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Opinião

Antero

POR LEANDRO IAMIN

Na premiada tetralogia da escritora Elena Ferrante há uma família Greco vivendo em Nápoles no início dos anos 50. O primeiro livro da série, chamado A Amiga Genial, nos apresenta Elena Greco, a Lenú, que narra a história e nos mostra como seu lugar no mundo, a periferia napolitana daquela época, era cercada de pobreza e violência - além de machismo, corrupção e outras pragas. Foi o romance mais gostoso que li, em tempos pandêmicos, estes dias ainda tão perto mas já tão distante. Tempos que mudaram nossas vidas e o Sportscenter.

Antero Greco, de fora do radar da obra de Elena Ferrante, nasceu em 1954, curiosamente com o sobrenome e na mesma época da obra literária. Por toda a vida assobiou como um doce querubim as belezas de Nápoles e arredores. Foi por ele que conheci, em texto, a personagem Veronica, de uma comédia chamada Telegaribaldi. Veronica ironizava o fato de Nápoles ser tão diferente do resto da Itália, como se fosse um país à parte. Nas quatro ou cinco vezes que o vi, foi claro o quanto o tema atraía Antero.

Talvez tenha sido o único gesto de egoísmo por parte de Antero ter contado a tanta gente sobre seus projetos literários envolvendo a região da Campânia, bem como de toda a Itália, e não ter publicado. Logo o Antero, que nunca negou compartilhar conhecimento e tão bem se relacionou com a própria intelectualidade, não encontrou tempo para formatar, encadernar e colocar na praça o produto de pesquisa e vivência apaixonada de uma vida.

Ficamos sem seus livros sobre a Itália e Elena Ferrante não teve Antero em sua obra. Os Greco existiram e também foram criados. Antero é outra coisa. Brasileiro, jornalista, não viu a pobreza napolitana na infância, mas viveu a ditadura em plena mocidade. Viveu e moldou o tom, riscou o chão para dar o limite, passou por algumas das portas de redação mais importantes da profissão e chegou na casa das pessoas, que era assim que se chegava nas casas antes da internet. Na minha casa, inclusive.

O meu primeiro Antero era do Diário Popular, jornal diariamente comprado pelo meu avô e fiscalizado no dia seguinte pela minha vó, que procurava fotos do Vanderlei Luxemburgo para recortar e guardar em uma bolsa de couro. Seu espaço no jornal continha uma foto dele de barba. Recortei sua foto para juntar às outras de narradores e comentaristas que tinha guardado numa caixa de margarina. Quando jogava futebol de botão ou arrastava figurinhas pelo tapete, criando meu mundo de bola, escalava uma equipe de transmissão que ficava ao lado do campo. Contratei Antero.

Não consta que algum dia meus jogos de botão foram narrados por Silvio Luiz, comentados por Antero Greco e reportados por Apolinho.

O Antero sem barba da ESPN me ocorre nos finais de semana na casa do meu amigo Gabriel, onde a TV a cabo já era contratada. Aquela coisa do Sportscenter de madrugada que recomeçava assim que terminava. Não poucas vezes assistimos insones o mesmo telejornal em sequência mais de uma vez. Não é a parte mais original desse texto, mas sim, aquilo me abriu uma porta para escolher um jeito, um tom, tentar ser de uma forma, ter uma bossa e dar inspiração.

Porque esse lugar da nossa profissão, jornalista que fala de futebol, exala uma testosterona e uma vaidade irmãs e um pouco ridículas. Antero foi o dono da opinião menos virilizada do seu meio. Nunca apelou, nunca cedeu ou se deixou levar por um ambiente de insulto, de pós-jogo enervado, de qualquer baboseira dessas que validam a postura nossa em alguns momentos da trajetória. Antero não socou a mesa uma só vez, não engrossou a voz para convencer ninguém, e no entanto nunca se omitiu das grandes pautas. Com polimento, nunca se deixou parecer ambíguo.

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Quando precisei tomar, em meu estúdio de podcasts, uma decisão que há muito me atormentava e cujas consequências profissionais poderiam ser tóxicas e violentas, o telefone tocou dez minutos após eu anunciar que encerrava um de nossos programas de maior audiência. Era o Antero. Uma ligação que não era entre amigos, pois amigos não fomos, mas entre colegas de profissão e, acima e tudo, e aqui me envaideço um pouco, entre pessoas que não se omitem. Antero me acalmou, me encorajou e me deu palavras que pareciam vindas de um vidente. Me emancipava de todos os meus medos na minha hora mais vulnerável.

É, pois, o que a gente mais lê e ouve nos relatos dos amigos e amigas que dividiram de fato uma parte da vida com o Antero: deu atenção, carinho e suporte como se o estoque não tivesse fim. Não negou educação e generosidade a anônimos, distantes, fãs, ninguém. Teve atenção com os pequenos gestos e não se deixou seduzir com o prestígio a ponto de perder a bússola no bolso de trás. Construiu assim a sua biografia. Jamais caberia pessoa tão doce e pacífica naquele livro da Elena Ferrante.

Ou caberia, e faria a vida de suas protagonistas um pouco menos precárias. Afinal, ali, na obra, vemos uma garota muito jovem escolhendo a leitura de livros para adquirir um conhecimento que a tirasse da miséria intelectual com a qual lidava em casa e na rua. Ela devorava as opções baratas dos sebos da via Port´alba, uma ruela que visitei ano passado para imaginá-la. Antero seria um bom tio para Lenú. Certamente, também, um bom professor. Alguém influente de alguma forma.

Dois Grecos em duas vidas. Antero Greco, de um apartamento lotado só de livros, de uma sabedoria simples e acachapante, de gostos pontuados com ternura, foi o dono de uma das mais belas vidas que conheci. Dono, não, que essa palavra é forte demais. Antero foi condutor de uma bela vida. Acompanhamos no banco de trás, depois no do passageiro, e agora que "Il gas è finito" a gente deixa o calhambeque verde esmeralda silenciosamente estacionado debaixo de um Vesúvio de bondade que nunca cuspirá fogo e acima de uma avenida onde tantos carros cinzas e pretos buzinam, gritam e se esbofeteiam por um pouco mais de atenção - e um pouco menos de biografia.

Antero Greco entrou e saiu dessa grande carvoaria de nervos com um terno branco e um sapato polido. Nenhuma mancha no terno. O sapato ainda brilha.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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