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Clube dos 13: a história da "Superliga brasileira" que mudou nosso futebol e foi implodida pela TV

Gabriel Carneiro e Thiago Braga Do UOL, em São Paulo Almeida Rocha/Folhapress

A "Superliga Europeia" movimentou o noticiário esportivo nos últimos dias. Da tentativa de se criar uma competição independente que pudesse desafiar Fifa e Uefa para que os times mais ricos da Europa se enfrentassem mais vezes e assim arrecadassem mais dinheiro, deixando de lado a histórica Liga dos Campeões, passou em apenas dois dias a uma fantasia repleta de polêmicas quando metade de seus fundadores debandou — o Arsenal (ING) pediu até desculpas. Ao final de seu segundo dia, ela já estava suspensa para "remodelação".

É um movimento de rompimento raro, mas não inédito. O Brasil já teve um movimento assim nos anos 80. O "Clube dos 13" era uma espécie de Superliga verde-amarela. A organização foi fundada diante de um contexto de crise da CBF, promoveu duas vezes o Campeonato Brasileiro (em 1987 e 2000) e teve poder real no futebol nacional durante 24 anos.

"A Copa União em si foi um baita sucesso, 21 mil torcedores em média. Somados os patrocínios que a competição tinha à época, significava para os clubes renda equivalente a 42 mil torcedores por jogo. Mas no ano seguinte já não se consolidou porque os clubes não tiveram coragem de seguir em frente. Houve o velho acordo das elites brasileiras", recorda Juca Kfouri, colunista do UOL.

O Clube dos 13 implodiu em 2011, quando Corinthians e Flamengo capitanearam um processo de individualização da negociação dos direitos de transmissão com a Globo e esvaziaram o modelo coletivo que vigorava desde os anos 80. O C13 parou de fazer sentido e todos os movimentos posteriores de união, o maior exemplo foi a Primeira Liga, não tiveram futuro.

Almeida Rocha/FOlhapress
Peter Byrne/PA Images via Getty Images

Chegou, mas tá saindo fora

Há rumores sobre a criação de um novo campeonato de clubes de elite da Europa há meses. Em janeiro, jornais europeus começaram a publicar notícias sobre formatos e clubes participantes, mas a bomba só estourou mesmo no domingo (18), quando 12 clubes oficializaram a criação da "Superliga". Seria uma ameaça à tradicional Liga dos Campeões da Uefa.

Estavam a bordo da iniciativa seis times ingleses (Manchester United, Liverpool, Manchester City, Arsenal, Chelsea e Tottenham), três da Espanha (Real Madrid, Barcelona e Atlético de Madri) e outros três da Itália (Milan, Inter de Milão e Juventus). A proposta era realizar um torneio com 15 times fixos e cinco participantes escolhidos pelos fundadores. Um campeonato sem rebaixamento ou mérito esportivo para classificação e que previa somente confrontos entre esses times, nada mais. As reações foram severas.

O ex- lateral direito Gary Neville, da seleção inglesa e do Manchester United, foi o primeiro grande crítico da decisão. Ele se disse enojado.

O excesso de reações negativas deu o tom da cobertura sobre a Superliga nos últimos dias, apesar da defesa empolgada de Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, que justificou a nova competição por uma escalada de perda de interesse dos torcedores na Liga dos Campeões: "Gera mais dinheiro. Um Madrid x Manchester ou Barcelona x Milan é mais atraente do que um jogo contra uma equipe modesta que participa da competição."

Desde domingo torcedores — inclusive dos clubes envolvidos — protestaram contra a criação da Superliga, até que Chelsea e Manchester City iniciaram ontem (20) um movimento de retirada contra prejuízos de imagem. Até que, na noite de terça-feira, foi anunciado que o projeto estava suspenso.

Esporte é mérito dentro de campo, ano a ano, com altos e baixos. Querer garantir um lugar entre os grandes sem precisar jogar bola, só com o "peso da camisa", é elitista, egoísta e até estúpido mesmo. Tanto se batalha para tornar os campeonatos menos desiguais e os caras vão lá e propõem implodir o futebol de seus países."

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Alicia Klein, colunista do UOL

Uma Superliga europeia prejudicaria clubes pequenos e médios na Europa, assim como acabar com os estaduais prejudicaria os times do interior no Brasil. Essa elitista Superliga não sacou ainda que este modelo idealizado por ela 'mata' o principal ingrediente que fez e faz do futebol o esporte mais popular do planeta, a zebra."

