Buchecha sem Claudinho

O pior ano de Senna na Fórmula 1 foi o único que Galvão não narrou na Globo e por que isso é assunto até hoje

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Reprodução/Instagram

Você acredita em coincidências? Se acreditar, essa história é sobre uma delas. Caso contrário, é só mais uma curiosidade boa de contar aos amigos na mesa do bar.

O ídolo nacional Ayrton Senna teve uma carreira brilhante na Fórmula 1 entre 1984 e 1994, quando morreu aos 34 anos durante o Grande Prêmio de San Marino, em Ímola. É a história que todo brasileiro fã de esportes conhece. Ele foi campeão mundial pela primeira vez em 88, sua temporada inicial pilotando pela McLaren. Depois do primeiro título, Senna nunca mais deixou de ser o primeiro ou o segundo colocado, sempre no topo. Isso não aconteceu só uma vez.

Galvão Bueno é outra figura brasileira muito importante. Narrou os principais eventos esportivos das últimas décadas, sobretudo o tetra e o pentacampeonato da seleção de futebol masculino, em 1994 e 2002, e os três títulos na F1 de Ayrton Senna, de quem era amigo. Ele é conhecido pelos bordões, por ter seguido de perto as trajetórias de vários ídolos e pela forte identificação com a Globo, onde trabalha desde 1981. Ele só não fez parte do elenco na emissora num único ano.

E se eu te disser que o pior ano do Ayrton Senna na Fórmula 1 foi justamente aquele em que suas corridas não foram narradas na Globo pelo Galvão? Essa coincidência completa 30 anos em 2022. Mas só vale se você acreditar que elas existem.

Reprodução/Instagram
Jorge Araujo/Folha Imagem

1992: como tricampeão mundial foi parar na "Série B" da Fórmula 1

Senna já era tricampeão mundial — sendo duas vezes consecutivo — antes do começo da temporada 1992. No auge, recebeu proposta para trocar a McLaren pela Williams num tempo em que já percebia o desempenho descendente do motor Honda. Segundo Julian Jakobi, seu agente, a decisão de seguir na equipe foi por fidelidade ao presidente da montadora japonesa na época, Nobuhiko Kawamoto.

O medo do piloto brasileiro se confirmou: foi a Williams, não mais a McLaren, que dominou a Fórmula 1 na temporada seguinte. A impressão era de que os carros FW14B pilotados por Nigel Mansell e Riccardo Patrese estavam em outro patamar. Nasceu até uma brincadeira sobre a formação da "Série B" da modalidade com Senna e seu companheiro Gerhard Berger, além de Schumacher e Martin Brundle, da Benetton, e Jean Alesi e Ivan Capelli, da Ferrari. Os melhores depois da Williams.

As Williams estavam equipadas com controle de tração, câmbio semiautomático e, principalmente, um sistema de suspensão ativa de tal modo desenvolvido que permitia ajustes automáticos e instantâneos ao piso (...) a Williams de Mansell parecia passear num tapete negro, já a McLaren trepidava e pulava como um carrinho de montanha-russa."
Ernesto Rodrigues, no livro "Ayrton, o herói revelado"

Mansell foi pole position em 14 das 16 corridas e venceu nove. Foi campeão com cinco provas de antecedência ao terminar em segundo lugar no GP da Hungria — vencido justamente por Senna, em uma de suas três únicas vitórias em 1992 [também ganhou em Mônaco e na Itália].

Ao longo da temporada, o brasileiro relatou vários episódios de dores por causa do esforço que fazia para manter sua McLaren competitiva. No GP de Ímola, não teve condições de participar da cerimônia de pódio porque tinha os ombros paralisados por uma crise de câimbras. Ele também cortou o ombro com o cinto e sofreu com posição de banco, alavanca de câmbio, retrovisores e até protetores de ouvido, porque o barulho do motor poderia prejudicar muito. Precisou abandonar cinco provas, inclusive no Brasil, e não venceu nenhuma prova debaixo de chuva. Correr sem chance de ganhar foi o que marcou essa temporada para esquecer.

Senna temporada a temporada

  • 1984

    Na estreia pela Toleman, terminou em nono lugar. Pegou pódio duas vezes.

  • 1985

    Já na Lotus, foi quarto colocado na temporada. Ganhou duas corridas.

  • 1986

    De novo na Lotus, repetiu a quarta colocação, com duas vitórias e nove pódios.

  • 1987

    Subiu para o terceiro lugar com o carro da Lotus, de novo com duas vitórias.

