As revoluções de Benzema

Impaciente, artilheiro, coadjuvante, excluído? Atacante do Real Madrid pode ser o melhor do mundo?

Thiago Arantes Colaboração para o UOL, em Barcelona (Espanha) REUTERS/Susana Vera

Karim Benzema caminhou lentamente entre os companheiros, subiu em uma cadeira e levantou a cabeça. Diante de seus olhos, o jogador, então com 17 anos, tinha pela frente o elenco do Lyon tricampeão francês e que era líder na busca pelo quarto título seguido.

Fazia parte do ritual: antes da estreia, todo atleta se apresentava, agradecia ao treinador pela chance, dizia que estava feliz, era aplaudido pelos colegas e ponto final. Naquela noite, em janeiro de 2005, foi diferente.

A voz baixa e o jeito envergonhado de Benzema arrancavam risadas dos colegas. Era praxe fazer piada com os novatos. "Estou muito feliz por estar aqui, mas hoje é só o começo. Com todo respeito aos atacantes, eu vou roubar o lugar de algum de vocês".

As risadas logo se transformaram em silêncio. "Nos treinos, a gente já tinha visto que ele era especial. Mas ali eu tive certeza que ele poderia ter uma carreira vitoriosa. O garoto era ousado", lembra o ex-zagueiro Cláudio Caçapa, capitão do time na época, em entrevista ao UOL.

O Lyon de 2005 era uma constelação. Os brasileiros Nilmar e Élber, além de Govou e Wiltord, eram os principais atacantes do elenco. Tomar o lugar de um deles era o novo desafio do jovem Karim; não seria o primeiro, nem o último.

REUTERS/Susana Vera

Um prodígio no subúrbio

Karim Mostafa Benzema nasceu e cresceu em Terraillon, na comuna de Bron, subúrbio de Lyon. Um bairro distante do centro, fora de qualquer rota turística, formado por um emaranhado de prédios altos, casas separadas por paredes finas e ruas em eterna discordância com as ideias de planejamento urbano impostas pela prefeitura local.

Naquelas ruas labirínticas, o futebol era o presente e o futuro de Karim. Ele nunca quis ser astronauta, bombeiro ou super-herói. Aos 8 anos, entrou nas categorias de base do Bron Terraillon. Aos 10, marcou dois gols contra a equipe infantil do Lyon. Meses depois, vestia o uniforme do maior clube da região.

Quando Karim completou 15 anos, o Lyon sugeriu que ele fosse morar no CT de Tola Vologe. Na teoria, a ideia era manter o jogador mais focado nos treinos; na prática, era uma forma de cortar os vínculos com os amigos do bairro.

Segundo a biografia Le Système Benzema, a vida em Tola Vologe se resumia a treinar, estudar e dormir antes das 22h30. Karim não se queixava. Tudo aquilo formava parte de um plano maior. De um caminho que começaria a se abrir anos depois, diante de seus ídolos, dizendo que roubaria o lugar de um deles no Lyon.

Stephen Pond - PA Images via Getty Images Stephen Pond - PA Images via Getty Images

A agonia da espera

O início no time principal do Lyon foi difícil. Entre o discurso na cadeira e o fim da temporada foram apenas seis jogos. E nenhum gol. "Ele tinha muita personalidade, mas às vezes era um pouco impaciente. Eu percebi isso logo e falava muito com ele, dava conselhos", lembra Juninho Pernambucano, principal estrela do elenco.

Naquela temporada, Élber e Nilmar saíram do clube. Mas logo chegaram Fred e o norueguês Carew. Benzema continuava longe de ser titular. E transformava a frustração em transpiração.

Ninguém treinava mais que Karim. E a inspiração vinha de um brasileiro. "O Ronaldo era o ídolo dele. Ele tinha aquelas arrancadas do Ronaldo, com mudança de direção, porque sabe usar muito bem os dois pés", afirma Juninho, ao UOL.

Para dar o salto definitivo, era preciso jogar mais. E, quando o técnico Gerard Houllier quis testar um novo esquema tático, Benzema aproveitou a chance. "Ele jogava pelo lado esquerdo num 4-3-3. Conseguia correr bem, acompanhava o lateral, tinha um condicionamento físico muito bom", relembra Juninho.

