Jogador e fisioterapeuta: a rotina entre UTIs de Covid-19 e o futebol
Muitos anos depois que tudo isso passar, histórias como a do zagueiro Caio César ainda serão contadas. Aos 26 anos, o atleta do 4 de Julho já faz parte dos grandes momentos do clube do Piauí: fez o gol que classificou o time à segunda fase da Copa do Brasil pela primeira vez, está no elenco do time estreante na Copa do Nordeste e é torcedor da equipe desde criança. Mas o defensor deixa outra marca nesta temporada que será lembrada por muito tempo: a atuação na linha de frente do combate ao novo novo coronavírus como profissional de saúde.
O gol pela Copa do Brasil garantiu R$ 675 mil aos cofres do 4 de Julho. A trajetória de momentos marcantes começa no ano passado, quando Caio foi campeão estadual com o Gavião Colorado. O título garantiu ao time vaga na Série D do Campeonato Brasileiro, além da participação no mata-mata nacional.
Já a ligação com a saúde surgiu como parte de um plano B para o futuro. Caio prestou vestibular de fisioterapia só para tentar a sorte. Resolveu estudar e jogar futebol, já pelo 4 de Julho, e formou-se sempre abrindo mão de uma coisa ou outra. Às vezes, não treinava ou não jogava. Às vezes, faltava às aulas.
O diploma de Caio, entretanto, acompanhou a pandemia de Covid-19. Queria ele que 2020 fosse um ano inteiro dedicado ao futebol, com a fisioterapia estando guardada para o fim da carreira.
Pandemia não estava no calendário
Mas em toda história, eventos fazem e desfazem planos. Convidado para ser auxiliar em um hospital na cidade de Tianguá (CE) durante 15 dias, Caio descobriu que seu nome continuava na lista de escalas depois deste período. A Covid tinha chegado ao Brasil e profissionais de saúde eram muito necessários. Mesmo sem saber muito da doença, o zagueiro entendeu que deveria estar ali.
Entrou para a equipe médica em julho de 2020 e se dividia entre os grupos de enfermaria e de UTI e auxiliava com os cuidados respiratórios dos pacientes. Nos casos de Covid, o fisioterapeuta é quem tem que acompanhar muitos detalhes ligados ao tratamento.
"Na época, ficávamos em dois durante o dia. Quando um paciente é sedado e intubado, o fisioterapeuta é quem cuida da ventilação mecânica, observando as condições daquele paciente", conta.
Todos os dias uma viagem
Os plantões do jogador geralmente eram aos sábados e domingos. Ele saía da sua cidade, Piriri, no Piauí, distante 110 quilômetros de Tianguá, no Ceará, e já entrava no trabalho. Mal dava tempo para almoçar. Após o expediente, que terminava às 22h se não houvessem intercorrências, dormia na casa da noiva.
Acordava às 5h e voltava para Piriri. Houve dias em que também não conseguia tomar café da manhã. No retorno, uma sequência de opções de transporte para escolher. O primeiro disponível seria o escolhido, sendo ir de ônibus a primeira opção, depois carro e, por último, de moto. Viajar de ônibus permitia descanso. De carro, ainda havia segurança. A moto... Era a necessidade.
"Eu perdi 4 kg nesse período. Pulava refeições, às vezes, chegava mais tarde do que o normal e compensava as horas no fim do expediente. Meu treino era até 10h da manhã e depois eu viajava. Quando saía às 5h, vinha para minha cidade, treinava até 10h e voltava para o hospital", disse o zagueiro.
A rotina seguiu firme até fevereiro, quando Caio teve de se readequar ao futebol, que voltou durante momento de redução dos números da pandemia. Até então, o zagueiro seguia na escala no hospital. Se havia jogo num dia de plantão, pedia para que um colega cobrisse a sua vaga ou até trocava o dia de trabalho.
"Era muito difícil [estar no hospital], porque via muita tristeza. Vi muita gente falecendo. Muitos casais... Um morria e o outro ficava vivo, perguntando sobre a condição de saúde do parceiro. E nós não podíamos dizer. Como diríamos algo assim a um paciente ainda em recuperação? O futebol trazia de volta um pouco da minha alegria, pelo clima que tenho com os jogadores. Para você ter ideia, eu conversava com um paciente no sábado e no domingo me diziam que ele tinha morrido", lamentou.
"O pior momento do Brasil"
Caio classifica a pandemia como "o pior momento da história recente do Brasil". A ele, restava pouco tempo para digerir tudo o que via, já que a rotina apertada o obrigava a sempre seguir em frente. Pestanejava, sim, mas seguia. Não tinha como passar por tudo aquilo sem sentir dor.
"No começo, eram só os idosos. Hoje, nós vemos até crianças sendo acometidas por essa doença. Tratei duas que ficaram bem, mas sei de casos em que não ficaram. Uma história que me marcou muito foi a de uma senhora que se contaminou com a Covid e a família quis afastar o esposo dela do convívio. Ele não aceitou, não queria abandonar a esposa. Os dois vieram ao hospital e ele faleceu", continuou Caio, com a voz embargada.
Único imunizado no elenco
O período no hospital também garantiu a Caio a vacinação contra o vírus da Covid. Ele tomou a primeira dose da Coronavac em janeiro, enquanto a segunda foi aplicada em fevereiro. Feliz pela oportunidade, triste pelas pessoas que ficaram pelo caminho. "É impossível compreender como algumas pessoas não querem tomar a vacina", diz ele.
"Se não vai fazer mal, por que não tomar? É algo que diminui as chances de internação, de intubação, que é um processo muito difícil... Precisamos aliviar os hospitais. Se há algo para dizer em minha história, é que quero que as pessoas se vacinem e se protejam."
Por mais que o futebol seja elemento secundário nessa história, Caio continuou competindo. Saiu do hospital em fevereiro porque o 4 de Julho está no Campeonato Piauiense, na Copa do Brasil e na Copa do Nordeste. Era impossível conciliar.
A história também deu a Caio motivos para se alegrar no futebol. O hospital não fica para trás. É um capítulo de inspiração.
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