Milly Lacombe

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O carnaval e os introvertidos

Começa oficialmente nesse sábado a nacional folia do Carnaval. Enquanto a maioria das amigas está nos bloquinhos com suas fantasias, tendo dedicado boa parte da semana para comprar glitter e meia arrastão, eu estou voluntariamente enfurnada em casa. Me sinto um pouco mal dizendo isso, mas não curto. Ou melhor: curto na teoria, na história, na poesia; não curto na prática. Não curto para mim, obviamente.

Durante um bom tempo eu me culpei por não gostar. Tentei gostar, pular. Lembro que, quando tinha 20 e poucos anos, umas amigas se convenceram de que eu não gostava porque nunca tinha ido a Salvador. Compraram passagem, reservaram hotel, arrumaram abadá. Juraram que eu amaria. Fui.

Bastaram duas horas dentro das cordas de um trio elétrico para eu ter certeza de que não, não gostava. Voltei para o hotel, liguei para a companhia aérea, antecipei meu voo e pousei em Congonhas num domingo de Carnaval. Eu estava sozinha e muito, muito feliz.

Precisei de tempo para ficar em paz com minha introversão. Há dias em que ainda duelo com ela. Amigas que seguem tentando me levar aqui e ali e para quem sigo dizendo "não vou, não quero". Se não for para fins de futebol ou causas sociais, eu não quero multidão.

A introversão não se manifesta apenas no Carnaval, é claro. Ela está comigo por todos os lados. Por isso raramente vou a festas, celebrações, shows. Quando vou, vou pensando em voltar. Eu me sinto exuberantemente feliz voltando para casa em qualquer circunstância.

Esse seu jeito é esquisito, muitos dizem. Sim, eu entendo. Mas é quem eu sou. E sempre foi assim. Nunca, nem na adolescência, fui festeira, baladeira, rueira. Minha mãe queria saber por que eu não saía como minhas irmãs, por que ficava em casa sexta à noite. E eu não sabia o que responder. Eu simplesmente gostava de ficar em casa.

O Carnaval expõe as vísceras dos introvertidos porque só há duas saídas: ou dizemos sempre "não vou ao bloquinho não, obrigada", ou vamos e nos submetemos ao abuso moral de estarmos onde não gostaríamos de estar.

Mas vejam: eu adoro a ideia do Carnaval. Eu me emociono, eu choro, eu vejo o desfile das escolas de samba e vibro. Eu leio Luiz Antonio Simas berrando de emoção com o que ele diz sobre o Carnaval. Eu me sinto incluída, culturalmente falando. É a minha festa. É uma festa que me pertence.

Parece contraditório mas não é. Meu voyerismo carnavalesco me coloca numa posição peculiar, eu sei. Mas eu não diria contraditória.

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Eu me separo dos chatos conservadores que acham a festa bagunçada e profana e entendo que boa parte de sua beleza vem da bagunça e do profano. Eu me separo dos classistas que acreditam que "o ano só começa depois do Carnaval" e ignoram que há comunidades inteiras que trabalham durante 12 meses pelo (e para) o Carnaval. Eu me jogo de joelhos escutando o samba enrede da Mangueira de 2019 "Histórias para Ninar Gente Grande". Eu devoro a obra de Joel Rufino dos Santos e saio delas com o entendimento de que nossos intelectuais vêm dos morros e das periferias. E eu leio e releio as palavras do professor Luiz Antonio Simas no Twitter colocando o Carnaval em seu devido lugar:

"Num mundo cada vez mais individualista, o Carnaval assusta porque afronta a decadência da vida em grupo, reaviva laços contrários à diluição comunitária, fortalece pertencimentos e sociabilidades e cria redes de proteção nas frestas do desencanto. A festa é coisa de desocupados? Fale isso para as trabalhadoras e trabalhadores da folia. O carnaval é também, para muita gente tratada como sobra vivente, alternativa de sobrevivência material, afetiva e espiritual. Escolas de samba, por exemplo, surgem como instituições comunitárias das populações negras. Possuem ainda, mesmo com todos os dilemas, setores orgânicos que a partir delas elaboram sentidos de mundo. Por isso afirmei que o carnaval está sob ataque faz tempo: os higienistas da casa grande querem eliminá-lo, os tubarões do mercado querem gentrificá-lo, os mercadores da fé querem atrelá-lo ao imaginário do pecado. O Brasil não inventou o Carnaval, é certo, mas o povo brasileiro o vivenciou de tal forma (na pluralidade de suas manifestações) que ocorreu o inverso: foi o Carnaval que inventou um país possível e original, às margens do projeto de horror que nos constituiu.É perturbador para certo Brasil - individualista, excludente, raivoso, intolerante - lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa, rueira. Tenso e intenso como lâmina e flor, o Carnaval assusta porque nos coloca diante do assombro da vida."

É bonito demais o Carnaval nas ruas e em palavras assim.

Mas eu não preciso ir à rua acessar essa dimensão do assombro. Sou capaz de alcançá-la a partir da minha sala enquanto admiro pessoas que se jogam na folia sem hora para acabar, enquanto vejo a escolas entrando na avenida, enquanto rolo o dedo pelas redes sociais e vejo as amigas arrasando na fantasia e na alegria. Desde o meu pequeno universo particular e muito introvertido eu me orgulho de ser brasileira e poder chamar essa festa de minha. Agora vão lá e arrasem.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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