  • 1988

    Pela McLaren, campeão mundial pela primeira vez. Venceu metade das provas.

  • 1989

    Na McLaren, perdeu o título para o francês Alain Prost com seis vitórias ao todo.

  • 1990

    O bicampeonato mundial foi de novo pela equipe britânica, com seis vitórias.

  • 1991

    Três vezes Ayrton Senna campeão, de novo com a McLaren. Sete vitórias na temporada.

  • 1992

    Pela mesma equipe onde foi tri, um amargo quarto lugar com três primeiras posições.

  • 1993

    Na última temporada completa, perdeu o título para Prost, mas venceu cinco corridas.

Divulgação/Globo

1992: quando o narrador número 1 da Globo foi trabalhar na Gazeta

Galvão Bueno chegou à Globo em 1981. Ele vinha de quatro anos na Band, lugar em que começou a narrar futebol e imprimir seu estilo próprio. "O que eu queria na vida era vir para a Globo", disse numa entrevista ao "Memória Globo". Antes, tinha passado pela Gazeta (rádio e TV) e pela Record, sempre como comentarista.

O espaço na Globo foi sendo conquistado aos poucos, mas dois anos depois ele já era a voz do segundo título de Nelson Piquet na Fórmula 1. Também acompanhou o surgimento e os maiores sucessos de Ayrton Senna, de quem virou amigo. No futebol, narrou todas as finais de Copa do Mundo a partir de 1990, além dos grandes campeonatos de clubes brasileiros.

Mas tanto sucesso não bastou. Depois de começar normalmente a temporada 1992 e narrar inclusive a estreia de Edmundo como jogador profissional num Vasco 4 x 1 Corinthians, Galvão Bueno pediu demissão da Globo no mês de março.

O narrador assinou com a Rede OM, um canal do Paraná que retransmitia a Record, mas tinha planos ousados e queria fazer sucesso nacionalmente. Além de locutor, Galvão era diretor de esportes, então cuidava de produção, operação e transmissão de torneios. De cara, comprou os direitos da Copa Libertadores. Ela já estava rolando, mas ninguém exibia porque de brasileiros só São Paulo e Criciúma disputavam. Em São Paulo, a OM tinha parceria com a Gazeta de Roberto Avallone.

No fim, o Tricolor venceu a Libertadores e a Gazeta/OM deu 34 pontos de audiência, um recorde até hoje. A Rede OM comprou outros direitos de transmissão, mas empilhou dívidas, demitiu funcionários e levou Galvão Bueno à decisão de pedir para sair em janeiro de 1993, dez meses depois da partida da Globo. Uma aventura.

A Rede OM ainda está no ar, mas adotou o nome de CNT. Já Galvão recebeu propostas de todos os canais de TV da época, mas optou pelo retorno à Globo. Sua reestreia foi no GP da África do Sul, que abriu a temporada 1993 da Fórmula 1.

O convite veio do dono da rede, José Carlos Martinez, empresário e político do Paraná. Martinez sempre foi correto comigo, mas, por ser político, tinha uma série de compromissos com o governo Collor que acabaram inviabilizando minha permanência na organização."

Galvão Bueno, No livro "Fala, Galvão" (2015)

No começo de 1993, Martinez estava em grandes dificuldades financeiras, não conseguia mais pagar todas as contas e chegamos a um acordo para encerrar nossa parceria. Dois meses depois, eu estava de novo na Globo. Voltei para casa."

Sobre a aventura na Rede OM

Reprodução/Instagram

Amizade desde antes da fama

- O senhor é o 'seu Galvão'?

"Sou."

- Eu sou o Ayrton Senna da Silva. Ganhei a corrida de Fórmula Ford aqui, hoje.

"Que beleza! Parabéns!"

- Vou chegar à Fórmula 1, e o senhor ainda vai transmitir muita corrida minha.

Segundo Galvão Bueno, esse diálogo é de 1982 e foi o jeito como narrador e piloto então com 32 e 22 anos se conheceram. A proximidade começou com uma entrevista no ano seguinte, quando Senna era destaque na Fórmula 3. Em 1984, estava na elite. "Começou aí uma amizade bacana. No início, é claro, havia interesse mútuo. Ele tinha interesse no profissional da Globo e o profissional da Globo tinha interesse naquela joia bruta que começava a ser lapidada", diz o narrador, em sua biografia.