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Milton Neves, colunista do UOL

Mauro Cezar: "Mais um exemplo de ganância na sociedade"

Nasce o conceito de "12 grandes"

Cinco anos antes da criação da Premier League, que concentra oito dos 20 clubes mais valiosos de todo o mundo, e 34 anos antes da tal Superliga Europeia, o Brasil viveu uma experiência comparável. O contexto era de crise da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), cujo presidente foi à mídia para relatar que a realização do Campeonato Brasileiro de 1987 corria riscos porque não havia dinheiro.

Octávio Pinto Guimarães dizia na época que os custos que a CBF arcava, de viagens e hospedagens dos times, já estava maior do que a arrecadação com a Loteria Esportiva —a fonte de renda da entidade. Lembrando: o momento de crise financeira e alta inflação no Brasil. A solução era tornar o Brasileirão um torneio regional e diminuir os gastos evitando viagens interestaduais. Os clubes, em crise, não aceitaram.

Estamos falando de um momento com vários pontos de crise do futebol brasileiro. Nossa representatividade mundial estava em queda, não ganhávamos a Copa do Mundo desde 1970 e nossos craques passaram a ser exportados, principalmente para a Itália. As más gestões são cíclicas no Brasil, mas aquele momento era deplorável. A CBF alegou que não tinha dinheiro, então os clubes que tinham torcidas expressivas juntaram a fome com a vontade de comer."
Edson Hirata, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), doutor em Educação Física e autor do artigo "Clube dos 13: ícone inacabado da modernização do futebol brasileiro".

Carlos Miguel Aidar, Márcio Braga e Paulo Odone, então presidentes de São Paulo, Flamengo e Grêmio, são apontados como os líderes do movimento que também reuniu Corinthians, Palmeiras e Santos, em São Paulo; Botafogo, Fluminense e Vasco, no Rio de Janeiro; Atlético-MG e Cruzeiro, em Minas Gerais, e o Internacional, no Rio Grande do Sul. Essa "União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro" é quem criou o contestável conceito de "12 grandes" do esporte no país.

Virou "Clube dos 13" porque alguém sugeriu que o grupo tivesse um time do Nordeste, então o Bahia foi chamado. Em acordo, os 13 fundadores convidaram Coritiba, Goiás e Santa Cruz para aumentar o alcance geográfico e criar a Copa União, primeira intervenção significativa do grupo e que substituiria o Campeonato Brasileiro naquele ano.

"Razão técnica para a escolha dos clubes não havia, em documento algum consegui identificar. Era só uma reunião de clubes com popularidade, mesmo", diz Hirata.

Arquivo
Leonardo, do Flamengo, com a taça do título do módulo verda da Copa União em 1987

Dinheiro e organização inéditos. Mas não para todos

A Copa União saiu do papel porque o Clube dos 13 teve um departamento de marketing forte para demonstrar que o futebol poderia ser rentável no Brasil. Nasceu, então, o primeiro torneio nacional de clubes patrocinado pela iniciativa privada em acordos com as empresas Coca-Cola, Varig e TV Globo.

Um dos relatos sobre este momento, como mostrou o UOL, é de uma empresa que procurou o Clube dos 13 para obter liberação dos clubes e fabricar produtos de plástico e adesivos. A empresa ganharia sua parte e ainda repartiria royalties com os clubes. Ao consultar as diretorias, a entidade descobriu duas coisas: a maioria dos clubes não tinha marca registrada, então não havia como licenciar produtos, e muitos usavam personagens como mascotes, como Popeye (Flamengo), Pato Donald (Botafogo) e Super Homem (Bahia), mas sem se ser dono dos direitos de uso.

Ou seja, os clubes estavam bagunçados e falidos, os campeonatos eram desorganizados e deficitários, os torcedores não tinham qualquer representação e até a transmissão de jogos na televisão era vista como uma ameaça por teoricamente tirar o público dos estádios. Para 13 clubes (ou 16, considerados os três convidados), o ano de 1987 mudou todo esse panorama e devolveu relevância, poder financeiro e organização. O problema é que o futebol brasileiro não era composto só por eles.

Lucas Lima/UOL

"Facada no coração" dos pequenos, diz José Trajano

Assim como na ideia de criação da Superliga, o mérito esportivo foi colocado para escanteio após a criação do Clube dos 13. O Guarani, vice-campeão do Brasileiro de 1986 (o torneio só acabou em fevereiro de 1987), e o América-RJ, semifinalista da mesma edição, ambos derrotados pelo São Paulo, que ficou com o título, foram alijados da disputa da Copa União. Quem relembra essa história é o jornalista José Trajano, fanático torcedor do América.