Logo, Fred e Benzema passaram a ser os titulares absolutos. As boas atuações abriram as portas da seleção francesa. Em julho de 2007, quando brasileiro sofreu uma lesão, Benzema sabia que seu momento havia chegado. Era hora de roubar a artilharia do amigo.

Eddy LEMAISTRE/Corbis via Getty Image

O sonho interrompido

Na primeira chance como protagonista, Benzema não decepcionou: foi artilheiro do Campeonato Francês e da Copa da França, e o Lyon conquistou o único "doblete" de sua história.

Os principais clubes europeus corriam para contratar o jovem atacante. O Barcelona foi o primeiro a se mexer. Em abril de 2008, o clube catalão enviou o então diretor esportivo Txiki Bergiristain a Lyon. Johan Cruyff dizia nos bastidores que a contratação era fundamental.

Antes de fechar o negócio, o Barcelona deu a um grupo de funcionários a missão de traçar um perfil do atacante fora de campo. O resultado não agradou. Concluíram que Benzema poderia ter dificuldades de adaptação à cidade e ao clube. Em uma de suas últimas decisões como treinador, em maio de 2008, Frank Rijkaard deu a palavra final: Benzema estava vetado.

Meses depois do "não", o Barcelona renasceu em uma temporada histórica, ganhando os seis títulos que disputou. Rijkaard deu lugar a Pep Guardiola. E, sem Benzema, o treinador catalão apostou todas as fichas em Lionel Messi.

Benzema continuou no Lyon por mais uma temporada, a primeira em oito anos sem título nacional. A cabeça já estava distante. Depois de ter as portas fechadas pelo Barcelona, ele só tinha um objetivo: jogar no Real Madrid.

Sergio Perez/Reuters

Adaptar para sobreviver

A chegada a Madri deu a Benzema a dimensão do novo clube. Ser recebido por 35 mil pessoas no estádio era incrível. Mas, olhando para o lado, ele percebia que não era mais a estrela: no mesmo mês, Kaká levou 50 mil pessoas ao Bernabéu; e Cristiano Ronaldo gritou "Hala Madrid" para 75 mil torcedores.

Entre os problemas de adaptação à cidade, a rivalidade com Higuaín por um lugar no time e discussões com José Mourinho, Benzema demorou quase dois anos para entender que o momento pedia sacrifício.

"Com o Cristiano, eu mudei. Comecei a jogar para ele. Eu tinha ao meu lado um cara que fazia duas ou três vezes mais gols do que eu. Era preciso me adaptar. Pensei: 'vou mudar meu jogo, vou dar mais assistências'. Passei a ser um jogador mais coletivo", disse, em entrevista ao ex-jogador argentino Jorge Valdano.

"Ele precisou se reinventar. Foi um período em que passou a jogar de uma forma diferente. Como jogador, foi bom para ele desenvolver outras qualidades", acrescenta Cláudio Caçapa.

O garoto abusado que só queria protagonismo saiu de cena. Em seu lugar, surgiu um "camisa 10 que joga com a 9", como dizem os torcedores do Real Madrid. Foi esse Benzema que entrou para a história com quatro títulos da Champions League em cinco anos.

