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Teatro e piscina: ex-detento narra rotina em prisões como a de Dani Alves

Visão externa da Brians 2, penitenciária onde Daniel Alves está preso, em Barcelona - Divulgação
Visão externa da Brians 2, penitenciária onde Daniel Alves está preso, em Barcelona Imagem: Divulgação
Talyta Vespa e Thiago Arantes

Do UOL e colaboração para o UOL, em São Paulo e em Barcelona

30/01/2023 04h00

Auditório preparado para apresentações teatrais e musicais, quadra poliesportiva, três miniquadras de squash, academia e piscina. Biblioteca central, serviço médico próprio e espaço aberto para atividades de lazer. Até parece a descrição de um grande lançamento imobiliário em regiões nobres mundo afora, mas essa é a estrutura do presídio de Brians 2, na Catalunha, em que está detido Daniel Alves, investigado por estupro.

A estrutura vem com atividades para que os detentos possam se ocupar, que vão desde estudos regulamentados -de alfabetização à universidade- a estudos não-regulamentados, como ciência da computação e o aprendizado de novos idiomas. Quem está preso em Brians 2 tem direito, ainda, a aulas de pintura, cerâmica e carpintaria; a aprender técnicas de jardinagem, horticultura e a praticar esportes. A leitura é um lazer à vontade.

E o padrão de qualidade da penitenciária -uma surpresa, comparado à precariedade dos presídios brasileiros- não é exceção na Catalunha. Exceção, na verdade, são os espaços que não oferecem estrutura similar. Brians 1, para onde Daniel Alves foi levado inicialmente quando preso, tem estrutura mais antiga e "não tem essa mordomia toda". Quem conta os detalhes é Jorge*, brasileiro preso por tráfico internacional e que considera Brians 1 "uma bosta", e os funcionários de lá, "muito agressivos".

É para Brians 1 que criminosos na Catalunha são levados quando presos. Lá, passam por uma triagem, preenchem um cadastro e recebem um número de identificação. São submetidos a exames médicos e, em alguns dias, decide-se se ficam presos na unidade ou se são transferidos para outra penitenciária. Foi o que aconteceu com Daniel. Com Jorge, rolou o mesmo. Alves está em Brians 2. Jorge passou quatro anos em Lledoners. As duas prisões são bastante similares em termos de estrutura e seguem exatamente a mesma rotina.

Diário de um detento

Às 7h30, os agentes penitenciários passam de cela em cela e fazem a "recontagem", que nada mais é do que uma checagem se o número de detentos não mudou desde a noite do dia anterior. Os presos devem ficar de pé, ao fundo da cela, à espera da contagem. Quando acaba, por volta das 8h30, é hora do café da manhã.

Descem primeiro ao refeitório os que já trabalham no presídio -há funções profissionais, como trabalho na cozinha ou na vendinha (onde os internos que tiverem dinheiro podem gastar até 100 euros por semana com compras. Entre as opções, há refrigerante, café, itens de higiene e até cereais). Os que trabalham na cozinha ajudam a preparar as refeições. Após o café da manhã, os detentos se dividem entre as atividades que cada um se propõe a fazer. Há os que estudam, os que trabalham, os que fazem cursos de artes ou música, e os que não fazem nada.

Entre meio-dia e 12h30, é servido o almoço -uma comida de boa qualidade, segundo Jorge. Sempre tem salada; às vezes tem peixe, e o mais comum é frango. Em dias de menos sorte, serve-se um bife bovino borrachudo, "que a gente demora anos para mastigar". Ainda assim, Jorge conta com exclusividade ao UOL, não dá para reclamar da comida.

A segunda recontagem do dia acontece depois do almoço e a última, após o jantar -às 20h. São três ao dia. Entre uma e outra, os detentos podem descer para o pátio, praticar algum esporte, fazer academia, ou só fumar um cigarro e jogar conversa fora. As celas são trancadas às 21h.

Detentos que trabalham na penitenciária têm direito de escolher se querem ficar sozinhos ou acompanhados nas celas. Tanto em Brians 2, onde está Daniel Alves, como em Lledoners, onde ficou Jorge, o máximo de presos por cela é dois. Em Brians 1, prisão mais antiga, o número pode chegar a seis. Ainda assim, nesses casos, as celas devem seguir um padrão de tamanho determinado pela União Europeia de 3m² por pessoa.

