Ele não nasceu artilheiro

Como Thiago Galhardo, aos 31 anos, desafia a própria história para ser o artilheiro e (O cara) do Brasileirão

Marinho Saldanha Do UOL, em Porto Alegre Thiago Ribeiro/AGIF

Aos 31 anos, ninguém se descobre artilheiro. Faro de gol é algo que costuma ser descoberto mais cedo. Mas foi depois dos 30 que Thiago Galhardo se viu no comando do ataque do Internacional. E gostou. Com a camisa colorada, marcou oito vezes no Campeonato Brasileiro até agora. Após dez jogos, é o cara não só do líder, mas de todo o torneio.

A história do jogador, porém, indicava que algo assim poderia acontecer. Afinal, Galhardo nunca foi de aceitar calado o que recebia da vida. Sua personalidade forte o fez discutir com dirigentes, abandonar concentrações e até deixar o futebol para passar em um concurso público.

Foi a mesma personalidade que o fez insistir na bola após rodar por clubes do Brasil (e um do futebol) até encontrar uma casa no Internacional, um clube que já tinha histórico de pegar um meio-campista e transformá-lo em artilheiro — saudades, Fernandão...

Agora, o UOL vai contar a história de Galhardo que não nasceu para marcar gols. Mas convenceu a todos que poderia fazer isso mesmo assim.

Thiago Ribeiro/AGIF
Arquivo Pessoal

Um jogador de personalidade

Todos os entrevistados pela reportagem do UOL Esporte para este perfil definiram o atacante do Inter como um cara de personalidade forte. O traço esteve presente desde muito cedo, antes mesmo dele se consolidar como jogador profissional.

Galhardo estava nos juniores do Bangu e, no dia do jogo contra o Flamengo, após o almoço do grupo de atletas um contratempo o tirou do sério. Uma discussão com a diretoria irritou muito o jogador, que resolveu desistir. Thiago chorou, desabafou e, simplesmente, saiu da concentração.

Mazola, técnico da equipe, se deu conta da ausência do jogador, um dos mais importantes de seu grupo, e passou a procurar Galhardo. Encontrou na estação de trem Guilherme da Silveira, decidido a ir embora.

"Ele estava muito triste. E não estava errado. Estava no direito dele. Muitas vezes, nós precisamos aconselhar o atleta. Eu falei para ele, e isso ficou muito marcado para mim: 'Dê dois passos para trás, faça o que a diretoria está pedindo. Hoje você joga contra o Flamengo nos juniores e ano que vem você joga contra o Flamengo nos profissionais'. Eu sempre guardo isso comigo", contou Mazola.

Profecia: convencido, Galhardo voltou e jogou. No ano seguinte, 2010, atuou contra o Flamengo, no Engenhão, no time principal do Bangu.

Eu o acompanho desde sempre, lembro dele jogando salão. É genético, ele tem 31 e aparenta menos. Falam isso de mim também, do Gabriel. Ele está chegando no ápice. Se cuida, não sofre lesão, pensa muito, tem uma questão racional muito interessante, é muito inteligente fora de campo e ainda vai contribuir muito para o Inter

Rafael Galhardo, irmão e guitarrista da banda Ponto de Equilíbrio

É um jogador que assimila rápido, liga rápido, é frio em campo, não sente o jogo. Chegou para trabalhar conosco em setembro, no Bangu, e em janeiro já estava no profissional. O atleta que vem da várzea, não tem maturação de base, mas tem personalidade. E o Galhardo tem de sobra. Quando é assim, ninguém segura

Mazola, primeiro técnico na base do Bangu

Arquivo pessoal

Os golpes de cabo de vassoura

Antes do Bangu, Thiago já tinha desistido uma vez. Tinha passado em concurso público para uma vaga na Petrobrás. O salário de R$ 4,5 mil era muito mais atrativo do que as incertezas do mundo da bola. Mas apareceu um teste no Bangu e ele aceitou fazer uma última tentativa.

Quem fez a avaliação foi Mazola, o mesmo que o resgatou na estação de trem. Ao redor do olheiro, apenas jogadores de ataque e meio-campo e nenhum zagueiro. Thiago Galhardo era o mais alto presente e foi chamado para um posto na defesa. Após alguma reclamação, foi para a zaga.

