Punhos que abrem portas

Bia Ferreira leva medalha de prata, chega mais longe que qualquer mulher no boxe e incentiva meninas a lutar

Adriano Wilkson Do UOL, em Tóquio (Japão) UESLEI MARCELINO/REUTERS

Nas estruturas metálicas do teto da Arena Kokugikan, no leste de Tóquio, cartazes de 16 lutadores de sumô observam a ação que se desenrola abaixo deles. Bandeiras de 82 países decoram a parte superior das arquibancadas. A do Brasil tremula levemente entre a de Porto Rico e a da França.

Se fosse um dia comum, os torcedores estariam sentados em almofadas espalhadas pelo chão, as pernas cruzadas e os pés descalços, como manda a etiqueta oriental. Os lutadores de sumô estariam se encarando antes do choque inicial e tambores japoneses estariam tocando de algum lugar da arquibancada. Haveria luzes, fumaça e a expectativa que carrega o ambiente antes de toda luta. De qualquer tipo de luta.

Se fosse um dia comum, Beatriz Ferreira não poderia estar aqui porque mulheres são proibidas de pisar em um ringue de sumô. Os lutadores de sumô consideram seu ringue sagrado, e as mulheres, impuras. Há três anos mulheres foram expulsas depois de tentar socorrer um homem que passava mal no centro do ringue. Sal foi espalhado para limpar as "impurezas" antes da luta seguinte.

Mas hoje não é um dia comum. E no dia mais incomum da sua vida, Bia Ferreira entra caminhando e saltando na Arena Kokugikan, a meca do sumô japonês convertida em ginásio de boxe. O locutor anuncia seu nome. Ela é a primeira pugilista brasileira a disputar uma final olímpica e tem uma bandeira do Brasil enrolada na cabeça. Seu olhar encontra o da irlandesa Kellie Anne Harrington entre as abas do capacete de proteção. O sistema de som toca o funk "A Favela Chegou", de Ludmilla.

Após cruzar as cordas, Bia Ferreira, nascida em Salvador e moradora de Juiz de Fora, chega ao centro do ringue. Ela pensa em colocar seu nome na história. O silêncio incomum é quebrado apenas pelo som de um coração pulsante que faz vibrar os alto-falantes do ginásio.

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Quando Bia solta o primeiro cruzado, seu braço se estica, a irlandesa finta e Bia acerta apenas o ar. O segundo cruzado, ar. Nos trinta primeiros segundos, ar, ar e ar. Enquanto tentava achar a distância correta para a adversária, Bia pode ter feito uma reflexão, se é que numa luta como essa existe tempo para reflexões: "O que eu fiz para chegar até aqui? O que eu vou fazer para sair daqui?"

Se você refletir sobre isso, talvez chegue à conclusão que Beatriz Ferreira não tinha outro caminho na vida exceto ser lutadora de boxe. Ela nasceu quando seu pai, o lutador Raimundo Ferreira, conhecido como Sergipe, rodava o Brasil ganhando a vida tentando ficar de pé no centro do ringue.

Nas fotos desgastadas da família, Bia aparece ainda criança imitando as poses do pai, o punho do jab à frente, o do direto atrás, a guarda montada diante de um adversário imaginário, os pés formando uma base fixa no chão. As condições financeiras da família não permitiram a Bia crescer com muitos brinquedos, então ela se virava com as ferramentas de trabalho do pai. Em vez de bonecas, brincava com luvas, manoplas e equipamentos de academia.

Passava na academia a maior parte do seu tempo livre, vendo o pai e os amigos treinarem, um ambiente masculino e viril em que poucas meninas se sentiriam tão à vontade quanto ela. Até que em algum momento entre a infância e adolescência, ela decidiu que também queria ser boxeadora.

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Quando faltavam meninas para treinar com ela, Bia lutava com meninos. Quando faltavam professores para lhe dar atenção, seu pai vestia as manoplas e comandava seu treino. Quando seus pais se separaram depois que a família mudou para Juiz de Fora, Bia escolheu ficar com Sergipe e jamais abandonar os treinos de boxe.

Ela cresceu admirando o pai até o dia em que virou uma atleta melhor que ele.

