Guru empresarial da Globo sabe mais de Copa do Mundo do que você
Nas suas contas, desde 1999, quando deixou de trabalhar dentro do mundo corporativo – mas sem se desligar exatamente dele –, Max Gehringer já realizou palestras em mais de 1.000 empresas. Ao mesmo tempo, escreveu colunas para revistas como “Exame”, “Você S.A.”, “VIP” e “Época”. Hoje, faz comentários e dá dicas sobre o mercado também na rádio CBN e na TV Globo. Isso depois de ter sido presidente da Pepsi-Cola Engarrafadora e da Pullman/Santista Alimentos, além de diretor da Elma Chips e da PepsiCo. Foods nos Estados Unidos. Seria o suficiente, não?
Para o escritor e administrador de empresas nascido em Jundiaí, em 1949, não era bem assim. O tempo, digamos, livre dos escritórios foi investido em outro meio, senão uma paixão. Que tal, então, cerca de 4.000 páginas dedicadas à história das Copas do Mundo? Todas elas estão à venda online, com o título “A Grande História dos Mundiais”, partindo da primeira edição, em 1930, à de 1994.
O trabalho de pesquisa e checagem começou há 20 anos e foi além do que a própria Fifa (Federação Internacional de Futebol) fazia em termos de armazenamento de dados. E vem mais por aí. "Fui aumentando meu arquivo, até que ficou de tamanho impublicável em livros impressos. Continuo garimpando coisas novas que aparecem. É um trabalho que nunca terá fim", afirma ao UOL.
Parece o trabalho de uma vida, certo? Mas Gehringer, que também é membro de um grupo de preservação da memória do futebol, o Memofut, segue com suas palestras e comentários direcionados ao mundo corporativo. Durante seu périplo por empresas, são raras as vezes em que acaba reconhecido por leitores de sua obra futebolística. “Os jovens estão mais interessados em saber como subir rapidamente na carreira, e os veteranos em saber como eu saí da vida corporativa quando estava muito bem nela”, diz. Confira a entrevista:
Futebol e negócios. Ou negócios e futebol
UOL: Seria exagero dizer que, no final das contas, essa série sobre a história das Copas seria o trabalho de sua vida (risos), para surpresa de muitos?
Max Gehringer: Entendo que minha visibilidade na mídia no campo de carreiras e empregos deixa quem não me conhece surpreendido quando me arrisco a escrever sobre futebol, mas faz parte. Também escrevi sobre as reformas ortográficas brasileiras, etimologia e outros assuntos, mas considero que há coisas que faço porque é meu trabalho, e outras que faço por prazer. As pesquisas sobre Copas entram nesse rol prazeroso.
Com qual frequência o futebol pode surgir, seja com metáforas e exemplos em suas palestras? Para alguém que obviamente já investiu muito em ambos os assuntos, é difícil evitar “misturar” as coisas?
Em empresas, é comum usarmos termos e situações de futebol para motivação de equipes. Vestir a camisa, atuar em equipe, bola pra frente, e coisas assim. Já aplicar conceitos empresariais em futebol é bem mais complicado, apesar de muita gente afirmar que clubes precisam ser geridos como empresas.
Primeiro, porque empresas não têm oposição aberta e declarada. Não há um grupo de diretores se opondo a outro grupo e trabalhando contra. E segundo, porque empresas não têm torcedores fanáticos. Se o valor das ações cai, ou se a qualidade de um produto piora, ninguém irá pichar os muros da empresa, ou tentar invadir o escritório para exigir a demissão do presidente. Em minha opinião, qualquer pessoa que afirme que um clube brasileiro pode ser dirigido como uma empresa, com certeza nunca dirigiu uma empresa. Recentemente, recebi convite para colaborar com o Paulista (de Jundiaí) no marketing, mas recusei. Empresas são dirigidas com a cabeça e times de futebol são levados com o coração, e eu prefiro usar a cabeça quando trabalho.
Em que ano decidiu ir a fundo para pesquisar a história das Copas?
Comecei a pesquisar em 1998, a partir de uma pequena curiosidade, a de saber como os países participantes da Copa de 1930 tinham chegado ao Uruguai. Como não descobri muita coisa nos livros brasileiros, resolvi sair consultando arquivos de jornais, já que a Internet ainda não havia decolado. Fui à Biblioteca Nacional de Montevidéu e ao arquivo público de Zurique, comprei em sebos livros ingleses, franceses e alemães, e fui armazenando as informações conseguidas.
