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Guga: "Brasil vive formação de uma democracia que nunca existiu"

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Imagem: Fotojump

Colunista do UOL

09/06/2020 04h00

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A poucos dias do 20º aniversário de seu segundo título em Roland Garros, Gustavo Kuerten conversou com jornalistas em videoconferência, nesta segunda-feira, para lembrar sua trajetória de sucesso no torneio francês. Entre muitos temas levantados no papo que durou pouco mais de duas horas, o ex-número 1 do mundo, que raramente se manifesta sobre política, abordou o atual momento do Brasil e do mundo no cenário socioeconômico e até questionou se o país vive uma democracia de fato, de acordo com a definição exata do termo.

"O próprio país vive um processo de formação da democracia que ainda, infelizmente, nunca existiu. A gente pode considerar uma pseudodemocracia que, traduzindo, é votação direta, mas quando que a gente sentiu o povo mesmo no poder, ser defendido em todas suas instâncias, abraçado pelos nossos governantes, ou seja, um país muito melhor? Quando? Se olhar para trás aí, a gente estaria numa realidade completamente diferente."

No dia 3 de junho, o catarinense compartilhou em sua conta no Instagram um post do grupo Esporte Pela Democracia. No texto, Guga e os outros integrantes defendem "o direito supremo à vida, a uma sociedade justa e igualitária, antirracista, o respeito das individualidades e o valor do coletivo em nome do bem-estar e da dignidade para todos" (veja abaixo).

Na conversa com os jornalistas, em uma longa resposta a uma pergunta sobre o documentário "Last Dance" e se haveria a possibilidade de ser personagem de um documentário similar ao da ESPN sobre Michael Jordan e o Chicago Bulls da temporada 1997/98, Guga esticou o assunto. Depois de falar sobre como o camisa 23 era extraordinário, o tenista ressaltou a necessidade de ressaltar valores mais básicos e de reconhecer os heróis do dia a dia.

O tricampeão de Roland Garros dissertou também sobre como apenas uma pequena parte da sociedade tem a seu alcance o que é visto como sucesso para a maioria e que se a humanidade continuar caminhando assim, o resultado será o distanciamento entre as pessoas.

"Eu digo que o Jordan é que é extraordinário, mas na esquina ali tem um herói. Tem mesmo, de todo mundo que está aqui. Pode ver. Não passa de 1km do raio da casa de cada um, tem 50. E aí vocês vão ver que as tarefas são difíceis, são dolorosas, requerem uma rotina ferrenha, todo esforço do mundo, e eles mantêm a esperança e uma crença absoluta porque senão não tinha como. É aquela fé, a obstinação do campeão do mundo, do Jordan, que está lá. Só que esse cara, ele vive num contexto e vive com as oportunidades laqueadas e num tempero que a capacidade dele transborda em pouca efervescência de inspiração mundial, mas eles estão lá, eles estão presentes, sim. Então acho que é a hora de a gente lidar com algumas questões, que é rever os pontos de sucesso da nossa vida. E nós passamos por isso, que é o tênis, a glória. Nós também percorremos esse sucesso. Só que, de alguma forma, a gente começou a visualizar, a montar um cenário do sucesso que não está ajudando em nada. Ele está virando uma obstinação por um desejo de querer, de obter mais e um próximo passo e que não é o suficiente, e fica todo mundo, muita gente para trás. As chances desse tal sucesso ficam para 20% da população, talvez." ... "Nós somos, sim, todos iguais de alguma forma. Cada um com seu jeito, com a sua maneira de entender e perceber e tal, mas se a gente tiver essa atenção de respirar mais, de se atentar mais, nós cada vez vamos ter maior similaridade. Se a gente buscar mais essa tentativa de querer, de ter, de obter o atual sucesso, nós vamos nos distanciar porque ele vai sobrar para pouca gente."

