O Mister deles

Português Jose Peseiro comanda Venezuela contra o Brasil e lembra de quando quase trabalhou no São Paulo

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Carlos Rodrigues/Getty Images

Em fevereiro, a seleção da Venezuela recorreu ao badalado mercado português de treinadores depois que Rafael Dudamel trocou o país pelo Atlético-MG - o "desertor" foi demitido do time brasileiro 50 dias depois, mas esse não é um assunto para já.

O português Jose Peseiro, 60, é, agora, o homem que personifica objetivos ousados da Venezuela: adotar um estilo de jogo mais ofensivo, estabelecer conceitos do futebol europeu, proporcionar momentos de contentamento a um povo tão sofrido e, pela primeira vez, classificar o país de mais de 30 milhões de habitantes para uma Copa do Mundo.

Nenhuma das missões promete ser fácil. Nas Eliminatórias do Mundial do Qatar, a Venezuela foi derrotada pela Colômbia (3 a 0) e pelo Paraguai (1 a 0) nos dois primeiros jogos com o novo treinador. O próximo desafio é hoje (13), às 21h30, no estádio do Morumbi, contra a seleção brasileira.

A porcentagem de sucesso diante de vocês [seleção brasileira] é muito pequenina, mas se existe uma porcentagem vamos agarrá-la para fazer um bom jogo e um bom resultado."

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Jose Peseiro conta detalhes desse desafio no sétimo país diferente onde trabalha — o segundo com uma seleção. Um destes países podia ter sido o Brasil, para onde ele viajou para assinar com o São Paulo em 2015, mas não deu certo. Hoje, atento à invasão de treinadores portugueses no futebol nacional, guarda memórias de Ricardo Sá Pinto e Abel Ferreira e uma certeza: "É bom para os portugueses virem para o Brasil, mas é importante que o Brasil dê tempo aos portugueses."

Carlos Rodrigues/Getty Images

Assista à entrevista

RAUL ARBOLEDA/AFP

São Paulo ficou no quase

Essa onda de treinadores portugueses no Brasil podia ter começado não com o sucesso de Jorge Jesus no Flamengo entre 2019 e 2020, mas cinco anos antes: o São Paulo esteve muito perto de contratar Jose Peseiro.

Ele era o favorito do presidente do clube na época, Carlos Miguel Aidar, depois da indicação de empresários. O técnico viajou ao Brasil para apresentar pessoalmente à diretoria seus projetos e ideias em duas reuniões em maio de 2015. O São Paulo fez uma espécie de processo seletivo para encontrar o sucessor de Muricy Ramalho. O escolhido foi o colombiano Juan Carlos Osório.

"Eu cheguei a me reunir com o presidente, naquela altura, do São Paulo. As coisas estiveram muito bem encaminhadas para se concretizar, mas não se concretizaram. Tive outras possibilidades no Brasil, mas essa foi a situação que chegou mais perto", relembra.

Na época, a diferença de pedidas salariais entre Peseiro e Osório foi noticiada como o motivo da decisão. Mas há um elemento que foi menos explorado: conselheiros e dirigentes do São Paulo fizeram pressão pela desistência por causa de uma matéria da "ESPN" em que o português era chamado de "pé frio" por, até então, não ter conquistado nenhum título de elite na carreira.

A repercussão desta reportagem, além de desentendimentos de Aidar com o então vice-presidente de futebol tricolor, Ataíde Gil Guerreiro, que não via com bons olhos a relação com os empresários do treinador, impediram a contratação.

Peseiro seguiu a vida: participou da campanha do Al Ahly campeão nacional do Egito em 2016, mas não completou o trabalho porque, antes disso, trocou a África pelo gigante Porto, em Portugal —em seu país, não conquistou títulos. Até hoje continua sem trabalhar no Brasil.

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Brasil fica para o futuro

Ex-atacante de pouco destaque do futebol português entre os anos 1970 e 1990, ele começou a trabalhar como treinador antes dos 35 anos de idade. Rodou por divisões inferiores com trabalhos sólidos até pintar como assistente do compatriota Carlos Queiroz no Real Madrid galáctico de 2003/2004. A dupla portuguesa durou um ano, mas Peseiro mudou de patamar.

À frente do Sporting no ano seguinte, chegou de forma surpreendente à final da Copa da Uefa (hoje Liga Europa), no auge da carreira do atacante Liédson. Mesmo com a final realizada em Portugal, o time foi derrotado pelo CSKA (aquele time comandado por Vagner Love). Depois do time lisboeta, Peseiro rodou por Arábia Saudita (dirigiu até a seleção entre 2009 e 2011), Romênia, Grécia, Emirados Árabes e Egito. Faltou o Brasil.

"Contatos, reuniões na Europa, tive algumas, mas nem vou falar os times porque são mais recentes, não tem sentido falar. Uma coisa é falar em contato e outra é ser uma escolha direcionada, como foi no São Paulo", justifica.

