Milly Lacombe

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Já somos robôs adestrados para odiarmos uns aos outros

Acho curioso quando leio a respeito de previsões futuristas que traçam um cenário assombroso de um mundo dominado por robôs. Já somos robôs e estamos sendo diariamente programados para agirmos de determinados modos. Acontece bem diante de nossos olhos, todos temos comportamentos guiados por essa nova ordem, e, embora alguns de nós saibam exatamente sobre a manipulação em curso, não há muito o que possamos fazer contra a fabricação de nossos novos modos. Fomos hackeados e a vida seguiu.

A vida seguiu, verdade, só que não para todo mundo. Há aqueles que não suportam e desistem.

O noticiário fala dessas pessoas; não de todas, mas destaca as mais famosas. O youtuber PC Siqueira é a vítima da vez.

No livro "A Máquina do Caos", do repórter e pesquisador Max Fisher, o passo a passo do hackeamento de nossos cérebros está devidamente registrado. "Nossos algoritmos exploram a atração do cérebro humano pela discórdia", alertaram pesquisadores do Facebook em 2018. O sistema da corporação de Zuckerberg, eles disseram, era projetado para levar aos usuários cade vez mais conteúdo de discórdia, de forma a conquistar a atenção e aumentar o tempo do usuário na plataforma".

As pesquisas de Fisher contam com detalhes sobre o funcionamento desse esquema perverso que visa usar nossa capacidade de nos odiarmos para gerar receita a Zuckerberg e acionistas. Um esquema que é também corriqueiro em outras Big Techs. Estamos sendo adestrados para o ódio.

"Tais empresas acumulam fortunas que estão entre as maiores na história corporativa justamente explorando essas tendências e fraquezas", escreve Fisher.

Nelson Mandela disse certa vez que se somos treinados a odiar também podemos ser treinados a amar. O que escapou a Madiba foi a noção de que no mundo como conhecemos hoje, ódio gera receita - e amor não.

"A tecnologia das redes sociais exerce uma força de atração tão poderosa na nossa psicologia e na nossa identidade, e é tão predominante na nossa vida, que transforma o jeito como pensamos e como nos relacionamos uns com os outros. O efeito, multiplicado por bilhões de usuários, tem sido a transformação da sociedade".

PC Siqueira, vítima de uma fake news sobre pedofilia, teve a vida arruinada por esse ódio fabricado. Alguém criou as fake news, direcionou a mentira a Siqueira e os algoritmos trataram de convocar o exército do ódio para agir.

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Muitos se confortam achando que não fazem parte desse time do ódio. Mas parem para pensar quantas vezes vocês sucumbiram a uma notícia e entraram nas redes sociais para agredir outra pessoa? Não importa aqui saber se a notícia era falsa ou verdadeira. Importa compreender que você tirou prazer de ter se comportado dessa forma.

Quantos outros e outras também tiveram e terão a vida destruída por esse chamamento a ações violentas? Quantos suportarão o bullying de milhares, de milhões até, confeccionado por empresas que lucram a cada mensagem de ódio que enviamos?

Mas se o livro de Fisher contasse apenas a história de nosso adestramento para o ódio talvez a solução estivesse mais perto. O que o livro revela, e que é absolutamente devastador, é que as Big Techs encontraram um modo de mudar nosso comportamento. Não é apenas que aqueles propensos a odiar serão treinados a agir; é que mesmo os mais calmos, passivos e doces entre nós estão sendo adestrados para odiar e agir. Há uma pesquisa perturbadora sobre como essas empresas constroem comportamentos pedófilos. Está tudo ali: dados, números, relatos, fatos, estatísticas.

Aqui no Brasil, o professor Ladislau Dowbor há tempos fala sobre papel das Big Techs na economia da nossa atenção. "Há muito as corporações mercantilizam o tempo humano, imiscuindo-se em cada ato diante das telas. Há aí um sequestro: a energia psíquica para refletir sobre o mundo dissolve-se em infinitos chamarizes ao consumo obsessivo e à dispersão".

Dowbor alerta para o fato de estarmos perdendo o controle sobre nossa própria atenção, o que significa dizer que estamos perdendo o controle sobre nossas vidas já que vivemos onde nossa atenção está.

É bastante grave. E fica ainda mais grave se pensarmos que essa mesma sociedade hackeada é treinada para acreditar que empresários como Bezos, Zuckerberg e Musk são gênios capitalistas cuja fortuna é absolutamente legítima, o estilo de vida é invejável e em cujos sapatos deveríamos nos inspirar a entrar.

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Que PC Siqueira encontre na morte a paz que ele buscou em vida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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