Ainda sobre o momento do Brasil, Guga lembrou o enorme potencial do país e de seu povo e pediu situações mais justas, que proporcionem à população condições para uma vida decente. O ex-número 1 ressaltou a importância de saúde, educação e segurança e também fez referência à onda de desinformação na internet, declarando que dois lados em conflito acabam por deixar de lado o que deveria ser o principal.

"O nosso país tem belezas fantásticas, situações formidáveis, pessoas incríveis também, um povo que sabe viver, tem sentimento, tem emoção, está vivo nessa presença de querer fazer e, ao mesmo tempo, a gente, de alguma maneira, está ficando mais acuado, mais separado, se distanciando - até obrigatoriamente hoje, o que é uma parte - mas de alguma maneira, essa esperança e a contribuição em fazer um pouco mais pelo nosso país, deixar as situações mais justas, decentes pelo menos, o dia a dia... Que as pessoas possam sonhar, sim em ter melhores perspectivas e uma projeção de vida decente, acho que ela é comum a todos. Acho que ela precisa ser, sim, cultivada, exercida e defendida pelo nosso país com todas as vozes. Não é só do atleta, da figura. Ela vai desde um pronunciamento, de fazer parte de um grupo, de incentivar até a prática do dia a dia. A tentar fazer um pouco do seu papel, poxa. Tentar ali, instigando, inspirando, contagiar mais, levar para essa caminhada, para essa filosofia. Acredito que assim podemos avançar muito, ter gênios de todos os tipos - de altura, de peso, de raça, de modalidade, qualquer coisa. Nosso país tem uma criatividade, uma essência, um brilho de encantamento que é diferente. A gente precisa se descobrir um pouco melhor. Acho que é um momento também de buscar o máximo de tranquilidade como sempre, mas atualmente, ainda em cima de uma pandemia, mas de que essa busca continue presente, que a gente continue se sustentando, esperançando movimentos que tragam reflexos e conquistas para o nosso país, não dá para dizer definitivas, mas essenciais. Que a gente tenha na saúde algo que esteja estruturalmente montado, pronto. No tênis, quando vai chegar o Guga? Se vier tudo antes... saúde, segurança, educação... Esses três, principalmente. Se tiver isso antes, deixa o tênis para daqui a 50 anos, não tem problema. Um dia vai acontecer. Precisamos ainda dar mais valor a isso. Obviamente, na própria internet hoje é muito delicado porque cada situação, cada ponto, cada tentativa, ela tem hoje um turbilhão de informações e muita capacidade de isso virar invertido, mal dito. Antigamente, as formas de comunicação eram mais restritas, mas existia pelo menos um fluxo mais confiável. Hoje tem de tudo na internet, funciona para todas as funções. Isso é extremamente desafiador porque as pessoas têm esse sentimento de querer fazer, de querer ajudar, contribuir, mas muitas vezes ambos lados até, querendo encontrar uma solução, acabam em conflito por situações pequenas e esquecendo o nosso principal objetivo, o principal motivo de contribuição ao país."

O tricampeão de Roland Garros destacou ainda que é preciso que cada um busque dentro de si uma maneira de contribuir.

"Acho que o caminho que precisamos percorrer é ser um pouco melhores também. Buscar esse desenvolvimento de ainda desafiar mais até onde a gente pode se entender melhor, se orientar para, nos assuntos como eu falei que são os assuntos mais críticos, esses de hoje, de grandes mudanças necessárias, de alguma forma tentar contribuir ou até mesmo tentar ser mais assertivo. Eu vejo que, mundialmente, todos querem ajudar. A grande maioria quer trabalhar a favor e às vezes tem até conflito de opiniões completamente inversas. Umas mais pacíficas, outras mais agressivas, é muito difícil de saber qual é o melhor caminho, mas também o ficar parado, nessa situação, já é sabido que é inconcebível. Acho que é por aí, sabe?"

Dia 11 de junho, quinta-feira, marcará o 20º aniversário da conquista do bicampeonato de Roland Garros. O blog Saque e Voleio trará material especial, revivendo a trajetória de Guga desde os Masters de Roma e Hamburgo até a final contra Magnus Norman em Paris.