Uma surpresa desagradável foi descobrir que a Fifa não tinha nenhuma informação em sua sede na Suíça. Nem mesmo as súmulas das Copas, que ficavam em poder do país organizador. Fui corrigindo e aumentando meu arquivo, até que ficou de tamanho impublicável em livros impressos. Continuo garimpando coisas novas que aparecem. É um trabalho que nunca terá fim. O mais importante, creio: sempre procuro extrair dados de publicações da época em que os fatos aconteceram. Na Internet há muitas histórias fantasiosas que, de tão repetidas, acabaram sendo aceitas como verdadeiras.
Caçando lendas
Você conseguiu desmistificar muitas lendas repetidas à exaustão. Em que momento percebeu que teria um grande trabalho nesse sentido?
Começou com as histórias de que o Brasil era sempre roubado em Copas. Em 1934, contra a Espanha. Em 1938, contra a Itália. Em 1954, contra a Hungria. Só não fomos roubados em 1950 porque havia 200.000 testemunhas. Nos jornais e sites brasileiros, até hoje, essa ladainha de roubos continua sendo repetida. Ao pesquisar jornais antigos de países neutros, descobri que nenhum deles corroborava as afirmações brasileiras. Aos poucos, juntei material para chegar a uma versão mais realista dos fatos e aceitar o que nenhum brasileiro gosta de aceitar, de que perdemos porque o adversário foi melhor.
Qual destas lendas mais te surpreendeu durante as pesquisas e te forçou a gastar mais tempo para checar sua veracidade? O “gol descalço” de Leônidas?
O gol descalço de Leônidas contra a Polônia foi intrigante, porque na década de 1970 o próprio havia afirmado à TV Cultura que havia feito sem a chuteira. Consegui encontrar uma publicação francesa de 1938 que reproduzia um trecho do relatório do observador da Fifa na partida, o holandês Karel Lotsy, elogiando a rápida providência do juiz sueco Eklind ao “ordenar que Leônidas deixasse o campo e calçasse nova chuteira assim que o brasileiro tirou do pé a chuteira que o estava incomodando e dava a impressão de pretender continuar jogando sem ela”.
Há um país ou mídia de um país que você considera que tenha sido mais, hã, criativa na hora de contar essas histórias?
Há muitas outras histórias desse tipo, e eu confesso que às vezes me sinto até mal tendo que desmentir alguma coisa que sempre foi considerada como verdade. Mas a valorização de lendas em detrimento da realidade não é privilégio nosso. Os argentinos são tão criativos quanto os brasileiros.
A causa da febre
Qual sua primeira memória sobre uma Copa do Mundo? Como chegar a um projeto desses?
Meu pai tinha aquela famosa edição especial da “Gazeta Esportiva Ilustrada” sobre a Copa de 1950, que guardo até hoje. Na época, ele trabalhava no Rio como mecânico itinerante da Central do Brasil, e por causa das viagens a trabalho só conseguiu estar no Rio no dia do último jogo, contra o Uruguai. Todo mundo que vivia a menos de 200 km do Rio jurava que tinha estado de corpo presente no Maracanã naquele domingo, mas a história de meu pai era muito mais saborosa. Sem ingresso, ele e mais alguns colegas resolveram tentar ir ao Maracanã para ver se achavam uma brecha para entrar, e acabaram ficando entalados na rampa de acesso, com uma multidão à frente e outra atrás, todo mundo ali estático, sem saber o que estava acontecendo no campo.
O interessante é que volta e meia meu pai me mostrava a “Gazeta Esportiva Ilustrada” e comentava os lances do jogo como se tivesse estado nas arquibancadas, irritando-se ao relatar o tapa que o Bigode levou, ou a bola fácil que o Barbosa deixou passar. Foi a partir daí que comecei a sentir que Copa do Mundo era algo muito diferente, porque fazia as pessoas acreditarem piamente no que pensavam ter visto, ou queriam ter visto.
Melhores e piores
Qual foi a melhor Copa? Pesa mais a qualidade do espetáculo, de 90 em 90 minutos, ou a dramaticidade do torneio?