"Como sempre, são os clubes pequenos que se dão mal. Agora todo mundo fica chocado, com razão, porque é uma cretinice. Mas quem sentiu na carne, porque aquilo foi uma facada no coração, foram os torcedores de América-RJ e Guarani", resume Trajano.

Insatisfeito com a exclusão do grupo de elite, já que foi convidado para disputar somente o Módulo Amarelo [equivalente à Segunda Divisão, em que o Sport despontou], o time do Rio de Janeiro teve uma queda acentuada, em três anos já disputava o que seria a Série C e nunca voltou a ser competitivo como antes.

"O América-RJ cometeu o erro de não disputar o Brasileiro. Ficou muitos meses sem jogar, teve de vender jogadores, não tinha receita de bilheteria. Quando voltou, já não era mais o mesmo. Não quero crucificar os diretores da época, porque quem está no calor dos acontecimentos, sofre a injustiça, é capaz de tomar decisões precipitadas, de cometer uma besteira, como fizeram. Mas eles não são culpados, quem cometeu a sacanagem foi o Clube dos 13. O América-RJ morreu ali", dispara Trajano.

Assim como previa a Superliga Europeia, a Copa União não tinha descenso. Em 1988, já sob direção da CBF, foi ampliada para 24 participantes e teve sua última edição, após o título do Bahia. Em 1989 foi disputado, novamente com este nome, o Campeonato Brasileiro.

"Como sempre em revoluções, há inocentes e vitimados. Tinha ali uma ruptura, mas houve de fato, do ponto de vista do espírito esportivo, um prejuízo impagável a América-RJ e Guarani", diz Juca Kfouri.

[Copa União] Foi a união dos grandes cagando e andando para os clubes menores. É parecido com hoje, um grupo de ricos e pretensiosos que só pensam neles. Mas são os outros times que fazem a graça do futebol, que é a disputa para ver quem vai para a Libertadores, para a Champions. Na verdade, o maior prejudicado na época foi o Guarani. Foi uma cretinice. Mas o América-RJ morreu ali."

José Trajano, jornalista esportivo

Lucas Figueiredo/CBF

Do centro aos bastidores

O Flamengo foi campeão da Copa União e não disputou um quadrangular proposto pela CBF contra Internacional (vice), Sport e Guarani (os primeiros colocados do "Módulo Amarelo", outro torneio organizado pela entidade com os times ausentes da elite do Clube dos 13). A batalha judicial sobre esse título só terminou em 2018, quando o Sport foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como campeão nacional de 1987.

Em 1988, o Clube dos 13 devolveu às mãos da CBF a organização do Brasileiro como estratégia de conciliação. Em troca, manteve a prerrogativa de negociar contratos publicitários e de direitos de transmissão ao longo dos anos.

De acordo com a pesquisa de Edson Hirata, é possível concluir que o grupo teve relativo sucesso na missão, pois os valores de contratos aumentaram gradualmente ao longo dos anos chegando até 50 vezes dos 3,4 milhões de dólares registrados em 1987. "O sucesso desses contratos não pode ser apontado só pela competência do Clube dos 13, porque foi um período em que o esporte como entretenimento começou a ser mais vistoso, houve ganho de audiência e publicidade, a moeda valorizou e a organização passou a ter menos problemas. É um conjunto de fatores, mas, realmente, encabeçado pelo C13", justifica.

Depois da Copa União e de anos como responsável pelos direitos de TV, o Clube dos 13 só voltou a ter papel de protagonista na promoção de campeonatos em 2000, com a Copa João Havelange. A CBF se viu entre decisões conflitantes da Justiça comum e da Justiça desportiva a respeito de uma ação envolvendo o Gama-DF, que questionava seu rebaixamento em 1999, e transferiu a organização para o Clube dos 13.

A competição foi uma bagunça desde o formato, com 116 clubes, até a final, que teve queda de alambrado (na foto abaixo) e três datas diferentes.

Allsport UK/ALLSPORT Allsport UK/ALLSPORT

A taça das bolinhas e o fim do Clube dos 13

A Taça das Bolinhas, que era pleiteada pelo Flamengo desde 1992 mas foi entregue ao São Paulo justamente por causa de toda a confusão que foi a Copa União de 1987, teve um papel importante no fim do Clube dos 13. Mas a briga começou um pouco antes, em uma eleição para a presidência da entidade em 2010. De um lado, Fábio Koff, presidente, que começava a enfrentar a insurgência de clubes como Corinthians, Vasco e Botafogo.

