Milly Lacombe

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Por que mulheres abusadas denunciam anonimamente?

A história que envolve Kleiton Lima, ex-treinador do time feminino do Santos, é didática sob muitos aspectos. Comecemos com a cronologia.

O ex-treinador do time feminino do Santos foi afastado por causa de acusações de assédio sexual e moral. Lima foi acusado dos crimes através de 19 cartas anônimas que continham muitos e tenebrosos detalhes. Inicialmente afastado, ele foi recontratado meses depois. O Santos alegou que fez as devidas investigações e que nada foi provado contra ele.

As investigações teriam sido feitas internamente, mas, na sequência da recontratação, ex-atletas do Santos relataram que não haviam sido procuradas para prestar esclarecimentos. As jogadoras dos times rivais protestaram, o caso ficou estranho, e Lima foi outra vez afastado.

Agora, o episódio segue para os tribunais adequados e teremos que aguardar o desenrolar. Lima alega não ter feito nada de errado e, até a conclusão do devido processo legal, precisa ter sua presunção inocência preservada. Lutar por isso é lutar por princípios básicos da democracia.

Aqui vale sempre ressaltar que há, sim, casos de falsas acusações. Segundo a pesquisadora estadunidense Amia Srinivasan e a escritora de mesma nacionalidade Rebecca Solnit, eles são da ordem de 3% a 5%.

A autoria dessas falsas acusações recai majoritariamente sobre outros homens: são eles que acusam alguém de ter cometido violência sexual contra uma mulher. Outro dado curioso: dentro das falsas acusações, a maior parte é composta de homens brancos acusando falsamente homens negros de crimes contra uma mulher. Esses recortes precisam ser feitos porque a justiça, como sabemos, de cega não tem nada. A mulher periférica que acusa o empresário rico de estupro tem que tipo de chance de passar por um processo legal decente? E a mulher branca e rica que acusa o homem negro e periférico? Acho que sabemos as respostas e podemos seguir.

Por que é muito raro que mulheres acusem falsamente? É sobre isso que falaremos.

Muitos dos que defendem o ex-treinador santista alegam que denúncia anônima é covardia e que assim fica fácil culpar qualquer um de qualquer coisa.

Vamos aos contextos.

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Denúncias de violência de gênero não são denúncias quaisquer e têm prerrogativas que outras não têm. Por exemplo, no uso da palavra da acusadora como prova. A palavra, nessa circunstância, é mais do que uma denúncia e tem peso de prova.

O anonimato é um direito e serve para proteger a integridade de quem acusa. Por quê? Porque, historicamente, a mulher que acusa tem a vida devastada. Ela é, de imediato, colocada no papel de mentirosa e aproveitadora e, ato contínuo, vira ela a réu perante a opinião pública. O caso Mariana Ferrer é exemplo contundente a respeito dessa inversão perversa.

Ferrer foi estuprada numa boate em Florianópolis, para a qual ela trabalhava, em 2018. O MP investigou, reuniu provas bastante sólidas e acusou o comerciante André Aranha, de família rica e poderosa, pelo crime. O nome da trabalhadora Mariana Ferrer nunca esteve anônimo. Numa das audiências, reveladas pela repórter Schirlei Alves, a gente vê a vítima ser tratada como acusada pelo juiz e pela defesa do comerciante. Durante horas, Ferrer é humilhada e ridicularizada sem que sua parte faça nada a respeito.

O caso terminou com uma pessoa recebendo sentença de prisão: a jornalista que revelou o vídeo da audiência. O comerciante, a despeito das inúmeras provas, perícias e indícios, teve sua inocência mantida e seguiu com a vida. As imagens das câmeras que indicariam a culpa do acusado foram descartadas do processo por "baixa qualidade", o que é incomum e para surpresa e indignação de muitos peritos.

Ferrer, que não fez uso do anonimato, entrou em depressão, se trancou em casa e até hoje luta por seus direitos. Seria diferente se o nome dela tivesse sido ocultado? Certamente seria diferente para ela, que foi vítima de todo tipo de violência nas redes sociais e até nas ruas.

O anonimato também assegura que, em relações de poder, a vítima possa se proteger de quem está hierarquicamente acima dela e cometeu o crime. Você teria coragem de denunciar o seu chefe? "Ah, mas se você está sendo abusada, dane-se o emprego." Olha, eu diria que para a vasta maioria perder o emprego é como perder a vida. Filhos, dependentes, aluguel... o que fazer?

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Então, em relação a crimes de violência contra a mulher, o anonimato não é covardia e não é malandragem, ele é uma proteção contra a violência que cai como um tsunami sobre a cabeça da mulher que denuncia. Vale o mesmo princípio para o sigilo da fonte no jornalismo, mas esse é considerado sagrado por muitos dos que reclamam das denúncias anônimas.

Por tudo isso, os casos de violência de gênero estão entre os mais subnotificados do mundo. Estima-se que em relação ao estupro esse número chegue a nove vezes. Se for assim, o dado de uma mulher estuprada a cada oito minutos passaria para uma mulher estuprada a cada menos de um minuto.

Então, quando escutar que a denúncia é anônima, resista à tentação de responsabilizar a denunciante por uma suposta covardia. Ao compreender o contexto fica mais fácil defender o direito à preservação da identidade de quem fez a acusação.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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