É mais fácil escolher a pior: a de 1990. Tão ruim que a Fifa elegeu Totò Schillaci como o melhor do torneio. É quase impossível lembrar de um só jogo de 1990 que tenha sido primor de técnica. Seu futebol amarrado levou a Fifa a mudar o regulamento e conceder três pontos por vitória a partir de 1994. Claro que sempre vamos considerar a melhor Copa uma que ganhamos, mas para observadores neutros o mundial de 1954 teve tudo o que se espera de uma Copa, começando pelo insólito fato de que a Espanha foi eliminada pela Turquia em sorteio. Fora isso, aconteceram gols às pencas, batalhas campais e resultados surpreendentes, culminando com a vitória do mais improvável campeão de todas as Copas, a Alemanha, que bateu a invencível Hungria na final.
E qual considera a melhor seleção brasileira a disputar uma Copa? Há alguma seleção estrangeira que poderia fazer frente a este time?
A de 1970, talvez por ter sido a primeira que vimos ao vivo e pudemos tirar nossas próprias conclusões. Antes da Copa começar, não estávamos muito seguros de que nossa seleção poderia fazer o que fez, mas de repente tudo se encaixou, com uma ofensiva de cinco craques que compensou uma defesa que nos deixou apavorados um monte de vezes.
A seleção de 1958 era mais equilibrada, mas a equipe perfeita só atuou uma vez, na última partida, contra a Suécia. Tem também a Holanda de 1974, que pegou os sul-americanos desprevenidos com um futebol revolucionário. Mas pouca gente lembra que a Holanda só foi à Copa graças a um erro do juiz soviético, que anulou um gol legítimo da Bélgica no último minuto do último jogo das Eliminatórias, em Roterdã.
O torcedor brasileiro em geral crê que, se uma Copa foi perdida, é por que algo de errado aconteceu. Excluindo o Maracanazo, qual parecia mais na mão e teve desfecho indesejado?
Nós perdemos em 1982 devido a três falhas individuais que Paolo Rossi aproveitou. Mas a derrota foi chocante porque acreditávamos que poderíamos vencer mesmo que nossa zaga errasse, como de fato errou. Lembro-me de ter ficado um longo tempo olhando para a tela da tevê depois que o jogo acabou, sem ânimo para nada, e no dia seguinte muita gente me disse que tinha tido a mesma reação. Mas, em minha opinião, nós estivemos muito mais perto de ganhar em 1998, quando chegamos à véspera da final jogando melhor que a França, do que em 1982, quando caímos na segunda fase.
Nas prateleiras
Após tantas andanças pelo mundo (real e virtual) em busca de informações sobre as Copas, em que ponto acha que se encontra a literatura futebolística do Brasil, o autodenominado “País do Futebol”?
Existe quantidade e qualidade, mas a procura é bem menor que a oferta. Não me lembro de um só livro sobre futebol que um dia tenha entrada na lista dos dez mais vendidos. Eu diria que existem três categorias de obras. Os livros ‘de torcedor’, que exaltam descaradamente o clube do autor. Os livros ‘de pesquisador’, que vão com mais profundidade aos fatos e são menos generosos com os elogios. E as biografias de jogadores, que misturam ficção e realidade.
As baixas vendas de livros sobre futebol têm dois motivos. O primeiro é o desinteresse da maioria dos leitores. Três de cada quatro livros vendidos atualmente no Brasil são de autoajuda e esoterismo. E o segundo é o imediatismo do torcedor. Há muito mais gente querendo saber como seu time jogou ontem ou vai jogar no domingo que vem, do que gente preocupada com algo que aconteceu há mais de quarenta anos. Não bastasse isso, parece que atualmente estamos disputando não um Campeonato Brasileiro de Futebol, mas um Campeonato Brasileiro de Arbitragens, considerando-se o tempo e o espaço que a mídia dedica à discussão de erros de juízes.
Depois de quase 4.000 páginas dedicadas às Copas, pensa em tocar/estaria tocando mais algum livro sobre futebol?
Acabo de lançar um, em parceria com meu colega Darcio Ricca, sobre o fatídico sete a um da Copa de 2014. Foi uma ideia do Darcio, que fez a maior parte do trabalho, e eu contribuí com alguns capítulos. O livro chama “Sete Atos, Um Final?” e tenta explicar o que a torcida brasileira está tentando entender até agora.
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