Quando finalmente conseguiu encaixar os primeiros golpes na irlandesa, Bia se sentiu mais confiante e ouviu sua torcida na Kokugican comemorar seu desempenho. Nos olhos de Kellie Anne havia nesse momento um misto de medo e dúvida. Ela era maior e tinha mais envergadura que a brasileira, que por sua vez era mais ágil e difícil de ser pega. No meio de uma luta de boxe, enquanto o sangue sobe e o corpo esquenta, o combustível de um pugilista é a confiança que ele ganha quando seus golpes começam a entrar.

Quando Bia acertou o primeiro, logo veio o segundo e o terceiro, e ela foi pra cima, para ganhar o round ou a talvez a luta. Mas o gongo soou, o árbitro separou as duas, e os juízes deram vitória apenas dividida para a brasileira. Seria uma luta longa. O que Beatriz faria?

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Bia Ferreira chegou a Tóquio como "o alvo" a ser batido pelas adversárias. Campeã mundial e primeira colocada no ranking da categoria até 60 kg, ela tinha sido estudada à exaustão por todas as pugilistas do torneio. O boxe é um esporte de força, de técnica e também de estratégia. Quando se reuniu com seus treinadores no intervalo entre o primeiro e segundo round, ouviu novas orientações sobre a tática a seguir.

Os três tinham passado vinte horas vendo e revendo lutas de Kellie Annie nos dias que antecederam à final. De tanto a estudar, Bia acreditava que seria capaz de prever seus movimentos, desviar de seus golpes e encontrar espaço para atacar no meio da sua guarda.

Mas no segundo round, tudo começou a desandar. O boxe é um esporte de força, técnica, estratégia e também de subjetividades. Quando não há nocaute, cinco juízes espalhados em volta do ringue dão nota para o desempenho dos atletas. E nesse segundo round, apesar de Bia e seus treinadores acharem que ela conectou bons golpes e conseguiu se defender bem, os juízes pensaram o contrário.

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A irlandesa Kellie Annie venceu o segundo por unanimidade e também o terceiro, e quando Bia ouviu que tinha sido derrotada na final olímpica, ela viu sua adversária se ajoelhar no centro do ringue, exatamente da mesma forma que ela faria se fosse campeã. Ela talvez fizesse uma dancinha e beijasse a bandeira do Brasil, como dançou e beijou em todas as suas vitórias em Tóquio. Ela certamente agradeceria ao pai e à mãe e a todos os brasileiros que tinham ficado até tarde para torcer por ela.

Em vez disso, Bia apenas olhou para câmera e pediu desculpas ao país. Seus amigos na arquibancada a aplaudiram e gritaram seu nome, dizendo com isso que ela não tinha por que se desculpar.

Quando Beatriz Ferreira subiu no segundo lugar mais alto do pódio alguns minutos depois e colocou sua medalha de prata no pescoço, o hino da Irlanda começou a tocar e a bandeira brasileira foi erguida abaixo apenas da irlandesa.

E assim foi o dia da pugilista que chegou aonde nenhuma outra brasileira tinha chegado antes dela.

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Melhor resultado do boxe feminino brasileiro

Antes de Bia Ferreira ganhar a medalha de prata em Tóquio, o melhor resultado do boxe feminino brasileiro tinha sido em Londres-2012, com o bronze de Adriana Araújo. As duas treinaram juntas quando Adriana disputou as Olimpíadas do Rio em 2016.

A vitória de Bia deixa o boxe como o esporte que mais garantiu medalhas ao Brasil no Japão. Hebert Conceição ganhou um ouro, e Abner Teixeira, um bronze, na melhor participação do boxe brasileiro na história.

O que Bia Ferreira disse:

Jonne Roriz/COB

"Um atleta que se acostuma com a derrota não é atleta. Temos que sempre buscar ser o melhor. Até eu vencê-la, sim, a vitória estará entalada. Mas só de estarmos em um pódio de Jogos Olímpicos, independentemente de qualquer coisa, já somos campeãs. Levo a prata, ela o ouro. Mas a felicidade independe da medalha."

Wander Roberto/COB

"Espero que com a visibilidade dos Jogos Olímpicos, as meninas se animem a lutar. Para que não tenha só uma Bia, uma Adriana. Isso é pra provar que mulher pode fazer o que ela quiser. Quero incentivar as meninas a praticar esporte. Meninas, façam esporte, façam luta. Vale muito a pena. Isso aqui é muito especial."

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