Milly Lacombe

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Carta ao meu pai tricolor

Hoje tem Fluzão, pai. Tem Maraca lotado como você e eu tantas vezes vimos juntos. Aquela arquibancada de concreto onde nos sentávamos não existe mais. Agora ficou mais chique: cadeira pra todo mundo. Mas o ponto que você e eu chamávamos de nosso ainda está lá dentro: aquele canto que nos acolheu por tantos anos, onde eu te via coberto em pó de arroz, de onde torcíamos e cantávamos. Você e eu subindo a rampa de mãos dadas e vestidos com as três cores que traduzem tradição: uma das primeiras memórias que tenho na vida.

Pois o Flu joga hoje contra o Boca pelo titulo das Américas. A coisa ficou globalizada, pai. O que vale agora é título continental e mundial. Tem que ache que o Carioca não vale mais nada. Eu não sou desse grupo e sei que você também não é. Tudo vale. Vale ver o time entrar em campo, vale ver o pó de arroz cobrir nossos corpos, vale aplaudir uma jogada bonita, vale chorar na derrota doída, vale abraçar estranho na vitória impossível de um jogo qualquer.

Você que me ensinou a torcer também me ensinou a sofrer. Lembro de como você me explicava sobre a formação do Fluminense em campo, lembro como tentava me consolar nas derrotas, lembro de sairmos tantas vezes tristes do Maracanã depois de ver Zico, Adílio e Junior destruirem o Flu, lembro de como vibramos com o gol de barriga do Renato e dos títulos que comemoramos. Lembro de tudo o que envolve você, o Fluminense e eu.

É curioso que depois de sua morte o que tenha ficado mais forte em mim sejam essas memórias. Claro que tenho lembrança de jantares em família, do seu abraço todas as vezes que eu voltava para casa, da forma como você segurava minha mão para atravessarmos a rua e de tantas outras passagens corriqueiras, mas é no futebol que eu volto a te sentir de um jeito mais forte.

Hoje você estará lá, disso tenho certeza. Você e tantos outros tricolores que já partiram num rabo de foguete se farão presentes no Maracanã. Se tudo der certo, celebraremos esse título. Vou ver com o Kiko na casa dele; não conseguimos ingressos. Estaremos com a Fabiola e as crianças. Todas são-paulinas como ele, mas, excepcionalmente por hoje, todas Fluminense.

Essa semente que você deixou comigo e que chamamos de Nense vai me fazer torcer muito. Se o título não vier, ainda assim tudo terá valido à pena. Você repetia sem parar o verso "tudo vale à pena se a alma não é pequena". É isso, pai. Que seja memorável. Vamos torcer, Kiko e eu, sabendo que você estará com a gente.

O mundo não anda lá muito bom, para colocar as coisas de um jeito suave. Mas nesse sábado, por duas horas, nos sentiremos muito vivos. Que essa cartinha possa te alcançar onde quer que você esteja. Obrigada por me ensinar a amar esse jogo. Vamos, Fluminense.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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