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Escritores criticam citação do advogado do Fluminense ao 'Pequeno Príncipe'

Do UOL, em São Paulo

27/12/2013 18h28

O livro O Pequeno Príncipe virou argumento da defesa do Fluminense durante o julgamento no Pleno do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), que manteve a decisão de rebaixar a Portuguesa. Mas, segundo escritores ouvidos pelo UOL Esporte, foi usado de modo errado.

“Foi uma interpretação totalmente furada, uma bola fora”, diz o escritor Sérgio Rodrigues, autor do recém-lançado romance O Drible. Noemi Jaffe, escritora e crítica literária, afirma que se trata de uma "interpretação maliciosa."

O advogado do Fluminense, Mário Bittencourt, para justificar a aplicação da lei que puniu o clube paulista pela escalação do jogador Héverton em situação irregular, resolveu citar um trecho do livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry em que um personagem diz: "regulamento é regulamento."

A passagem mencionada por Bittencourt é do início do capítulo XIV, na edição traduzida pelo poeta Ferreira Gullar. Nela, o Pequeno Príncipe chega a um planeta tão pequeno que só cabem um lampião e um homem que acende o lampião. Ele acende e apaga o lampião de minuto em minuto, porque "é o regulamento".

Quando o Pequeno Princípe diz que não entendeu, o acendedor responde que não há nada para entender, porque "regulamento é regulamento." Bittencourt faz a citação como se fosse algo positivo o cumprimento cego da obrigação simplesmente pela obrigação, sem que, como aparece no desenrolar da história, o personagem tenha tempo para fazer mais nada, nem sequer descansar ou dormir.

No livro, o acendedor precisa acender de manhã e apagar à noite o lampião. Como os dias duram um minuto, ele não encontra tempo para fazer mais nada. Mas nem sempre foi assim, o personagem revela. "Antigamente era razoável. Eu o apagava de manhã e o acendia à noite. Tinha o resto do dia para descansar e o resto da noite para dormir." O Príncipe pergunta: "O regulamento não mudou?" Ao que o acendedor responde: "O regulamento não mudou. Esse é o meu drama! A cada ano o planeta gira mais rápido e o regulamento não muda."

Se Bittencourt queria demonstrar como era positivo cumprir as regras citando este trecho do livro, errou feio. "Isso é uma prova da nossa baixíssima capacidade de compreender o que a gente lê", afirma Rodrigues.

"Advogados estão acostumados com textos cheios de firulas e rococós, por isso se atrapalham com interpretações de textos básicos. Talvez se tivesse um datavênia ali no meio ele entendesse", diz Rodrigues.

Noemi Jaffe não acredita na falta de compreensão. "Certamente ele entendeu, caso contrário não poderia nem ser advogado. O que ele fez foi subverter o significado do livro.", diz. "É uma interpretação anti-literária, no sentido de que a literatura é uma tentativa de romper as regulamentações", afirma Noemi.

Bittencourt já havia usado a citação em outro processo, de 2009, no qual também havia atuado representando uma terceira parte interessada. Questionado pela reportagem sobre a interpretação dada ao trecho de O Pequeno Príncipe, disse gostar do livro e conhecer o capítulo inteiro, mas que tem uma interpretação diferente. "Para mim, o regulamento é o mais importante."

Flamenguista, Rodrigues lamentou que o resultado do campo não tenha prevalecido no tribunal. “O sistema é confuso de propósito, para dar poder ao tribunal, que só deveria decidir em casos extremos.”

Das passarelas para os gramados (e tribunais)

O livro preferido das misses está cada vez mais popular no mundo do futebol. Além da citação feita pelo advogado do Fluminense, outro trecho foi usado recentemente em uma carta aberta do movimento Bom Senso F.C., fazendo referência justamente ao fato do Campeonato Brasileiro terminar nos tribunais. 

Em uma mensagem um tanto cifrada, o movimento escreveu em sua página no Facebook: "E para ajudar o Bom Senso FC a virar consenso de uma vez por todas, o Campeonato Brasileiro terminou de forma melancólica, dentro do tribunal! A frase: "Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas" não poderia se encaixar melhor nessa situação. A justiça desportiva se torna protagonista e o resultado de campo fica para trás. Sem discutir o mérito de quem está certo ou errado, a conclusão final é de que a CBF é que deveria ir para a segunda, terceira, quarta divisão."

"Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas" é uma das frases mais citadas do livro.