Com empresários atuantes no Brasil, Peseiro frequentou a lista de contatos de dirigentes de vários clubes brasileiros. Alguns exemplos recentes são o Santos após Jorge Sampaoli, o Fluminense antes de Odair Hellmann e, principalmente, o Flamengo após a saída de Jorge Jesus, em julho. O técnico da Venezuela teve uma reunião com representantes do clube na Europa, mas a escolha foi por Domènec Torrent - já demitido.

Sobre o futuro? "Sou treinador da seleção venezuelana, estou aqui com a máxima responsabilidade e esperança. Essa vontade de treinar no Brasil me fez falar com vários clubes e avaliar projetos nos últimos anos, mas hoje isso não faz sentido porque nem eu próprio, nem o povo venezuelano ou a federação, merecem essa traição. Tenho que estar envolvido no projeto."

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Portugueses em alta

Quatro treinadores portugueses trabalharam em clubes de elite do Brasil em 2020: Jorge Jesus (Flamengo), Jesualdo Ferreira (Santos) e os dois que estão disputam o Brasileirão atualmente: Ricardo Sá Pinto (Vasco) e Abel Ferreira (Palmeiras). Jose Peseiro conhece a ambos.

"O Ricardo Sá Pinto foi meu jogador no Sporting quando jogamos a final da Copa da Uefa, e o Abel quando eu estive no Braga pela segunda vez ele era treinador da equipe B. O que eu espero, como português, é que eles tenham sucesso para abrir mais portas", diz.

À frente da Venezuela, ele não está sozinho entre as seleções sul-americanas, porque a Colômbia é dirigida pelo seu amigo Carlos Queiroz. Ou seja, há dois portugueses e só um brasileiro (Tite) entre os dez técnicos das Eliminatórias. É uma valorização evidente da escola portuguesa de treinadores, que brilha mundialmente nos últimos anos.

Lembro que em Portugal, de 16 equipes, chegamos a ter nove treinadores brasileiros uma época. É a universalidade, o que o mundo global proporciona. Quantos treinadores do Brasil não estão na Arábia, no Golfo, quantos treinadores da Alemanha não estão na China? O mundo nesse momento tem uma globalidade transversal. Há uma escola portuguesa, mas não fazemos todos a mesma coisa

Jose Peseiro, Técnico da seleção venezuelana

Existe em Portugal uma formação bem delineada do primeiro ao quarto nível. Depois existem estilos de jogo que têm a ver com seu conhecimento e referências. Há treinadores que defendem mais e ganham e os que jogam no ataque e perdem, depende de muita coisa, inclusive da capacitação e da reciclagem. Os portugueses têm tido conquistas em todo o mundo. Quando saímos para a Europa ganhamos em Ásia, África...

Sobre a onda portuguesa

Este boom que Jesus criou no Brasil é uma realidade, desperta interesse. O que não invalida de pensar que existem treinadores brasileiros com grandes projetos de jogo, mas que vivem -- e isso não é crítica, é realidade -- em ambientes em que não é fácil consolidá-los, quando três derrotas ou dois meses são suficientes. É impossível consolidar um projeto de jogo complexo, ofensivo, com pressão alta, reação pós-perda efetiva, sem treinar com consistência. Prefiro vitória com consistência, sucesso com consistência, do que sucesso pontual

Sobre a realidade brasileira da profissão

Prensa FVF

Ter sorte? Não, causar desconforto

Brasil e Venezuela se enfrentam hoje e Peseiro sabe que vai ser difícil levar pontos do Morumbi. A seleção da casa fez nove gols e tomou dois nas duas primeiras exibições, enquanto o time visitante sofreu quatro e não marcou. De um lado, duas vitórias — do outro, duas derrotas.

Nesta semana, ele deu uma entrevista à TV do país que rendeu polêmica ao dizer que é preciso "ter sorte" para vencer o Brasil. A expressão foi vista como uma redução da importância do trabalho tático e técnico, mas não foi por aí. Ao UOL Esporte, o português se explica: "Acho que as pessoas muitas vezes não gostam que se diga a verdade. Na Copa América em que a Venezuela empatou em 0 a 0 com o Brasil houve um grande trabalho, mas também houve sorte. Até por decisões do VAR, que foram favoráveis. Coisa que não aconteceu contra o Paraguai, uma decisão na minha opinião vergonhosa, porque o gol foi limpo e nos foi anulado quando faríamos 1 a 0. O futebol também tem esse fator."

Ganha-se com sorte? Não. Para se ter sorte tens que procurar essa sorte. Como? Estando cada jogador nos seus limites e a equipe nos seus limites de concentração, atenção, solidariedade... Mas o fator sorte ajuda muito. Contra o Brasil, uma seleção como a Venezuela, por mais que esteja no seu melhor, precisa ter momentos de felicidade para conseguir um bom resultado aqui."

Para esta partida, o Brasil não terá os titulares Casemiro, Neymar e Philippe Coutinho. É o que a Venezuela quer aproveitar: "É um jogo em que temos que estar muito bem organizados, retirar espaço e tempo deles."

