Milly Lacombe

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Caso Daniel Alves: condenação é em nome de todas nós

Tite, um visionário, disse antes da Copa do Mundo de 2022 que a convocação de Daniel Alves - que na época estava visivelmente fora de forma e em má fase atuando no México - se explicava porque o atleta transcendia o futebol. E aí está. Transcendeu: vai ficar preso 4 anos e meio no total pelo crime de estupro.

Seria importante a gente colocar esse 22 de fevereiro de 2024 em contexto antes de qualquer outra coisa.

Primeiro: já vejo uma gritaria, vinda de muitos homens, a respeito do tamanho da pena, que poderia chegar a 12 anos e acabou ficando em 4 anos e meio. "É pequena!", dizem revelando revolta.

Muita calma nessa hora.

Como podemos dar significado a esse número? Respondo: Entendendo que ele é quatro vezes e meia maior do que nada, o que é, usualmente, a pena comum.

Robinho, mesmo condenado a nove anos na Itália, está em Santos jogando futevôlei na praia dado que fugiu para o Brasil.

Outros tantos, acusados e tendo contra eles muitas provas sólidas, nem condenados foram.

O caso Mari Ferrer está aí para quem quiser compreender o que é nosso sistema judicial em casos de violência sexual quando o acusado é um homem rico e poderoso. Nesse caso específico, o empresario André de Camargo Aranha, a despeito das provas, dos indícios e das evidências, está solto e quem recebeu sentença de prisão foi a jornalista Schirlei Alves, que contou a história em uma série de reportagens para o site The Intercept.

Então, um pouco de lucidez nessa hora: a pena é substancial e a dosimetria é a menor questão agora.

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Certo que a pena seria maior se Neymar não tivesse doado quase um milhão de reais ao parceiro para que a sentença pudesse ser atenuada. Mas quem está indignado com isso deve espernear contra o capitalismo que permite esse tipo de aberração e não exatamente contra pessoas porque o desvio do foco costuma ser bastante, para usar uma linguagem bem capitalista, ineficiente se a intenção é transformar a sociedade.

Essa história, aliás, nem sobre Daniel Alves é. Fazer com que ela seja é tentar deslocar a atenção do que realmente importa: a vida das mulheres e a autonomia sobre seus corpos.

Daniel Alves que faça a jornada dele em busca de algum tipo de redenção, de superação, de identificação da monstruosidade que cometeu. Vai ter tempo para pensar, refletir, tentar se transformar.

O que acontece das grades para dentro é, a partir daqui, problema dele. O que nos importa debater é a vida dessas grades para fora.

O caso Daniel Alves deixa lições fundamentais. A primeira: homens ricos e poderosos vão sim em cana por crimes de violência sexual se existir um mínimo de interesse da justiça no que diz respeito à seriedade nas investigações, um MP comprometido com a causa, mais mulheres atuando, investigando, policiando.

Outra lição: mulheres podem denunciar sem correr o risco de serem transformadas em réu desde que tenham ampla rede de apoio estatal.

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Os protocolos de investigação devem ser seguidos de forma imediata e técnica. A palavra da vítima é prova e não apenas denúncia (o número de falsas denúncias vindas da vítima são irrisórios, desprezíveis. Uma mulher sabe que, ao denunciar, a vida dela estará também interrompida por muito tempo e nem todas conseguem passar pelo escrutínio que o sistema penal oferece como caminho para reparações - já falei sobre isso em muitos textos anteriores).

Essa é a história de uma sociedade que cria meninos para serem Danieis.

É a história de uma sociedade que acredita que o corpo de uma mulher não é de fato dela. De uma sociedade que socializa garotos para serem comedores, garanhões e pegadores ensinando a eles que vem daí seu capital simbólico.

De uma sociedade que ignora a palavra da mulher que se diz abusada, assediada, violentada e a coloca imediatamente no banco dos réus. De uma sociedade que diz que mulher precisa se preservar, ser recatada, ficar com as perninhas fechadas e que julga aquelas que não fazem isso.

De uma sociedade que conta histórias muito diferentes a respeito do que é sexo para meninos e para meninas. De uma sociedade que avisa garotas para não se deixarem estuprar e nunca diz a garotos "não estuprem", deixando claro que, se acontecer, a responsabilidade é da vítima.

A partir daí são construídos os sistemas penais, as instituições, o estado. A mulher, de saída, não tem chance. Por isso a sentença dada a Daniel Alves é sim histórica.

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Estupro não é sobre sexo. É sobre poder. Estupro não é sobre tesão; é sobre dominação. Estupro é arma de guerra colocada nos campos de batalha a fim de submeter o inimigo à humilhação e à sujeição. É a ferramenta utilizada por homens para dizer às mulheres quem manda.

O caso Daniel Alves pode ser um divisor de mundos. Mas só será se soubermos focar no que de fato importa: a vida do lado de fora da cela. Seguir falando de Daniel Alves, da dosimetria, da injustiça da pena, da depressão dele, da tristeza dele, de como ele acabou com a própria vida e blablablá não mudará absolutamente nada e é bastante conveniente para alguns que preferem apontar o dedo do que olhar no espelho

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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