A amizade se estabeleceu em jantares e cafés antes e depois de corridas da Fórmula 1 pelo mundo, além das viagens. Ernesto Rodrigues chama o narrador de "o maior amigo, entre todos os jornalistas que Ayrton Senna conheceu."

O que Galvão chama de "relacionamento extracorrida", que envolveu visitas às casas um do outro, amizade entre as famílias, discussões do narrador com algozes do piloto, como Nelson Piquet, jogos de tênis e brincadeiras, como o dia em que Senna trancou três cadeados no passador de cinto da calça de Galvão antes de uma viagem e não entregou as chaves.

Para o público brasileiro já bastavam os domingos que começavam com "Ayyyrton Senna do Brasiil" e o inconfundível "tan-tan-tan, tan-tan-tan" do tema da vitória.

Luiz Novaes/Folhapress

Sem Galvão, Globo e Senna (e Cleber Machado) sofreram

Quando Galvão Bueno foi para a Rede OM, os direitos de transmissão da Fórmula 1 permaneceram com a Globo. Era até um interesse do narrador investir em automobilismo, tanto que o canal transmitiu provas de rali e tinha um programa chamado "Pódium", com participações frequentes de Ayrton Senna. Mas as corridas, fenômeno de popularidade da época, não podia passar.

No GP da África do Sul que abriu a temporada 1992, o narrador da Globo foi Cleber Machado. O biógrafo de Senna Ernesto Rodrigues diz que a direção de esportes da emissora tomou a decisão com o pé atrás, porque não queria queimar sua possível futura estrela da narração.

Arriscou e se arrependeu, como explica em "Ayrton, o herói revelado": "[Cleber Machado] narrou as corridas da África do Sul, do Brasil e de Ímola sob críticas da imprensa e dos espectadores. Chegou a Mônaco na berlinda, por causa dos erros e hesitações típicas de quem, ele sempre reconheceu, não era íntimo daquele esporte."

O GP de Mônaco vencido epicamente por Ayrton Senna mesmo com um carro muito pior que as Williams de Mansell e Patrese foi, segundo Rodrigues, quando "a TV Globo se deu conta de que Galvão fazia muita falta". Cleber Machado demorou a perceber que numa volta de Mansell do pit stop, o brasileiro começou a liderar a prova que venceria.

No GP seguinte, a emissora trocou Cleber Machado pelo experiente Luiz Alfredo, que ficou na função até o fim da temporada, marcada como um grande insucesso na carreira de Senna. "Não teve nada a ver com a relação dos dois [Senna e Galvão]. O Senna era muito profissional, era uma característica dele. Eles eram muito amigos, mas não a ponto de o emocional atingi-lo", conta Luiz Alfredo ao UOL. "Mas quando o Galvão saiu, a reação da Globo foi emocional, do tipo 'não vai ter outro igual para substituir, então vamos com o que a gente tem, mesmo'. Mas foi indo. O Galvão era realmente um fenômeno e fez falta, mas a Globo também fez falta para ele", completa.

Para os fãs de automobilismo, ficou famosa na época uma brincadeira dando conta de que o piloto tinha tido um desempenho tão abaixo das outras temporadas porque sentia falta do amigo narrador.

Com a saída do Galvão Bueno, 'quem vai fazer, quem não vai fazer'... aí comecei a fazer a Fórmula 1 e, talvez, eu não estivesse pronto naquele momento, para fazer daquele jeito. Houve uma natural comparação, e nessa comparação, claro que eu perdi."

Cleber Machado, em entrevista ao livro "Grito de Gol - as vozes da emoção na TV", de Bob Faria

As críticas ao Cleber não o impressionavam, ele era na dele. Quando assumi as narrações, também não me senti pressionado. Não houve pressão. Depois, fui para o SBT e fui muito feliz. Me senti nas nuvens, o resultado foi excepcional. Fui colocado como o principal narrador, não tinha como não aceitar."

Luiz Alfredo, ao UOL, sobre a temporada de 1992 da F1, em que narrou a categoria na Globo

Outros bastidores

Arquivo pessoal/Ayrton Senna

Reginaldo Leme

Circulou na época a lenda de que um desentendimento de Reginaldo Leme com Ayrton Senna motivou Galvão a deixar a Globo. Leme questionou a ética de Senna por causa da controversa batida na primeira curva do GP do Japão que tirou de Prost a chance de ser campeão mundial. Galvão defendia o brasileiro e ganhou a fama de "assessor de imprensa informal", o que gerou questionamentos na Globo. Daí teria desejado sair.