"Queremos ser sólidos ao defender e no contra-ataque encontrar opções para agredir o adversário, fazer gols, colocar o Brasil em desconforto. Eles jogando como jogam e confortáveis no jogo, com um adversário ineficaz, tornam-se mais difíceis para nós. Acreditamos que é possível fazer um bom resultado."

Os "brasileiros" da Venezuela

Ivan Storti

Soteldo

Por questões de viagem, o atacante do Santos atuou só em 23 minutos da derrota contra o Paraguai nos dois primeiros jogos da Venezuela nas Eliminatórias. Como desta vez o jogo é no Brasil, participou de toda a rotina de treinos e deve jogar. Tem 81 jogos e 15 gols pelo Santos desde 2019.

Ettore Chiereguini/AGIF

Otero

Foi reserva na estreia das Eliminatórias e titular no segundo jogo, é um dos principais nomes da seleção e está com bom ritmo de jogo. Ele está no Brasil desde 2016, mas nesta temporada trocou o Atlético-MG pelo Corinthians. Tem 12 partidas, fez um gol e vinha sendo titular.

Bruno Cantini/Atlético-MG

Savarino

Foi titular contra a Colômbia, mas não saiu do banco diante do Paraguai. É o camisa 10 da seleção venezuelana e também um dos destaques do Campeonato Brasileiro. É o segundo jogador mais eficiente do Atlético-MG em 2020, com 12 participações em gols em só 26 participações.

Diogo Reis/AGIF

Hurtado

Destaque das seleções de base tem chance agora entre os profissionais. Emprestado pelo Boca Juniors, defende o Red Bull Bragantino desde agosto e já tem 13 jogos. Foram dois gols marcados em jogos consecutivos da Copa do Brasil e do Brasileirão, contra Palmeiras e Grêmio.

Carlos Rodrigues/Getty Images

Venezuela ao ataque

A seleção venezuelana antes era conhecida como o saco de pancadas das Eliminatórias. Com Dudamel, um ferrolho defensivo fez o time perder menos jogos. Mesmo assim, ficou em último lugar entre os postulantes à Rússia-2018... O plano de Jose Peseiro é dar ao longo deste ciclo até o Qatar outro passo em nome da competitividade da "Vinotinto". Em outras palavras, mudar o estilo.

"Pretendemos projetar um jogo mais audaz e agressivo. Não um jogo de controle, domínio e posse de bola, porque isso não se prepara em uma semana ou duas, mas dentro de uma questão cultural, social e formativa do país. Uma cultura, como é no Brasil, que se reproduz desde os clubes. Pode se falar em médio e longo prazo na Venezuela. O que sempre defendemos para nossa seleção é que não é só especulando que se chega ao Mundial", crava, antes de completar:

"Essa realidade pode chocar, mas precisamos de uma seleção que continue defendendo muito bem, mas que associe mais o contra-ataque, que no ataque poderá algumas vezes ter momentos de controle do jogo em posse para tirar a iniciativa do adversário e projetar dinâmicas ou descansar um pouco com a bola. E no processo defensivo ter o posicionamento baixo, mas colocar situações de pressão mais alta, ganhar a bola mais próximo da trave adversária para proporcionar uma situação de gol. É um trabalho que requer tempo e terá que ser dado com passos concretos e tranquilo."

Ele já viu que não dá para fazer isso com pouco tempo para treinamentos. Tentou e levou três da Colômbia. Contra o Brasil é provável que seja mais do jeito que foi diante do Paraguai: marcação baixa, compactação e transição ofensiva: "Essa falta de treino, para dar organização e colocar ideias, é um limitador, mas temos que conviver com isso. Mais do que falar nos problemas é arrumar soluções."

Divulgação/Facebook/FVF

Preocupação com o lado social

Uma pesquisa divulgada em julho pela Universidade Católica Andres Bello (UCAB), de Caracas, mostrou que a pobreza na Venezuela cresceu em 2019 e hoje afeta 96% da população do país, o pior índice do continente e inferior a alguns países da África. Esses números não entram em campo, mas dão o contexto do que vive o país. E do papel do esporte, segundo Jose Peseiro.

"Olha, o futebol tem uma dimensão social muito além daquilo que muita gente possa pensar. Educacional e cultural também", diz o português.

"O futebol é um microssistema de um macrossistema que é a sociedade, também feita de pessoas e suas relações e responsabilidades. A formação dos jovens é a primeira questão, depois a formação do jogador profissional. E então contribuir para uma exigência que a sociedade determina, que é dar espetáculo, proporcionar momentos de euforia, momentos de alegria, infelizmente de frustração também, a partir de um espetáculo universal da modalidade mais espetacular do mundo", conta, empolgado, antes de completar:

Não é só na Venezuela, as querências estão em todo o mundo. Mas há atividades que estão por unir mesmo nos momentos mais difíceis da vida. As pessoas têm dificuldades e o futebol pode proporcionar um tipo de satisfação. Futebol não dá de comer a ninguém, mas pode dar bem-estar, satisfação, vontade de viver."

O Mister da Venezuela quer deixar sua marca.

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