"No primeiro lance, ele dominou a bola, foi carregando, rompendo as linhas. Quando vimos, estava na intermediária do adversário. Eu olhei e pensei: é muito talentoso. Logo, coloquei um pouco mais para frente, de volante", lembrou o treinador.

Com alguns passos para frente, Galhardo passou a dominar o jogo da peneira. Bastaram 15 minutos para ele ser aprovado. E reclamar: "Professor, só 15 minutos?"

Rapaz, tira o colete e fica tranquilo. Esses 15 minutos foram suficientes. Você está aprovado

Mazola

Aquela reclamação por minutos em campo foi só a primeira. A personalidade (provavelmente a palavra mais escrita nesta matéria) do garoto precisou ser contida várias vezes. "Não era fácil não", relatou Mazola, entre sorrisos, antes de revelar a "represália lúdica" que ele aplicou em Galhardo e em outros dois jogadores com comportamento parecido.

"Eu chamei na minha sala, coloquei pra dentro aos gritos. Eles eram muito difíceis, personalidades fortes, todos jovens ainda... Peguei um cabo de vassoura, coloquei eles sentados nas cadeiras e falei: 'faz o que eu mandar ou vai tomar cabada de vassoura'. Eu dei cabada de vassoura neles, nas canelas", contou Mazola. "Mas eram cabadas lúdicas".

No mesmo tom de brincadeira, quando já atuava pelo Vasco, Galhardo levou a equipe da ESPN até Mazola. Na reportagem, ele pediu ao antigo treinador que falasse das "cabadas lúdicas" que dava nos jogadores.

Masashi Hara - JL/Getty Images for DAZN Masashi Hara - JL/Getty Images for DAZN

O atacante que não atacava

A carreira de Galhardo era uma estrada cheia de curvas. Bangu, Botafogo e vários clubes pequenos. Coritiba em 2015 e Ponte Preta no ano seguinte. O Albirex Nigata, do Japão, em 2017, foi a única oportunidade fora do país até agora.

"Nossa temporada não foi muito boa", falou Wagner Lopes, ex-atacante da seleção do Japão e técnico do Albirex na época, que acabou rebaixado ao final da temporada. "Ele sempre foi muito dedicado. Sempre vimos nele um potencial imenso. Gostaria que ele tivesse continuado mais tempo conosco, mas ele achou melhor voltar. Tenho certeza que, se ele tivesse insistido mais e permanecido, teria desempenhado um futebol muito melhor e conquistado grandes coisas".

Eu dizia para ele ir para área. Ele preferia cobrar o escanteio a cabecear. "Vai fazer gol, deixa que outro cruza para você. Com o tamanho que você tem, com a capacidade técnica que você tem, precisa ir para área"

Wagner Lopes, técnico de Galhardo no Japão

Eu tenho certeza que serviu muito para o aprendizado dele. O primeiro ano no Japão é complicado. Ele não falava japonês, tudo muito diferente. Não tenho nada de ruim para falar. Sempre foi trabalhador, com potencial imenso

Wagner Lopes

Antes de atuar no Albirex Nigata, Galhardo tinha 24 gols em sete anos de carreira. Depois da passagem por lá, já marcou 37 vezes em três anos. Até agora.

Ele sempre teve potencial, mas o futebol não te dá respostas de uma forma linear. Eu vejo nele uma pessoa responsável por estar no posto que se encontra. Ele é muito trabalhador, sempre buscou resultado que está tendo. Sinceramente, não sei te dizer porque isso não ocorreu antes. Mas é um jogador que se cuida muito e, mesmo com 31 anos, ainda tem muita lenha para queimar".

Wagner Lopes

Beni Jr/Arquivo Pessoal

Entre a música e o futebol

Thiago Galhardo tem dois irmãos. O mais velho, Rafael, tem 39 anos e é guitarrista da banda de reggae Ponto de Equilíbrio. O mais novo, Gabriel, de 26 anos, é jogador de futebol. Os três formam uma família incomum. Inclusive para os padrões do mundo do futebol.

"Eu e o Thiago não temos nada a ver com o Rafael. Ele é músico, do rock, do reggae, bem diferente. Nós somos pagodeiros, gostamos de samba, funk. O Rafael não leva nenhum jeito para o futebol, nem nós para música, tocar ou cantar", brincou Gabriel.

