lá, veio a médica e ela ficou mais feliz que eu, falou 'você conseguiu sentar nessa cadeira, eu deixei ela para isso'. Eles fazem isso, sabe? Dali para frente peguei mais força ainda para sair."

Eu não pensei coisa ruim, para dizer a verdade. Não pensei em morrer nenhuma vez. Eu tinha certeza que ia melhorar."

A sobrecarga do pulmão diminuiu, a respiração melhorou, o vírus foi embora. E Cuca recebeu alta.

Ao todo, dez dias hospitalizado e mais nove em casa em recuperação. Não conseguiu participar de quatro jogos do Santos, inclusive os dois válidos pelas oitavas de final da Copa Libertadores, contra a LDU. Naquela altura, o torneio já era seu grande foco para a temporada. Aquela havia sido só uma interrupção nos planos, antes de chegar à final no próximo dia 30, contra o rival Palmeiras. Motivo de força maior.

"Saúde é a coisa principal da nossa vida. Jogo você vai ganhar, vai perder, mas vai ter sempre outra oportunidade. E na doença, não. Sempre peço para Deus para ter saúde."

Veja a entrevista com Cuca

"Tudo que Deus faz é bom"

Um gol sofrido pelo Santos nas quartas de final da Libertadores é o mais novo argumento de Cuca a favor da fé que o acompanha até no modo de se vestir. Aliás, não é novidade esse lado religioso e como ele influencia no visual. Durante o grande trabalho da carreira no Atlético-MG campeão do torneio continental em 2013 ele usou uma camiseta preta com a imagem de Nossa Senhora no peito.

Agora a camisa é outra. É clara, com a imagem de Maria e do menino Jesus. Superstição?

"Pô, Nossa Senhora no peito. Isso não é superstição, isso é fé. Maria é a mãe de Jesus, é tudo que eu acredito na vida, se tem alguma coisa em que acredito. Peço para ela as coisas. Deus deve ter tantos pedidos, então vou no caminho mais curto, a mãe leva para o pai e para o filho e vem mais rápido para nós [risos]. Sei que tem muita gente que não acredita, mas minha missão é essa, tentar propagar essa fé que eu tenho", diz o treinador finalista da Libertadores, de fé reforçada.

Quando eu tomei o gol do Grêmio lá em cima da hora eu queria dar um soco numa porta, passar a raiva que eu estava. Depois a gente veio para cá e com dez segundos a gente fez o gol. Daí fiquei em casa de madrugada pensando: 'será que se eu tivesse ganho do Grêmio de 1 a 0, o Kaio Jorge sairia para roubar aquela bola com dez segundos e fazer o gol? Ou a gente ia esperar porque tinha 1 a 0?' Aí entra: tudo que Deus faz é bom. A gente vai entender aquele gol que você tomou como uma obra que estava sendo preparada para a gente. E eu creio muito nisso."

Cuca

Sem coração de boi

Além desse lado religioso, apegado à fé e aos símbolos, Cuca também chama atenção pelo folclore das suas superstições. Em uma entrevista recente ao "SporTV" ele confirmou pela primeira vez duas histórias que circulavam há muito tempo nos bastidores do futebol.

Uma vez, quando treinava o Botafogo, pendurou um coração de boi com ataduras de pano no meio da sala de aquecimento antes de um jogo contra o Sport. Todos que passavam tinham que dar um soco na peça de carne - o que para Cuca deu energia aos jogadores. Outro episódio foi na Arena da Baixada, em Curitiba, quando ele impediu que o ônibus do Botafogo entrasse de ré no estádio para que o elenco passasse praticamente no meio da torcida do Athletico-PR: "Aquilo ligou o meu time."

E neste Santos, foi necessária alguma intervenção fora do comum?

"[Coração de boi e ônibus que não dá ré] São coisas de outros tempos, 2007, por aí, uma necessidade que veio na louca na cabeça naquela hora. Sem folclore também, porque não vai ganhar jogo, perder nada, é só para dar uma agitada no ambiente. Às vezes é bom, eu gosto de fazer. Mas aqui, não. A gurizada é ponta firme, todo mundo é do bem", diz o treinador.