Cada cela tem seu banheiro privativo, em que o chuveiro é separado do resto do espaço por uma cortininha. Tem, ainda, sua televisão a cabo -os detentos podem ver jogos de futebol e filmes; quando vão à sala de informática, podem, inclusive, criar playlists de música no YouTube para ouvir quando estiverem de bobeira.

Divisão por módulos

As penitenciárias são divididas em módulos, e os internos são separados entre eles de acordo com o tipo de crime que cometeram. O tratamento por parte de funcionários e dos próprios colegas de presídio também muda de acordo com os delitos. Em Lledoners, por exemplo, os detidos por crimes de violência sexual compõe o quarto módulo, e não são dos mais bem quistos entre os colegas. Pelo contrário.

Quando chega um novo detento condenado por violência sexual, Jorge conta, tem um protocolo não-oficial. Agentes comentam com outros internos que aquele tal novato estuprou alguém. E os próprios detentos se unem para punir o sujeito. "Agentes avisam, escondido, claro, e outros presos ficam esperando esse cara ir até o banheiro, onde não tem câmera. Então, o espancam", afirma. "Eu só ficava assistindo".

"Incrível como é só olhar no rosto desses caras [estupradores] que você já os identifica. São medonhos."

Esse era o único caso em que as brigas dentro do presídio não eram reprimidas com veemência, afinal, existia anuência dos agentes de segurança. Em qualquer outro caso de agressão ou briga entre presidiários, a repressão é forte: os envolvidos ficam em solitária até que se apure o acontecido e defina se são culpados ou inocentes. Se culpados, eles podem perder alguns dos direitos conquistados, como a possibilidade de deixar o presídio acompanhado de voluntários para respirar um pouco na rua. "As pessoas evitam brigar porque perdem muitos direitos".

Jorge, entretanto, acredita que o protocolo violento contra acusados de estupro não vá se refletir em Daniel Alves. "Com certeza, com ele vai ser diferente. É famoso, tem dinheiro. Não podem deixar isso acontecer".

Lledoners, o antro dos presos políticos

Dentro dos presídios Brians 2 e Lledoners, existem os internos privilegiados, de acordo com Jorge. Quando ele estava preso em Lledoners, os queridinhos da gerência eram os presos políticos, líderes de movimentos separatistas da Catalunha. Para falar com a gerência da penitenciária, o processo é burocrático: o detento precisa escrever uma carta com os motivos pelos quais quer o contato; a carta, então, é recebida por um agente e levada até uma sala de triagem. Depois de diretores lerem, eles decidem se vão ou não conceder a conversa. Pedir o diálogo não é sinônimo de conseguir. Geralmente, é quase impossível que te ouçam, segundo Jorge. A menos que você seja um preso político.

"Os presos políticos diziam aos agentes que queriam conversar com os diretores e em menos de cinco minutos um diretor estava na cela deles. Os privilégios eram escancarados", ele afirma. Jorge diz, no entanto, que não sabe se tais privilégios também envolveriam Daniel Alves por ser um jogador famoso. "Imagino que com ele seja diferente, mas acho que deve ter privilégios também. Não sei quais, mas deve ter".

Jorge passou seis anos preso [dois anos no presídio para jovens e quatro em Lledoners]. Ganhou a confiança dos agentes por bom comportamento, o que lhe deu algumas vantagens conforme os anos foram passando. Às vezes, podia passear na rua, desde que voltasse à noite. "Eu saía e comprava um monte de roupa. Quando voltava, me perguntavam se eu iria dar roupa para meus colegas, e eu dizia que não, que queria estar bem vestido quando saísse. Eles não se importavam. A gente não precisava usar macacão. Nunca pensei em sair e não voltar porque não queria perder esse direito de passear. Me fazia bem".

"Ter ficado preso por seis anos não foi uma tortura física, mas uma tortura psicológica. Porque eu tentava me centrar em mim mesmo para não fazer merda. Sempre tinha gente querendo me tirar do prumo para que eu perdesse a cabeça, arranjasse briga e perdesse direitos. Então, era uma tortura psicológica tentar não ser atingido pelas provocações. Se eu brigasse, seria punido."

Depois de seis anos de reclusão, Jorge foi deportado de volta para o Brasil -apesar de ter cumprido a pena, está proibido de pisar na Europa por dez anos. "Acho que ficar preso na Espanha não se compara à rotina em uma penitenciária no Brasil. E espero nunca conhecer uma para ter certeza."

*Jorge é um nome fictício, usado para preservar a identidade do entrevistado.