Juca Kfouri

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Opinião

Portuguesa x Palmeiras? Noite de lembrar de Ademir da Guia!

Hoje, às 19h30, Portuguesa e Palmeiras se enfrentarão no Canindé. Recordar é viver:

A FESTA DO DIVINO

Futebol domingo de manhã?

Só podia ser coisa de cartola sem ter o que fazer.

Mas era isso mesmo: Palmeiras e Lusa fariam num domingo de manhã, dia 24 de abril de 1977, pelo Campeonato Paulista, um jogo que não teria muita importância não fosse, dizia-se, pelo fato de marcar a despedida de Ademir da Guia, o Divino, do alviverde.

E lá fui eu testemunhar a história.

Que ganhava contornos de histórica verdade, porque a primeira pessoa que notei na tribuna de imprensa foi Domingos da Guia, o Divino Mestre, apelido que ganhara dos uruguaios ao se sagrar campeão pelo Nacional, em 1933.

O Divino Mestre fora ver o filho jogar.

Ademir já tinha 35 anos e jogara o suficiente para ganhar uma estátua no Parque Antarctica.

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Clássico, frio, inabalável, Ademir da Guia resolveu dar um show particular naquela manhã, fazer coisas que nem eram muito do seu feitio -gols, por exemplo.

Fez dois na vitória palmeirense por 3 a 2.

Um mais bonito que o outro, matada no peito, bola no fundo da rede.

E ainda deu outro para Jorge Mendonça -aí, sim, bem ao seu estilo, num passe genial.

Não satisfeito, salvou lá atrás três gols da Lusa, que tinha um inspirado Enéas, autor do gol de empate em 1 a 1, pelo meio das pernas de Leão.

De repente, 35 mil pessoas estavam em pé no Pacaembu aplaudindo Ademir jogar -se despedir?

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Ademir da Guia parecia querer mostrar que os cartolas não tinham enlouquecido, que qualquer hora era hora para jogar futebol.

E que futebol!

Estava tão especial que fez 1 a 0 aos 19 minutos do primeiro tempo e 2 a 1 aos 19 do segundo.

Milimétrico, cirúrgico, como sempre.

O velho Domingos, que também foi campeão argentino pelo Boca Juniors, em 1935, e carioca pelo Vasco, em 1934, e pelo Flamengo, em 1939, 42 e 43, era um sorriso só.

O orgulho transpirava, indisfarçável.

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Fim de jogo, quem tinha ido ter um aperitivo antes da rodada que aconteceria à tarde sentia-se mais do que banqueteado.

A imprensa cerca o Divino Mestre, que sentencia, impávido colosso: 'Vim para São Paulo porque soube que ele está parando. Trouxe até uma proposta do Vasco, mas nem vou apresentá-la, porque não sou imbecil. De fato, o time do Palmeiras já não é o mesmo de dois, três anos atrás. Mas o Ademir é'.

Nada mais foi dito nem mais lhe foi perguntado. Nem precisava.

Ademir ainda jogou mais cinco meses, cada jogo um recital."

Se a rara leitora e o raro leitor chegaram até aqui, saibam que o texto é reprodução de capítulo de um livrinho meu publicado 20 anos atrás, "Meninos, Eu Vi", pelas editoras DBA/Lance!, já esgotado.

Foi o modo que encontrei para homenageá-lo, já que não tenho o poder de síntese de Armando Nogueira, que, um dia, sobre o Divino, escreveu: "Ademir da Guia, nome, sobrenome e futebol de craque", referência ainda a Ademir de Menezes, o Queixada, craque pernambucano do Vasco e da seleção.

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Muito menos tenho o talento poético do também pernambucano João Cabral de Melo Neto: "Ademir impõe com seu jogo/ o ritmo do chumbo (e o peso),/ da lesma, da câmara lenta,/ do homem dentro do pesadelo./ Ritmo líquido se infiltrando/ no adversário, grosso, de dentro,/ impondo-lhe o que ele deseja,/ mandando nele, apodrecendo-o./ Ritmo morno, de andar na areia,/ de água doente de alagados,/ entorpecendo e então atando o mais irrequieto adversário", publicado no livro "Museu de Tudo", em 1975.

*Publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 5 de abril de 2023.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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