Milly Lacombe

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O Fluminense de Diniz e a anatomia de uma eliminação

A eliminação do Fluminense do Campeonato Carioca para o Flamengo foi comentada mais no contexto da coletiva de Fernando Diniz do que no da atuação em campo. A opinião corrente foi a de que Diniz errou no tom. Faz tempo que as coletivas pós-jogo viraram zona de confronto. Eu não gosto das entrevistas realizadas imediatamente depois das partidas. Acho que não há espaço para elaborar vitórias e derrotas e acredito que a cabeça quente dos treinadores depois de resultados ruins acaba comprometendo o clima.

Numa autocrítica sempre necessária, temos que perceber que algumas das perguntas feitas são tentativas de embate e, muitas vezes, teorias sobre os motivos do fracasso. Não gosto quando jornalistas tecem teorias em coletivas pós-jogo. Acho que o momento é para perguntas curtas e diretas. E acho também que entramos nas coletivas com nossas imaginações ligeiramente bloqueadas: agimos das mesmas formas, fazemos o mesmo tipo de pergunta.

Em resumo: é um jogo que, para ser bom, exige que os dois campos estejam a fim de jogar, e nem os treinadores nem os perguntadores estão se saindo lá muito bem nesse ambiente.

Dito isso, queria falar da anatomia da derrota para o Flamengo: do jogo de 180 minutos que acabou dois a zero para o rubro-negro.

Sobre o primeiro jogo, já falamos. O Fluminense fez um primeiro tempo horroroso contra um primeiro tempo excelente do Flamengo. O Flu melhorou no segundo tempo e, depois da expulsão de Thiago Santos, voltou a piorar. Me parece uma derrota fácil de ser entendida.

O segundo jogo é mais interessante a despeito do zero a zero.

O Fluminense veio com uma escalação tresloucada. Um ponta na lateral, Martinelli na zaga, Renato Augusto mais centralizado e aparecendo no meio da área para concluir. O que criticam em Diniz é justamente o que mais gosto nele. Diniz foi corajoso e criativo, e o Flu jogou muita bola no primeiro tempo, especialmente até a parada técnica, quando Tite arrumou o meio de campo e equilibrou um pouco mais a partida.

Taticamente Diniz foi, na minha humilde opinião, genial. Marquinhos, o ponta canhoto colocado na lateral direita, não esteve bem tecnicamente e isso comprometeu a ideia do treinador. Mas taticamente o Fluminense envolveu o melhor time do Brasil hoje, o Flamengo (Sim, ao lado do Palmeiras, mas talvez um pouco à frente).

Se pensamos em linhas fica mesmo complexo compreender o Dinizismo. No "campinho" a escalação pode parecer uma alucinação. Mas a proposta de jogo de Diniz não se baseia em linhas. Não estamos mais no universo das coisas monodimensionais. Diniz vê o jogo em múltiplas dimensões. Analisar taticamente seu Fluminense pensando em linhas é como tentar falar uma nova língua sem sabermos que som as letras têm.

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No segundo jogo, Diniz inovou e se impôs. Não marcou gol, mas seria preciso lembrar que o Flamengo de Tite vem sendo construído ao redor de uma defesa bastante forte e sólida que fez dois jogos excepcionais.

O Fluminense, chegando de um ano glorioso, vai precisar de tempo para se recompor. É apenas natural. O Flamengo de Tite está em construção há mais tempo. O Fluminense precisa, depois de uma fase espetacular, se recompor e se re-entender.

Derrotas fazem parte de qualquer processo de reconstrução. Mas não sabemos mais lidar com elas. Perdeu, então as coisas foram ruins. Ganhou, foram ótimas. E não é assim que a banda toca. Há derrotas que servem para apontar caminhos e vitórias que escondem erros.

Acho uma pena que tenhamos chegado nesse ponto de vilanizar todas as derrotas e glorificar todas as vitórias. Há vitórias profanas e derrotas sagradas. No jogo e na vida. Quantas derrotas estiveram dentro da formação do Fluminense campeão da Libertadores 2023?

Teríamos que saber avaliar os processos e não apenas os resultados. Há aqueles clubes que estão perdendo porque estão caindo do abismo; mas há aqueles que podem absorver as derrotas como etapas de um caminho.

No caso de Diniz temos ainda um ponto sensível: ele trabalha com um sistema de jogo contra-hegemônico e lutar contra sistemas hegemônicos é sempre um desafio maior. O futebol hoje existe dentro de um universo de protocolos: treina-se de uma mesma forma, usa-se a ciência de uma mesma forma, entra-se em campo de uma mesma forma, guardam-se posições de uma mesma forma, fala-se em coletivas de uma mesma forma, fazemos perguntas de uma mesma forma. Diniz chega e propõe modos diferentes de treinar e de jogar.

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Pra mim, é bastante coisa. As derrotas virão e serão absorvidas em nome de um planejamento maior. Na coletiva, Diniz disse que três coisas fundamentais entraram em campo no segundo jogo do Fla Flu: solidariedade, fome, coragem. Concordo com ele. Foi esse tripé que levou o Flu a tantas conquistas em 2023.

Pesava contra Diniz a crítica de ser tão criativo quanto perdedor. O cara ganhou o Carioca, a Libertadores e a Recopa. Não basta. Precisa ganhar mais, ganhar tudo, ganhar sempre.

Se essa ditadura da vitória nos contaminasse apenas no futebol a vida nem seria tão dura. Mas ela escapa dos campos ou, pelo contrário, ela vem de fora e transborda nos campos. Somos uma sociedade que não lida com derrotas ou perdedores. Não é aceitável. É vergonhoso. Vencer sempre. Perder é constrangimento. O fracasso não cabe. Que mundo é esse? Que tipo de pessoas estamos criando? O que queremos ser? Existe alguma forma de nos aperfeiçoarmos que não passe por perdas e derrotas? A questão é saber como estamos perdendo. Estamos perdendo na tentativa de construir uma coisa diferente ou estamos perdendo por covardia? Reside aí a diferença entre derrotas. Mas parece que não tem muita gente interessada em elaborar a anatomia de um tropeço. É uma pena.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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