A vida depois do câncer

Após vencer tumor na próstata e a covid-19, Dorival Jr dispensa aposentadoria e sonha em treinar times gringos

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Athlético-PR

Todos os dias, próximo ao horário do pôr do sol, Dorival Júnior se senta ao lado da mulher e dos filhos, na casa em que mora em Florianópolis, para o café da tarde. Café com um pouco de açúcar, "porque do açúcar ainda não deu para abrir mão. Mas é um pouquinho só, não muito. Todos os dias são assim, por volta das quatro, cinco da tarde, a mesa é posta —tem café, bolos, pães, queijo e mel". Volta e meia, tem, também, cuca de banana, doce típico catarinense que o treinador adora.

O ritual, Dorival conta com exclusividade ao UOL Esporte, ganhou outro significado desde que ele descobriu um câncer na próstata, no ano passado. A notícia foi dada após exames de rotina que apontaram um aumento no PSA —enzima que detecta o tumor prostático. Dorival foi operado em outubro de 2019 e, desde então, é submetido a avaliações trimestrais por prevenção. "Tudo ótimo, por enquanto".

"O câncer me fez dar outro valor à vida. A tradição do café da tarde vem dos meus pais. Eu havia perdido isso, havia deixado para lá. Mas, depois de encarar essa doença, esse momento voltou a fazer sentido, e eu o recuperei completamente. Inclusive, já está na hora do café", ri.

A conversa online com o UOL Esporte atrasou o ritual, mas fez o treinador ungir a própria memória com histórias. Nesta entrevista, Dorival Júnior desabafa, se emociona e ri pouco, entre frestinhas abertas pela seriedade que o rege. Comenta o período de isolamento ao ser diagnosticado com covid-19, seguido pela demissão do Athletico-PR, apesar da boa campanha. Relembra o dia em que percebeu que estava no comando de um time que mudaria a história do Santos e dos atritos com Neymar e Paulo Henrique Ganso. Dorival se acalenta em lembranças quando fala do Ferroviária e do banho de óleo queimado que recebeu de Cuca como um trote de aniversário; diz que sonha em treinar um time estrangeiro e "não, de maneira alguma" pensa em aposentadoria.

Athlético-PR

Covid-19: isolamento social e maratona de séries

Dorival descobriu que estava infectado pelo novo coronavírus em um dos testes da CBF. Ele conta que já havia sido batizado com o cotonete no nariz "pelo menos umas 20 vezes". Na 21ª, "alguma coisa acabou dando. Não tinha jeito, toda semana tinha dois ou três atletas infectados. Em algum momento ia acontecer, né?".

"Naquela semana, em especial, nós tivemos oito jogadores infectados. Não me surpreendi com meu resultado. Em duas semanas, foram 12 jogadores afastados, o que fez com que tivéssemos problemas na última partida contra o São Paulo. Enfrentamos o São Paulo com 12 desfalques entre covid-19 e lesões", relembra.

Foram 14 dias de isolamento —com reuniões virtuais com a comissão técnica e diretoria do clube. Sozinho em seu apartamento em Curitiba, Dorival diz que sentiu "zero sintomas" e que não teve medo mesmo beirando o grupo de risco —ele tem 58 anos. O tempo, ele conta, foi preenchido com séries. "À série dos vikings, eu assisti inteira, é muito boa. Também assisti 'The Crown', 'Highlander' e àquela sobre o Michael Jordan".

Joao Vitor Rezende Borba/AGIF Joao Vitor Rezende Borba/AGIF

Venceu a covid, mas foi demitido

Foram dois meses à frente Athetico-PR antes da pausa nas competições pararem devido à pandemia. Em julho, a bola voltou a rolar, o time levou o Campeonato Paranaense, e começou o Brasileirão com duas vitórias e uma derrota. Em agosto, Dorival foi afastado em decorrência da covid-19. Sem o comando do treinador, foram três derrotas no Brasileirão em três jogos. Ao retornar do isolamento, Dorival foi demitido.

"A demissão foi inesperada para mim, mas nada mais me surpreende no futebol brasileiro. É só analisar o resultado dos treinadores que estão há mais tempo no comando de suas equipes. Vou te dar um exemplo, [Jürgen] Klopp chegou ao Liverpool e, nos quatro primeiros anos, não ganhou nada. Um time grande inglês, sem conquistas, manteve o treinador", afirma.

"No futebol brasileiro, você trabalha e, já na semana seguinte, tem que gerar resultados. Ninguém consegue. É uma impaciência muito grande, busca-se resultado pelo resultado, não se pensa em trabalho, em desenvolvimento; não se pensa no que o cara está fazendo dentro do clube", diz.