Agora é na base da conversa, sem coração de boi.

"O que me motiva muito no trabalho é me sentir bem. Não faço multa nos meus contratos porque quando eu não sinto que tenha um caminho para melhorar, para subir, eu vou embora e dou a vez para outro que chega e geralmente vai bem. Aqui eu nunca senti que tivesse que sair. Mesmo na maior dificuldade eles [jogadores] se dão as mãos, como estão dando. Pode até o resultado não vir, mas você fica satisfeito com o trabalho, tem prazer em vir trabalhar."

Ivan Storti Ivan Storti

Por que o foco na Libertadores?

Cuca disse em seu primeiro dia no Santos, em uma conversa com o elenco, que estaria na final da Libertadores. Como a coluna De Primeira já publicou, o discurso do técnico foi de que o Santos acabaria sendo eliminado da Copa do Brasil, lutaria pelo G6 no Campeonato Brasileiro, provavelmente ficando fora da zona que dá vaga na fase de grupos, "mas a Libertadores a gente vai ganhar".

São projeções que a gente faz. Não é projeto, é projeção. É um 'ó, podemos chegar aqui'. Nós não tínhamos elenco para bater em três frentes."

"No Campeonato Brasileiro são 38 jornadas. Jogo domingo e quarta, como está sendo por conta da pandemia, você não tem elenco para ir até a final buscando título. A covid te pega, as lesões te pegam, os cartões te pegam e você, promovendo jogadores, não tem a certeza do retorno imediato. Tem um momento em que você tem que fazer escolhas. E a escolha que a gente fez... não que eu quisesse ficar fora da Copa do Brasil, mas que nós puséssemos a força máxima na Libertadores."

Mas por que a Libertadores, e não a Copa do Brasil — em que o Santos entrou direto nas oitavas de final?

"A gente tem que ser justo, tem que agradecer. Quando peguei o Santos tinha duas vitórias na Libertadores. Se você não tem essas duas vitórias não traz para casa jogos decisivos, como foi com a LDU, o Grêmio e o próprio Boca. Então, em tempo, preciso creditar ao Jesualdo [Ferreira, ex-técnico do Santos] a parte dele na campanha. Como já tinha duas vitórias era um caminho, tinha uma classificação encaminhada, e é muito difícil conseguir isso. O primeiro mata-mata é sempre mais complicado, porque você não tem a manha do mata-mata, você vai pegando, passando e criando corpo, é importante ser em casa."

Jesualdo dirigiu o Santos nas duas primeiras rodadas da Libertadores, vitórias contra Defensa y Justicia na Argentina e Delfín, na Vila Belmiro. O trabalho durou só 15 partidas, mas deixou como legado para Cuca a mensagem sobre qual deveria ser o foco da temporada.

Sebastião Moreira/AFP Sebastião Moreira/AFP

Uma contratação em cinco meses

Uma dívida com os alemães do Hamburgo causou uma punição da Fifa ao Santos, que em março do ano passado foi impedido de contratar novos jogadores. Cuca chegou em agosto — com a suspensão ainda em vigor — e cheio de preocupações, porque o time tinha acabado de perder dois titulares (Éverson e Eduardo Sasha) e o elenco se enfraquecia cada vez mais.

Ele esperava ter reforços na sequência do trabalho. E o clube realmente negociou alguns nomes, como José Welison, Renato Kayzer, Thaciano, Matheusinho, Cazares, Laércio e Robinho. O caso mais emblemático, porém, foi do volante Elias.

Ex-Corinthians, Atlético de Madri e seleção brasileira, o jogador de 35 anos aceitou o convite de Cuca para jogar no Santos em 2020, mas teria que ficar alguns dias só treinando enquanto o clube negociava a dívida na Fifa. Foram duas semanas assim. Até que ele recebeu uma proposta do Bahia e decidiu aceitar sem nem estrear.

"Acabamos tendo que pedir desculpas ao Elias, conversamos e deixamos ele seguir a vida para o Bahia. Uma pena", diz Cuca, que era entusiasta das contratações e passou a vergonha do pedido de desculpas.

