Não é pela F1: só xadrez faz pilotos da Ferrari passarem dias sem se falar
Seu companheiro de equipe é inimigo mais íntimo. No quarto ano juntos na Ferrari, Charles Leclerc e Carlos Sainz aprenderam a posicionar bem suas peças
Poucos esportes são tão únicos quanto a Fórmula 1 e seus dois campeonatos paralelos, que ora unem os dois pilotos da mesma equipe em busca do título de construtores, ora fazem com que um seja o maior rival do outro na disputa entre pilotos. Ayrton Senna e Alain Prost, Nelson Piquet e Nigel Mansell, Lewis Hamilton e Fernando Alonso? a lista é longa de relações entre companheiros que acabaram até prejudicando a equipe em alguma medida.
Bem mais raros são os exemplos de duplas de pilotos de desempenho equilibrado nas pistas e que não entraram em erupção fora delas.
É como um jogo de xadrez. Na Ferrari, literalmente. Embora sejam pilotos muito diferentes dentro da pista, Charles Leclerc e Carlos Sainz são do time daqueles que entendem que, trabalhando juntos, vão mais longe. Mesmo que fiquem sem se falar por alguns dias depois de alguma derrota mais amarga no tabuleiro, no padel, no golfe ou em qualquer outra competição que eles inventarem fora das pistas!
Cheguei para a entrevista com a antecedência pedida pelo assessor de imprensa, que não estava no escritório da Ferrari. Os dois pilotos estavam lá, um mostrando algo para o outro no celular, rindo. Foram chamados pelo chefe, Fred Vasseur, que queria saber o que mais eles tinham para fazer porque estava com fome. Eles iriam jantar todos juntos naquela noite e já passava das 19h.
Resolvi entrar no meio da conversa e dizer que estava pronta para a entrevista. É tudo tão cronometrado na F1 que valeu a pena a intromissão. Eu tinha 20 minutos com os dois e alguns temas, como a chegada de um tal de Lewis Hamilton ou o futuro de Sainz, não podiam ser mencionados. Minha estratégia, então, sabendo da raridade que é ter os dois companheiros ao mesmo tempo em uma entrevista, era fazer um falar do outro.
Mais parceria e menos rivalidade interna
É inevitável, especialmente na Ferrari, que haja rumores de problemas de relacionamento entre companheiros. Principalmente quando se trata de uma dupla tão nivelada na pista quanto Leclerc e Sainz. Mas nunca houve motivos concretos para se acreditar nos boatos, e é isso que surpreende o espanhol. "Nestes três, indo para quatro anos em que tivemos juntos, mesmo estando sempre muito próximos em termos de performance, a gente sempre se deu bem. Charles é um cara muito fácil de se lidar."
Uma prova disso é o quanto eles se conhecem fora das pistas. "Uma coisa que me chama a atenção nele é que ele tem um alto nível em tudo o que ele faz", conta Leclerc. "Na F1, é esperado que você trabalhe em alto nível, mas no caso dele é em tudo. Principalmente a habilidade dele no golfe."
Para Sainz, o que surpreende é a habilidade de Leclerc com o piano. "Não sei como ele aprendeu tão rápido e ficou tão bom!". O monegasco começou a tocar na pandemia, levou o novo hábito adiante, e até já lançou algumas músicas.
Esqueça a F1. É o xadrez que faz os ferraristas ficarem sem se falar
Então quem é o mais competitivo? Um olha para o outro. É uma pergunta difícil. "Todos temos que ser competitivos para chegar aqui", diz Leclerc. "Mas você é mais do que os outros pilotos que eu conheço", responde Sainz. Isso está começando a ficar mais interessante.
O espanhol, então, explica que outros pilotos não se importam em perder em outros esportes. "Charles não é assim. Ele para de falar com você por dias quando ele perde."
Leclerc primeiro diz que não, depois admite que isso pode ter acontecido após um jogo ou outro de padel, a nova mania entre os pilotos depois da febre do golfe dos últimos anos. "Não, é mais no xadrez", entrega novamente Sainz. "No xadrez que a gente tem disputado mais." E Charles é obrigado a concordar.
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Quero receberEu assumo um risco e peço para eles dizerem quem é melhor em cada modalidade fora da pista. "Opa, opa, opa", diz Leclerc, claramente sem querer perder nem nisso. "Eu me considero melhor no xadrez", diz ele, buscando uma reação de Sainz, que faz a classificação final. "No xadrez é 50/50. No padel eu sou um pouco melhor, no golfe eu sou melhor. No piano, ele ganha." E caso encerrado.
Leclerc come mais quando vence, Sainz sofre sozinho com as derrotas
O comilão dos dois é Sainz, confesso. "Você tem mais disciplina", diz o espanhol para Leclerc, que concorda em termos. "No geral, sim, mas uma coisa que faz eu me perder é felicidade. Se eu tiver uma boa corrida, eu quero comer bastante e ninguém me para no domingo à noite!"
Sainz também tenta jogar a bola para o companheiro quando a pergunta é sobre quem é o mais festeiro dos dois.
"Eu acho que é o Charles".
"O quê? Eu nunca vou pra festas"
"Ah, mas quando você vai, é para valer"
"É, eu curto bastante quando vou para a balada, mas só umas três vezes por ano. Eu guardo a energia para as noites boas."
"E eu, não sei se é a idade, mas não estou aguentando mais", diz Sainz do alto de seus 28 anos.
Sainz tem mesmo um jeitão de ser mais sério que Leclerc, mas Charles entrega que não é bem assim. "Depende do dia. E da hora", diz ele. Na verdade, a impressão que fica é que Carlos é mais reservado com tudo, inclusive com suas frustrações.
Leclerc é conhecido por ser muito duro consigo mesmo quando as coisas não vão bem. Quem não se lembra de sua frustração no rádio, se chamando de estúpido, quando bateu na classificação do GP do Azerbaijão de 2019? "Ele é mais duro com ele mesmo publicamente. Eu fico remoendo tudo, fico pensando nas coisas que deram errado quando vou dormir."
Um ponto pacífico: Os dois acreditam no futuro da Ferrari
É mais difícil para Sainz reconhecer isso porque ele está de saída ao final desta temporada, dando lugar a Hamilton, mas o espanhol foi o único piloto fora a dupla da Red Bull a vencer em 2023 e já repetiu a dose no início de 2024. "O objetivo principal é continuar melhorando para continuar lutando por objetivos maiores, e também que o time seja mais consistente, para que tenha uma plataforma estável para conseguir desenvolver melhor."
E isso parece ser uma realidade pelo que foi visto até aqui na temporada. A Ferrari abandonou o carro imprevisível de 2023 e está confiante em relação aos próximos passos. Isso é particularmente animador para Leclerc, que renovou seu contrato por "múltiplas temporadas". O acordo iria até 2029, embora o prazo exato não tenha sido divulgado.
O mais importante é que ele segue na Scuderia quando a F1 passar por uma mudança grande no regulamento, em 2026, com um novo carro e, principalmente, a volta do motor como um diferencial de performance. A grande novidade é a introdução do biocombustível na F1, em um motor movido metade via motor a combustão e metade pela bateria elétrica.
"O combustível vai ser a grande mudança deste regulamento, então o fato de a Ferrari ter uma parceria já há tantos anos com a Shell influenciou muito minha decisão de continuar na equipe. A colaboração já vem de muitos anos, então ambas as partes sabem o que têm de fazer para trabalhar bem juntas. É algo que me dá muita confiança de que temos as pessoas certas para esse projeto."
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