O rival seria Kléber Leite, dono de uma empresa de marketing esportivo que explora placas de publicidade nos estádios e ex-presidente do Flamengo. Ele contava com o apoio da CBF. Preocupada com a venda dos direitos do Campeonato Brasileiro, a Globo também decidiu apoiar Kléber Leite.

Para a surpresa de Globo e CBF, Koff foi reeleito. E essa vitória acabou com o C13.

Uma das reclamações é faltava transparência nas contas da entidade. Como prometido na campanha, Koff decidiu que não só a Globo teria concorrência para a compra dos direitos de TV, como cada plataforma (televisão aberta, televisão por assinatura e internet) seria vendida separadamente —e não como pacote fechado como era até então.

A história é que a Globo tinha um direito de preferência. Nas renovações, ela poderia apenas igualar a melhor proposta da concorrência que ficaria com os direitos. Entrei com uma ação no Cade e a Globo foi obrigada a retirar a cláusula de preferência. E o Cade também aprovou a separação das mídias na hora da venda."

Ataíde Gil Guerreiro, então dirigente do Clube dos 13

Chamei Globo, Record, RedeTV e SBT para uma reunião. Pedi para um economista criar um algoritmo para calcular quanto valia proporcionalmente cada real investido pela Globo em comparação com a exposição que dava ao produto futebol. E disse que esse algoritmo seria usado para as renovações de contrato. Todas as emissoras toparam, menos a Globo, que continuaria a ser beneficiada, porque ela passava o futebol em vários programas, além de transmitir os jogos."

Ataíde Gil Guerreiro

Apu Gomes/Folhapress
Rogério Ceni, o então presidente do São Paulo Juvenal Juvêncio, e Zetti com a polêmica Taça das Bolinhas

No dia da abertura dos envelopes para definir quem ficaria com os direitos de transmissão para 2012 a 2014, Globo e Record sequer mandaram proposta. A RedeTV ganhou, mas não levou os direitos. E a Taça das Bolinhas entrou no jogo.

No mesmo período, a CBF entregou a Taça das Bolinhas ao São Paulo como primeiro clube a ser cinco vezes campeão brasileiro de forma alternada. O posto seria do Flamengo se a Copa União não tivesse sido a bagunça que foi. O Fla, então, decidiu sair do Clube dos 13, que contava com o São Paulo, e se juntar aos dissidentes Corinthians, Vasco e Botafogo, que já eram apoiados por Globo e CBF.

"Eu fui falar com o Juvenal Juvêncio (então presidente do São Paulo). E não quero entrar no mérito da decisão dele. Mas ele acreditava que a taça era um direito do São Paulo. A Patrícia Amorim (presidente do Flamengo na época) veio conversar comigo e disse que não poderia ficar ao lado do São Paulo por conta da briga pela Taça das Bolinhas. A Globo dizia que precisava só de Corinthians e Flamengo", explica Ataíde Gil Guerreiro.

Em fevereiro de 2011, o Corinthians anunciou que pediria a desfiliação do Clube dos 13. O desgaste entre São Paulo e Flamengo culminou com a saída dos cariocas, que foram seguidos por Botafogo, Fluminense, Vasco, Coritiba, Cruzeiro, Santos e Sport. O Clube dos 13 havia sido implodido.

Depois do C13

"A Globo acenou com a 'espanholização' dos direitos de transmissão para Flamengo e Corinthians, e eles implodiram o Clube dos 13", resume Juca Kfouri.

Corinthians e Flamengo, então, passaram por pelo menos duas renovações de contrato com Globo ganhando muito mais que os rivais. A emissora só reviu o modelo de negociação quando houve nova ameaça de ruptura, desta vez quando a Turner conseguiu acertar com um grupo de clubes.

A promessa é de justiça na divisão da grana e contratos nas mesmas condições para todos os clubes. E isso vale para TV aberta e fechada (40% em fatias iguais, 30% por posição e 30% por exibição).

Para quem viveu aquela época, como Juca Kfouri, os clubes brasileiros perderam o bonde da história, ainda mais se pensarmos que o Clube dos 13 foi fundado cinco anos antes da Premier League, exemplo mais bem-sucedido de liga de futebol no mundo.

"A televisão ajuda. Mas não pode ser como ela quer. O futebol precisa ser comandado pelos clubes. A partir do momento em que não tem uma liga, não tem uma divisão equânime. Está faltando ter uma liga, mas não vejo ninguém querendo liderar um movimento. Enquanto não tiver uma liga, nosso futebol vai ter menos representatividade do que o futebol da Turquia e será mal explorado comercialmente. O futebol é um produto interessante, mas lamentavelmente foi isso que aconteceu", finaliza Ataíde Gil Guerreiro.

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