O treinador diz que sequer questionou a diretoria a respeito do motivo pelo qual foi desligado. "Me chamaram na sala e disseram: 'Dorival, o presidente pediu para comunicá-lo' [ele não estava presente por ser do grupo de risco]. Ok, tá bom. Eu não sou de ficar pedindo 'Olha, por quê? O que aconteceu?'. Acho que as pessoas estão vendo nosso trabalho. O time foi mudando, os principais jogadores da equipe foram vendidos. Nós estávamos trazendo uma garotada que ainda não tinha nem cinco jogos com a camisa da equipe principal. Tínhamos de ter consciência que o trabalho seria moroso, um trabalho de mudança completa e eu imaginava que nós teríamos esse tempo

Athlético-PR

Aposentadoria? "Não, de modo algum"

Desempregado, Dorival continua de olho nas competições e nem cogita a aposentadoria por enquanto —nem mesmo se imagina bebendo água de coco numa praia no Ceará sem qualquer clube em vista. São 15 anos de carreira como técnico, um monte de lembrança na mente e histórias para contar. Dorival quer acumular, ainda, muitas outras.

Questionado sobre propostas de clubes, ele se esquiva, mas deixa no ar a possibilidade de novos projetos fora do Brasil. "Nunca trabalhei fora e tenho esse objetivo. Das vezes em que recebi propostas, estava trabalhando. Algumas conversas estão rolando e, caso venha a acontecer, vai ser ótimo", afirma.

"Não penso em me aposentar, de modo algum. Ainda sou jovem e tenho muita coisa a realizar, muitos planos futuros". O balanço dos 15 anos como treinador é feito com satisfação e apreço pelo próprio trabalho. E, sem pestanejar, Dorival assume que tem uma fase queridinha entre as tantas nesse período.

Ricardo Saibun/Santos FC Ricardo Saibun/Santos FC

Um Santos histórico e profecia

"O time de 2010 do Santos marcou a história do clube. Foi um time construído, porque quando eu cheguei lá, ninguém era titular. Havia garotos desacreditados, trouxemos alguns com bem pouco investimento e a equipe foi montada. Desde o primeiro dia em que vi esse grupo jogar, tive certeza de que seria um time que entraria para a história", conta.

"Eu inseria a bola desde os primeiros trabalhos. Na pré-temporada, marcamos o primeiro treino, com movimentações mais individualizadas. Depois, como havia pouco tempo para começar o Paulistão, logo montei uma equipe e mudei uma ou duas posições. Trouxe o Wesley para segundo volante, com Paulo Henrique [Ganso] e Neymar. Tínhamos Rodrigo Souto, e o jogo fluía de uma maneira impressionante", relembra.

"No primeiro treino coletivo, parei o jogo depois de 20 minutos. Nos sentamos ali embaixo da mangueira do CT do Santos e eu disse: 'Quero falar uma coisa aqui para vocês —que vocês guardem, acreditem ou não: esse time vai marcar a história do Santos. Se vocês acreditarem no que nós estamos fazendo, podem ter certeza de que esse time vai deixar um legado muito legal'. Um olhou para o outro e ninguém disse nada, ninguém questionou. Mas sei que foi um choque para eles", afirma.

"O time foi sendo montado e organizado. Aí chegaram Durval, Marquinhos, que veio do Avaí, e Robinho logo depois. Começamos a dar oportunidade para o André e para alguns garotos que também estavam na base. O time foi ganhando corpo, criando identidade. Na primeira partida, fizemos um 4 a 1 dentro do Pacaembu. Foi nosso cartão de visitas do que viria pela frente".

Ricardo Saibun/Santos FC

Hierarquia em xeque

Um dos episódios desagradáveis que marcaram a passagem por aquele Santos envolveu o meia Paulo Henrique Ganso. O jogador se recusou a ser substituído no segundo jogo da final do Paulista contra o Santo André.

"Jogávamos uma decisão de campeonato com um jogador a menos desde o primeiro tempo. O Marquinhos tinha sido expulso, e o Santo André tinha um excelente time, muito bem organizado —Sérgio Soares era quem comandava. Naquele momento, nós tivemos mais uma expulsão. Ficamos com dois jogadores a menos, e eu precisava recompor no mínimo ali o nosso meio campo. Pouco antes, o Paulo [Henrique Ganso] me havia pedido para sair porque estava esgotado. E eu falei: 'Não dá para você sair agora, é o único que está prendendo a bola. Segura um pouco mais aí'. Quando houve a segunda expulsão, pensei no pedido dele, e fiz o gesto de substituição. Engraçado que, nesses 15 minutos, ele evoluiu —foi o melhor período dele na partida, e ele fez o gesto de que não iria sair", contou Dorival.

"Não vou mentir para você, fiquei desarmado. Não sabia o que fazer. O Robinho estava atrás de mim, no banco, e disse: 'Professor, tira o André, tira o André'. Eu precisava de um zagueiro, e foi o que fiz".

Adriano Vizoni/Folhapress, 3558, ILUSTRADA

Discussão com Neymar e demissão

Outra situação que marcou a passagem de Dorival pelo Santos foi a discussão com Neymar, quando o jogador desrespeitou a ordem do treinador para não bater um pênalti.

