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Biles deixa Tóquio sem ouro, com futuro indefinido, mas como heroína

Simone Biles na final da trave das Olimpíadas de Tóquio - Laurence Griffiths/Getty Images
Simone Biles na final da trave das Olimpíadas de Tóquio Imagem: Laurence Griffiths/Getty Images

Demétrio Vecchioli

Do UOL, em Tóquio

03/08/2021 12h00

Simone Biles chegou às Olimpíadas como grande personagem de Tóquio-2020 e vai embora com o mesmo status. O que ninguém esperava é que as razões para ela seguir nas manchetes não fossem uma enorme coleção de medalhas de ouro. A norte-americana marcou os Jogos Olímpicos pela coragem de assumir que não era capaz de competir. E ainda saiu aplaudida de pé por uma apresentação que valeu a medalha de bronze, que pode ter sido a última de sua carreira.

Ao atender os jornalistas na zona mista após a final da trave, nesta terça-feira (3), onde foi terceira colocada, Biles foi perguntada sobre os planos para a próxima Olimpíada, em Paris, daqui a três anos. Deixou claro que isso ainda não está no radar. "Só sinto que antes eu preciso ir para casa e me sentir bem com o que aconteceu", afirmou, em um discurso repetido diversas vezes, antes, aos canais de televisão.

A técnica dela, Cecile Landi, disse que não é o momento para Biles se comprometer com o futuro e também defendeu o descanso. Quer que a ginasta volte para perto dos seus: dos pais, do namorado, dos cachorros. "Um passo por vez. Tudo isso mexeu muito com ela, a semana foi difícil. Não quero colocar palavras na boca dela. Se ela quiser voltar, estaremos aqui para ela", disse Landi, quando perguntada sobre uma eventual aposentadoria.

Atleta mais procurada pelos jornalistas em Tóquio, Biles deixou claro que não acredita que o que ela teve em Tóquio tenha a ver com estresse. Afirmou que estava se sentindo bem, mental e fisicamente. Disse também que não se ressente pelas medalhas que não ganhou, mas por não conseguir entender por que isso foi acontecer com ela justo agora.

"Meu problema é por que meu corpo e minha mente não estavam em sincronia. Por que não se conectam. Eu estava fisicamente bem, e isso acontece. Estava fora do meu controle. Mas minha saúde e minha mente são mais importantes do que qualquer medalha", reafirmou.

Biles começou a se sentir desconfortável na fase de classificação, quando até foi a melhor no individual geral (soma dos quatro aparelhos), mas sem a folga prevista sobre todas as outras ginastas. Na final por equipes, competiu no salto e sentiu que seu corpo e sua mente estavam desconectados. Após a apresentação, disse para Landi que não tinha condições de continuar. "Eu vi nos olhos dela que ela realmente não conseguia", contou a treinadora.

A ginasta relatou ter tido o que na ginástica é conhecido pelo nome de twisties, mas que é comum também em outras modalidades. Um descompasso entre o que quer a mente e como responde o corpo. No beisebol, esse bloqueio mental leva o nome de yips e é bastante discutido na modalidade nos Estados Unidos. O arremessador tem força para jogar a bola mais longe, quer fazer isso, mas o braço se desconecta do cérebro e lança a bola muito mais fraca.

Acontece a mesma coisa em modalidades que exigem diversas piruetas, em que os atletas perdem a referência visual e mudam o eixo de rotação do corpo diversas vezes em frações de segundos. Nesses esportes, o bloqueio é conhecido como "twisties".

A diferença para os yips é que, no beisebol, o risco é só sofrer uma rebatida, ser sacado do time, perder um jogo. Na ginástica, o atleta perde o controle sobre o seu próprio corpo quando está no ar, a até três metros do chão. Todo o conhecimento motor adquirido durante os anos de treinamentos simplesmente desaparece.

"Vai mais além do mental, é uma coisa que não se tem controle. Você sabe fazer o movimento, só que na hora te dá um branco. Ou então você está fazendo o movimento e na hora sua cabeça para. Isso vai mais além, é perigoso. A gente não pratica esporte fácil. Tem risco, e o risco não é bobo. É risco de se machucar, de acabar com sua carreira que construiu durante anos", comentou Flávia Saraiva, depois de disputar a final da trave exatamente contra Biles, contando que já passou por isso.

Criticada por setores conservadores por ter priorizado sua saúde na competição mais importante do mundo, Biles sai de Tóquio ainda mais idolatrada pela comunidade esportiva, por assumir um papel que vai além daquele de referência em desempenho, mas também de postura.

"Me perguntaram se eu faria o mesmo na minha época como ginasta, mas na época eu não poderia falar nada. Eu provavelmente evitaria falar e me machucaria. Ela [Biles] abre a porta para muitos atletas para dizer: 'Eu não estou ok, eu preciso de ajuda, eu preciso dar uma pausa'", avaliou a técnica de Biles.

Para Flávia Saraiva, Biles deu um "norte" para o esporte. "Ela tem um poder de fala muito grande, mais do que qualquer outra atleta. Então ela poder falar o que realmente acontece na vida dos atletas é muito importante. Ela falar: 'Sim, vou proteger a pessoa Simone'. E é isso que a gente tem que fazer. Eu já sei o que ela passou porque já aconteceu comigo. Não importa a idade, não importa o momento. É assim, do nada. E ver que ela conseguiu quebrar essa barreira é uma vitória muito grande. Isso vale mais do que a medalha para ela."