Milly Lacombe

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O que devemos fazer com nossos amigos considerados babacas?

Acho que todos nós temos aquele amigo ou aquela amiga que a gente sabe que pode ser um babaca ou uma babaca dada a situação. Olhando de fora, pensamos mais ou menos assim: como um cara tão bacana pode ser amigo de alguém considerado tão babaca? É um pensamento bastante normal mas que acaba fixando pessoas em posições que elas nem sempre ocupam de forma absoluta. Falemos do empresário Casimiro e de seu amigo Neymar.

A primeira observação seria a de que nem Casimiro deve ser uma pessoa tão incrivelmente bacana nem Neymar apenas esse homem infantilizado que é dotado exclusivamente de dois superpoderes na vida: driblar e dar sempre uma opinião humanitariamente errada sobre qualquer assunto.

Somos feitos e feitas de luzes e de sombras e seria preciso reconhecer esses aspectos tão humanos em todos e todas nós porque só a partir desse reconhecimento podemos nos transformar.

Uma vez deslocados das posições nas quais os fixamos podemos começar a falar do estranhamento que sentimos com amizades como as de Neymar e Casimiro.

Casimiro, conhecido como Cazé, é comunicador e empresário do ramo. Ficou famoso pela forma honesta e bem-humorada de reagir a acontecimentos mundanos. Casimiro se coloca na vida de forma a opinar corretamente sobre temas como machismo, misoginia, LGBTfobia, eleições, racismo, feminismo etc e tal. Não dá pista de ser um homem infantilizado apesar de navegar por oceanos de audiências bastante juvenis. Tem a virtude de compreender as injustiças do mundo e de usar sua potente voz na tentativa de diminuí-las.

O amigo de Casimiro, pelo contrário, ofereceu apoio político a um homem que defende tortura e torturadores, que faz elogio público ao estupro, que chama mulher de fraquejada, acusado de ser muambeiro de joias que pertencem ao Estado brasileiro, suspeito de ter cometido um genocídio usando o vírus da covid como arma biológica, suspeito de ter tentado arquitetar um golpe de Estado e, mais recentemente, suspeito de buscar uma rota de fuga.

Esse mesmo amigo do Casemiro é amigo de um homem condenado por estupro e a quem ajudou financeiramente a ter a pena diminuída.

Como já disse algumas vezes, nossa fúria em relação ao dinheiro emprestado pela Neymar S/A a Daniel Alves deve ser direcionada ao sistema que permite que alguém pague para ter a pena diminuída e não exatamente a quem emprestou o dinheiro. Esse sistema imoral, indecente e perverso se chama capitalismo e isso precisa ficar radicalmente claro. O momento é para que percebamos quem é o inimigo porque só assim pararemos de nos matar entre si - para benefício do inimigo que não é percebido como tal.

Vejam: se eu fosse bilionária e uma amiga querida estivesse presa por ter cometido um crime hediondo, eu emprestaria o dinheiro para que ela tivesse a pena diminuída. Se o sistema penal me dá esse direito eu provavelmente agiria de modo a tirá-la da prisão esperando que minha amiga buscasse caminhos outros para reparar seu crime.

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Mas voltemos aos amigos que são percebidos pela opinião pública como pessoas muito diferentes entre si.

Do que eles falam? Do que riem juntos? O que os une, afinal?

Eu lembro de ver Neymar, logo depois da eliminação do Brasil na última Copa do Mundo, atender com carinho ao pedido de abraço do garotinho que invadiu o campo com a camisa do rival. Na hora pensei que alguém que fosse apenas um grande babaca não faria isso. Minha memória me diz também que quem tirou Neymar desse ato tão honesto de afeto foi justamente Daniel Alves, e isso me deixou bem irritada. Na época cheguei a escrever a respeito.

Durante a live de transmissão da final do Paulista, Casimiro, que raramente erra em público, reagiu de forma destemperada à pertinente opinião de uma pessoa da audiência que pediu para que ele parasse de endeusar Neymar, cuja imagem, volta e meia, aparecia na tela já que o jogador estava presente nas tribunas de honra do estádio.

No dia seguinte, Casimiro reconheceu o erro, mas a mulher que fez a crítica já tinha sido covardemente atacada por muitos dos que estavam assistindo ao evento. O dano estava feito e o assunto ficou entre os mais comentados do dia levantando outra vez a questão de como alguém percebido como tão bacana pode ser amigo de alguém percebido como tão babaca.

E aí chegamos ao ponto central dessa questão: como tratar o seu amigo considerado babaca? É preciso romper? Há caminhos alternativos?

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Eu acho que existem alguns.

O primeiro seria o de, no privado, chamar o cara para algumas conversas na tentativa de fazer com que ele perceba por que algumas de suas posições são tão brutalmente equivocadas e a quem elas ferem quando tornadas públicas. É um trabalho educativo mesmo. É no dia a dia. É na miúda. É longe das câmeras. É guerrilha interna.

O segundo seria o de encontrar um tom para, publicamente, falar do amigo internacionalmente famoso sem parecer babar um ovo e, ao mesmo tempo, sem jogá-los aos leões porque, afinal, existe ali amizade, carinho, afeto. Essa é uma ação sensível, mas, dada a inteligência do amigo não babaca, é também perfeitamente executável. Focar nas pautas que o amigo rechaça, ignora ou ridiculariza é também bacana para fazer o contra-ponto e seguir jogando à luz temas que são, na real, da ordem do viver e do morrer para tantos grupos de pessoas nesse país.

Por fim, haveria o trabalho de mostrar por que existe um tecido que os une e do que esse tecido é feito. Dessa forma, quem sabe, o amigo considerado babaca poderia, despacito, ir se transformando.

O que eu acho errado é que exijamos de outros atitudes que nós nem sempre tomamos nas nossas vida. As grandes transformações dependem de estarmos dispostos e colocar os pés em algumas lamas. Do conforto de nossos ambientes lotados de aliados e de pessoas que pensam como nós não poderemos fazer muita coisa em nome de uma sociedade menos cruel.

Pensando assim, querer que Casimiro rompa com Neymar ou o critique pesadamente em público não seria de grande ajuda. O que valeria mesmo é que o comunicador usasse de seu amor pelo amigo e de sua inteligência para a comunicação para trazer alguém tão popular como Neymar para o time de cá.

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Somos responsáveis por nossas ações e opiniões, verdade, mas seria importante jamais esquecer que somos também produtos de uma sociedade apodrecida e adoentada. Uma sociedade que nos forma para sermos machistas, misóginos, racistas, LGBTfóbicos e capitalistas. Termino com o grande Eduardo Galeano: "Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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