Neymar tinha batido três pênaltis e perdido os três —inclusive um na decisão da Copa do Brasil. Eu sugeri a ele que continuasse treinando e que parasse de bater um pouco, para que não se expusesse. Disse 'em um mês, você volta a bater, não tem problema nenhum'. Ele concordou. Só que, naquele dia, ele já havia discutido com o Edu Dracena em campo e, quando se desentendeu com o Roberto Brum, tive de intervir. Logo em seguida vem o pênalti, ele pega a bola e coloca embaixo do braço. Como já tinha falado com ele, fui até lá e reiterei a recomendação".

O camisa 11 se irritou, discutiu com o treinador ainda em campo e a confusão se alastrou para o vestiário. "Ele não teve uma reação legal na hora, mas depois conversamos e ficou tudo bem. Só que a diretoria não entendeu dessa forma e tomou uma posição contrária à que eu imaginava que fosse tomar", diz.

"Quando você tem uma forma de agir, ela precisa ser colocada da mesma maneira tanto para um garoto que acabou de começar quanto para um jogador que já tem nome, senão você é cobrado depois. Eu precisava manter meu posicionamento, a disciplina precisa ser mantida em qualquer situação", afirma. "Nenhum profissional é mais importante do que a entidade, e o Santos Futebol Clube tinha que ser respeitado".

Eu sabia que o Neymar tinha infringido uma lei, uma lei interna nossa, de amigos, de pessoas que se respeitam. Eu precisava manter meu posicionamento. Neymar se redimiu, a gente se acertou, mas a diretoria preferiu me desligar.

Dorival Júnior, sobre demissão do Santos após atrito com Neymar

Ricardo Nogueira/Folhapress

Dúvida em relação a Robinho e trote de Cuca

Além de Neymar e Ganso, Dorival também teve à disposição naquele "Dream Team" do Santos, o atacante Robinho, (condenado em primeira instância por estupro coletivo) e recontratado pelo Peixe em outubro. "Quero acreditar nele. Vivemos em um mundo muito violento, mulheres são atacadas todos os dias. Por isso, é natural que uma situação dessas tenha de ser esclarecida. Torço por ele e pela pessoa que ele sempre demonstrou ser no período em que estivemos juntos, mas que tudo se esclareça".

A expressão séria dá lugar a um sorriso — foram poucos e tímidos durante a conversa— quando Dorival relembra os anos 1980, mais precisamente a Araraquara, no interior de São Paulo, onde começou a carreira jogando pelo Ferroviária.

"A gente tinha um ambiente muito legal ali. Éramos garotos, tudo era bom. Cheguei ao clube com 14 anos e já jogava com jogadores veteranos. Éramos todos amigos, tínhamos muita intimidade, deu tempo de construir isso. Fizemos uma campanha excelente no Brasileiro, e ficamos em quarto lugar no Paulistão", relembra.

"Vivíamos um ambiente muito saudável, chegávamos mais cedo aos treinos para contar e ouvir histórias. O Cuca, uma vez, no meu aniversário, teve a ousadia de me dar um trote: ele saiu pela janela do teto do ônibus e, quando a gente desceu para treinar, ele despejou uma lata de óleo queimado na minha cabeça. Foi uma brincadeirinha sem graça, mas era a cara dele aprontar dessas —era uma a cada três, quatro dias", ri.

Athlético-PR Athlético-PR

Uma doença que mudou tudo

Em setembro do ano passado, Dorival conversou com o UOL Esporte logo após descobrir um câncer na próstata. Um exame de rotina detectou um aumento no nível do PSA, enzima que indica o tumor prostático. Em 1º de outubro, o treinador foi operado —num encerramento de ciclo que, "graças a Deus, não precisou de quimioterapia".

Hoje, o cuidado é preventivo, com exames periódicos. "Eu era muito relapso em relação aos cuidados comigo mesmo, não dava muita importância. Comecei a passar por exames com mais frequência muito mais por imposição da minha filha e da minha mulher —foi aí que um deles detectou o câncer. Por sorte, identificamos o problema ainda no início", diz.

Em 2014, a mulher dele já havia sido diagnosticada com um tumor mamário, cuja gravidade foi superior ao problema do marido. "Depois da situação grave dela, ficamos quase que escolados nisso. Ainda assim, essa doença deu outro sentido à minha vida".

Sempre agi com muita simplicidade em tudo o que fiz, já dava muita atenção à natureza, sentia prazer em poder apreciar o meio ambiente, só que o câncer me fez repensar algumas situações. Deixei de esquentar a cabeça com situações que parecem gigantes, mas que, na verdade, são banais. Evito me preocupar em demasiado com determinados fatos. Tenho melhorado, enxergado a vida de outra forma".

"Um dos momentos que voltaram para a nossa rotina foi o café da tarde. Cinco, cinco e meia, a gente se senta à mesa e toma café junto. É uma coisa que já vinha da minha família, da minha mãe, do meu pai. Mesmo se terminássemos o almoço às quatro e meia, às cinco, a mesa do café estava posta e parecia que ninguém tinha almoçado. Nós havíamos perdido isso e, hoje, recuperamos completamente. Inclusive, já é hora de ir para a mesa, vou ter de me despedir".

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