Reprodução

Senna x Schumi

1992 ficou marcado pela relação pouco amistosa entre Senna e Michael Schumacher, na primeira temporada fixo na Benetton. No GP de Interlagos, que o brasileiro abandonou, o alemão fez críticas: "Não esperava o comportamento de um tricampeão. Ele estava antecipando a freada para abrir mais nas retas." Senna guardou a revolta para discussão com dedo em riste nos boxes dias depois e ainda houve troca de empurrões.

Jorge Araújo/Folha Imagem

Ouro do vôlei

O período de Galvão Bueno fora da Globo também coincidiu com as Olimpíadas de 1992, em Barcelona. Narraram pela emissora Cleber Machado, Ciro José, Oliveira Andrade e Luiz Alfredo, sendo que o último participou de um dos momentos mais importantes da história do esporte brasileiro: foi a voz do primeiro ouro olímpico da seleção de vôlei masculina. Não ter feito parte disso é uma das frustrações de Galvão.

Pascal Rondeau/Allsport

Temporada fez Senna repensar carreira

Os traumas da temporada 1992 foram tão fortes que fizeram Ayrton Senna cogitar o fim da carreira na Fórmula 1. Isso aconteceu porque a Honda anunciou sua retirada do esporte na virada do ano. "Todo piloto quer um contrato que inclua um fabricante de motor", explicou recentemente ao "Motorsport-Total.com" o ex-diretor de operações da McLaren Martin Whitmarsh.

Além disso, o biógrafo Ernesto Rodrigues conta que a McLaren culpava internamente Senna pela diferença de desempenho de seu carro em relação às Willians. A opinião de pessoas da equipe era de que o brasileiro curtia o verão em seu país mais tempo do que o recomendável, só se apresentava depois dos outros pilotos e o tempo para melhorar o carro era mais curto. O resumo é de que a relação estava desgastada.

Senna namorou até com a Fórmula Indy nessa época, mas por fim decidiu ficar mais um ano na McLaren, com motor Ford Cosworth. O brasileiro recuperou a competitividade no topo e venceu cinco provas, mas Alain Prost ganhou sete e terminou campeão na temporada 1993 pela Williams. Curiosamente, uma das condições de Prost para assinar com a equipe tinha sido a não-contratação de Senna, que na época se revoltou e fez uma comparação com o atletismo: "É como se ele quisesse correr com sapatilhas especiais e que todos os outros usassem tênis normal."

Foi a própria Williams o destino de Senna em 1994, quando Prost se aposentou. O brasileiro foi pole position nas três primeiras corridas da temporada. No Brasil, rodou e abandonou — o que fez parte da torcida também abandonar as arquibancadas em Interlagos. No GP do Pacífico, foi atingido por Mika Hakkinen e Nicola Larini e também abandonou. No terceiro Grande Prêmio, de San Marino, a direção de sua Williams não obedeceu ao comando e foi de encontro ao muro da curva Tamburello. Senna morreu aos 34 anos.

Reprodução/TV Globo

Galvão deixará narrações na Globo

A estreia de Galvão Bueno na Rede OM completa 30 anos nesta sexta-feira (1). É a data de São Paulo 4 x 0 Criciúma, pela Copa Libertadores. O clube paulista foi campeão do torneio em junho, ao vencer o Newell's Old Boys nos pênaltis, no Morumbi. O narrador deixou o projeto em janeiro de 1993, voltou para a Globo em março e foi a voz do bicampeonato continental são-paulino na velha casa.

Trinta anos depois, o mundo do esporte foi pego de surpresa com mais uma saída de Galvão Bueno da Globo. Só que desta vez parece sem volta. A emissora anunciou na semana passada que o jornalista de 71 anos vai deixar as narrações após a Copa do Mundo do Qatar, em dezembro deste ano.

"Um dos maiores narradores esportivos da história da televisão brasileira, ele se despede depois da competição no Oriente Médio e encerrará um ciclo que teve início na empresa em 1981", informou o comunicado da Globo. No mesmo dia do anúncio, Galvão narrou Brasil 4 x 0 Chile, seu último jogo da seleção brasileira no Maracanã, e se emocionou ao vivo.

Estamos juntos certamente com a seleção e o futebol até 18 de dezembro. Depois, vira-se uma página do livro e o livro continua."

Numa dessas páginas está marcada a coincidência que torna ainda mais forte seu laço com Ayrton Senna do Brasil.

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