"Eu tentei dar aulas de violão pro Thiago quando ele tinha uns oito ou nove anos. Ele não gostou muito. Negócio dele sempre foi a bola. Para ele e para o Gabriel. Eu fui para um caminho mais artístico. Nem aguento mais jogar, fico todo dolorido", sorriu Rafael.

Em comum só a facilidade de expressão. "Minha mãe é educadora, advogada, sempre bateu nesta tecla. E quando o futebol se desenvolveu mais para eles, eu sempre falei que eles precisavam saber se expressar. Entender a hierarquia, mas ter argumentos, saber se posicionar no ecossistema do futebol. Vivemos num país em que educação é um privilégio e sempre insistimos nisso. Como jogador de futebol, eles são inspiração para alguém. E precisam saber se colocar", contou o irmão mais velho.

Engajamento e solidariedade

Outro ponto em que Thiago Galhardo é incomum no futebol é em como ele encara o papel de um jogador de futebol na sociedade. Ao marcar um dos gols contra o Ceará (o primeiro no vídeo acima), comemorou com gestos em libras (Língua Brasileira de Sinais). O recado era para a torcedora Liliana Kruger, que costuma acompanhar o time e se relaciona com os jogadores. Entrevistado, o atacante lembrou do Dia Nacional do Surdo e levantou a bandeira da inclusão.

Victor Thadeu, filho de Mazola, seu primeiro treinador no Bangu, foi atropelado quando tinha 4 anos de idade. Ficou 21 dias em coma e a família, admitindo que o pior aconteceria, assinou o termo de doação de órgãos. "Mas Deus fez um milagre para nós. Ele se recuperou, saiu do coma", contou o treinador.

Restaram, porém, dificuldades. Com sequelas do lado direito do corpo, ele precisaria de cuidados especiais ao longo da vida. O plano de saúde que atende a todas as necessidades é incompatível com os rendimentos de Mazola. Galhardo é quem paga. "Ele também fala muito em Deus. Ele tem Deus com ele. É iluminado". Victor tem, hoje, 21 anos.

Fernando Alves/AGIF Fernando Alves/AGIF

Em casa no Inter e de olho na seleção

O Internacional apareceu para Galhardo em um momento de evolução. Após deixar o Vasco, teve ótimo desempenho no Ceará. Os números de gols e assistências na temporada 2019 chamaram atenção e o Colorado ofereceu a oportunidade de disputar novamente a Libertadores, comandado por Eduardo Coudet.

O treinador, inclusive, lembrava de Galhardo de um confronto entre Racing e Vasco. Tão logo foi debatido o nome dele, "Chacho" aceitou prontamente, empolgado com o que poderia ser apresentado.

No início, ele conviveu com a reserva, mas a cada partida que entrava ganhava pontos com o comando. Virou titular de fato pouco antes da paralisação pela pandemia de novo coronavírus, desbancando D'Alessandro. A lesão de Guerrero — após a retomada — fez Galhardo assumir totalmente o protagonismo. Desde que o peruano saiu, são oito gols em oito jogos.

"Ele está muito feliz no Inter. Ele se encontrou, gosta do clube, das pessoas, do tratamento que recebe da torcida", contou Rafael Galhardo. "Fazia tempo que não via meu irmão tão feliz. Ele se sente muito à vontade, gosta dos companheiros, se sente acolhido, tem ferramentas para exercer um bom futebol, está muito contente, mesmo", completou Gabriel.

E, como o próprio Thiago Galhardo disse quando foi apresentado no Inter, quando o jogador está feliz, as coisas tendem a acontecer de forma positiva. Embalado pelo rendimento até agora, ele sonha com passos maiores. Inclusive seleção brasileira.

Eu sou um cara sonhador, sempre sonhei com coisas grandes. Os campeonatos europeus estão voltando agora, tenho certeza que ele (Tite) está olhando de uma forma diferente para o Brasil, até porque já estamos trabalhando há bastante tempo. Eu sonho. Sonhar pequeno e sonhar alto dá o mesmo trabalho".

Galhardo, no Bem Amigos do Sportv

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF

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