O Santos conseguiu um acordo com o Hamburgo em outubro. Mas rapidamente duas novas punições foram impostas, de dívidas com o Huachipato (Chile) e Atlético Nacional (Colômbia). Só deu tempo de registrar duas contratações: Robinho, que dias depois teve o contrato suspenso por causa de uma debandada de patrocinadores incomodados com sua condenação por estupro; e o desconhecido zagueiro Laércio —na prática, o único reforço que Cuca teve em cinco meses. E que retribuiu com gol nas quartas de final da Libertadores.

Elias rescindiu com o Bahia neste mês por opção do técnico Dado Cavalcanti. Foram 16 jogos e muitas críticas pelo desempenho abaixo do esperado. Já o Santos continua proibido de registrar jogadores.

Se você para naquele momento e começa a se queixar por causa disso ou daquilo, briga com um diretor ou outro, não iria resolver nada. Você tiraria seu foco, tua energia e ia acabar diminuindo a confiança do teu grupo. Não fizemos nada disso, não reclamamos nunca, de nada. Nem estamos reclamando. A gente aceita as coisas que acontecem porque... eu tenho muita fé em Deus, sabe? Nossa Senhora. Essas coisas vêm para arrumar

Cuca, Sobre a punição da Fifa

Quem sabe se o Santos pudesse contratar nós poderíamos não ter chegado? Pela necessidade que a gente teve, mais do que tudo, conseguimos criar Marcos Leonardo, Ângelo, Ivonei, o Sandry, o Bruno, uma série de outros meninos, quem mais? Alex, Wagner Palha, o John, o João Paulo. As coisas foram se encaixando, é coisa de Deus mesmo. Nem é trabalho nosso isso aí, tem que creditar ao papai do céu."

Sobre os garotos que ganharam espaço

Fernanda Luz/AGIF Fernanda Luz/AGIF

"Como vamos ser favoritos se o Palmeiras fez mais pontos?"

Agora é final da Libertadores.

O Santos tem oito vitórias (Defensa y Justicia duas vezes, Delfín duas vezes, Olímpia, LDU, Grêmio e Boca Juniors), três empates (Olímpia, Grêmio e Boca Juniors) e uma derrota (LDU), ao longo da campanha, com aproveitamento de 75%. Já o Palmeiras soma nove vitórias (Tigre duas vezes, Bolívar duas vezes, Delfin duas vezes, Guaraní, Libertad e River Plate), dois empates (Guaraní e Libertad) e uma derrota (River Plate), com aproveitamento de 80,5% pontos disputados.

"Como que nós vamos ser favoritos se o Palmeiras foi quem mais pontos fez na competição? Se o Palmeiras perdeu uma única partida, agora na última para o River. Como que o Santos vai ser favorito? O Palmeiras tendo o elenco que tem?", questiona o técnico santista, antes de completar:

"Acho que não tem favorito, acho que é meio a meio, pau a pau, 50% cada um, na boa. Acho que as chances são iguais para os dois."

Ivan Storti

Fica depois da Libertadores?

Há muita expectativa sobre o futuro de Cuca após a Libertadores (além do Mundial de Clubes, em caso de título continental) e o Campeonato Brasileiro de 2020. Apesar de as competições de 2021 começarem logo na sequência, sem férias, seu contrato acaba e será necessário discutir a renovação.

O presidente santista Andres Rueda, eleito no fim do ano passado, já afirmou que conta com o técnico e o vê como um grande parceiro, mas por enquanto as palavras não resolvem nada. O técnico que sobreviveu a 2020 depois de quatro dias na UTI e deu perspectivas a um time totalmente desacreditado quer esperar um pouco mais.

Eu não vou falar nada. Eu quero guardar toda a minha energia para esses jogos do Brasileiro e da Libertadores. Não quero perder energia e gás nenhum com outra coisa que não seja isso. Até os jogadores tento tirar eles dessas negociações, entro em linha de frente para que eles estejam mobilizados. Ainda mais que eu sou comandante, não quero perder nenhum segundo com nada que não seja material de jogo."

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