Juan Medina/Reuters Juan Medina/Reuters

Os títulos de Benzema

  • Campeonato Francês: 4

    2004/05, 2005/06, 2006/07, 2007/08

  • Copa da França: 1

    2007/08

  • Mundial de Clubes: 4

    2014, 2016, 2017, 2018

  • Uefa Champions League: 4

    2013/14, 2015/16, 2016/17, 2017/18

  • Liga Espanhola: 3

    2011-12, 2016/17, 2019/20

  • Copa do Rei: 2

    2010/11, 2013/14

  • Supercopa da Espanha: 4

    2012, 2017, 2019/20, 2021/22

  • Supercopa da Uefa: 3

    2014, 2016, 2017

  • Liga das Nações: 1

    2021-22

  • Campeonato Europeu Sub-17: 1

    2004

Os feitos de Benzema

  • Artilheiro do Campeonato Francês: 1

    2007/08

  • Artilheiro da Copa da França: 1

    2007/08

  • Artilheiro da Supercopa da Espanha: 1

    2021-22

  • Jogador Francês do ano: 4

    2011, 2012, 2014, 2021

  • Melhor jogador do Campeonato Espanhol: 1

    2020-21

  • Seleção do Campeonato Espanhol: 3

    2018-19, 2019-20, 2020-21

  • Estrangeiro com mais partidas pelo Real: 594*

    *Até o 5/4/22

  • 3º maior artilheiro do Real: 313 gols*

    *Até o 5/4/22

  • 4º maior artilheiro da Champions League: 79 gols

    *Até o 5/4/22

  • Jogador com mais gols em diferentes edições da Champions: 17

    Empatado com Messi

AFP PHOTO/FRANCK FIFE

A Copa perdida

"Quem nasce em Terraillon não sai de Terraillon". O mantra é repetido sempre pelos moradores da comuna de Bron. Benzema é isso mesmo: ele nunca perdeu o contato com os amigos de infância. Aos 18 anos, quando deixou o CT do Lyon, voltou a viver no bairro. Foi uma das amizades daquela época que provocou a maior polêmica da carreira do atacante.

Em 2015, Benzema foi acusado de ser cúmplice em uma tentativa de chantagem de um grupo - do qual fazia parte um de seus melhores amigos - contra Mathieu Valbuena, seu companheiro de seleção. O caso envolvia a divulgação de um vídeo de conteúdo sexual.

Segundo apuração da polícia francesa, o atacante se envolveu de forma direta no caso, tentando convencer Valbuena a pagar para as imagens não serem divulgadas. Benzema foi condenado a um ano de prisão, com suspensão da pena. A defesa alega que as tentativas de contato eram de boa fé, para evitar que o companheiro de seleção fosse exposto.

O escândalo afastou Benzema da Eurocopa de 2016, disputada na França, que acabou com os locais como vice-campeões; e da Copa do Mundo de 2018, vencida pela equipe comandada por Didier Deschamps.

Em maio de 2021, Benzema voltou a ser convocado, após seis anos de ausência.

Miguel Vidal/Reuters

Eu vou roubar esse prêmio de vocês

Karim Benzema é o produto de muitas histórias. Tem um pouco do garoto de Terraillon; do adolescente atrevido e impaciente; do prodígio goleador que assombrou a Europa; do jogador inteligente que se adaptou para sobreviver no Real Madrid; do homem que perdeu uma Copa do Mundo acusado de um crime.

Aos 34 anos, o atacante é líder de gols e assistências da Liga Espanhola. Benzema também foi protagonista de uma das grandes atuações individuais da temporada, nos 3 a 1 contra o PSG — marcou três vezes em 17 minutos, pelas oitavas da Champions League.

O bom desempenho coloca o francês entre os favoritos a ser coroado melhor jogador do mundo. A lista de adversários tem personagens que, de forma direta ou indireta, complicaram o caminho dele rumo ao topo, desde o início da carreira.

O prêmio poderia ter vindo aos 20 anos, mas Barcelona apostou em Messi. Poderia ter chegado aos 25, mas o Real Madrid tinha Cristiano Ronaldo. Aos 30, a chance caiu por terra com a ausência na Copa que coroou Luka Modric e mostrou Kylian Mbappé ao mundo. Nos últimos anos, quando um centroavante voltou a ganhar o prêmio, foi Robert Lewandowski.

"Ano passado ele já poderia ter vencido. Neste ano, ele está igual. Quem está num nível tão bom quanto o dele? Tem o Mbappé, mas o PSG já caiu na Champions. Tem o Salah, o Lewandowski? Mas o Karim é mais completo", avalia Juninho Pernambucano.

A conquista tardia encerraria o ciclo que começou 17 anos antes, em cima daquela cadeira em Lyon. Benzema, que só queria uma vaga no time titular, tem sua maior chance de roubar dos concorrentes muito mais do que isso: um lugar no topo do futebol mundial.

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