Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

O Fla-Flu, meu pai e eu

Eu tinha entre três e quatro anos quando meu pai me levou ao Maracanã pela primeira vez. Não lembro exatamente que jogo fomos assistir, acho que Fluminense e Botafogo, mas lembro da sensação. Lembro da rampa que nos conduziu às arquibancadas, lembro da mão dele segurando a minha, lembro da alegria inédita que senti, lembro do olhar de meu pai enquanto subíamos aquela rampa: um olhar de cumplicidade e conexão que eu jamais esqueci e que, muitas outras vezes, trocamos na vida. "Companheira e amigona", era assim que ele se referia a mim.

Hoje, tendo perdido meu companheiro e amigão há vinte anos, posso revê-lo se fechar os olhos e voltar ao Maracanã. Ali, existíamos apenas ele e eu. Sem minhas irmãs, sem minha mãe, sem a confusão de uma casa movimentada. Éramos ele, eu e o Fluminense.

Eu tinha uma almofadinha em largas listras verde, branca e grená e era com ela na mão direita que subia a rampa. Minha mão esquerda estava enganchada a mão direita de meu pai que tinha, na esquerda, uma bandeira tricolor feita por minha mãe e grudada num cabo de vassoura. A primeira camisa que me lembro de usar era toda branca com a gola e as mangas listradas. Era lindo demais o meu uniforme. Eu ia a caráter, com kichute, meião e short. Meu pai dizia que eu estava pronta para entrar caso alguém se machucasse. E eu sonhava que um dia entraria mesmo, ignorando que aquele esporte era proibido para mim. Meu pai, enquanto pôde, me protegeu do preconceito do mundo e me fez acreditar que o futebol era para todos e para todas.

Assim passávamos os fins de semana, ele e eu atrás do Fluminense.

O jogo que mais vimos juntos foi o Fla-Flu. Meu pai me dizia que o Fla-Flu alargava a dimensão do sagrado. Perder era uma tristeza sem fim, verdade, mas ganhar? ah, ganhar era o êxtase, o néctar dos deuses. Não há como sentir isso sem ter conhecido a tristeza, meu pai falava me pedindo para aceitar todas as sensações como parte de um mesmo compromisso que estabelecíamos quando decidíamos amar o futebol. No começo, a cada derrota, eu me trancava no banheiro de casa por horas e minha mãe ficava desesperada. Aos poucos fui aprendendo a sentir.

Foi o Flamengo, antes de qualquer pessoa ou situação, que me ensinou a sofrer. Eu vi a Máquina tricolor, verdade, mas também saí do Maracanã inúmeras vezes massacrada por Zico, Tita, Adílio, Junior. Depois, vimos Washinton e Assis e fomos felizes juntos. O gol de barriga de Renato Gaucho eu vi pela TV longe dele, mas nos falávamos de cinco em cinco minutos. Já o gol de Washington contra o São Paulo pelas oitavas da Libertadores de 2008, aos 48 do segundo tempo, eu vi dentro do Maracanã, mas sem ele. Nesse dia meu pai já estava vendo o Fluminense de lugares mais altos.

Foi sempre o Flamengo o nosso grande adversário. Em dia de Fla-Flu, se estivéssemos no Rio, íamos ao estádio. Se não estivéssemos, tentávamos ver juntos pela Tv ou escutar pelo rádio. Era o nosso encontro. Achávamos que o rádio dava sorte ao Fluminense e, então, quando o jogo estava difícil demais, optávamos por esse meio - até porque durante muito tempo não havia televisionamento de todas as partidas.

Parte da família era Flamengo, a maioria dos meus colegas eram Flamengo e eu lembro de um dia que meu pai não pôde ir ao estádio comigo e me mandou num bonde rubro-negro: um amigo dele com dois filhos. Não lembro agora exatamente quem eram essas pessoas, mas lembro que vimos o jogo da tribuna de honra, a primeira e única vez que vi dali. A goleada do Flamengo foi tão dilacerante, Zico e Junior estavam tão encantados, que eu jurei a mim mesma que jamais colocaria os pés na tribuna de honra outra vez.

O futebol é a dimensão que melhor conecta o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. É ele o portal que me leva a sentir a mão de meus pai segurando a minha para subir a rampa. É ele que me conduz ao sorriso do homem que me fez amar esse jogo. É ele que, por 90 minutos, me faz acreditar que, um dia, vamos voltar a nos abraçar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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