Milly Lacombe

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Como falar de aborto sem histeria?

Leio nas manchetes coisas como "O Brasil vai decidir sobre aborto" e me pego pensando que nós já decidimos sobre o aborto faz tempo.

Nós decidimos que algumas mulheres cis e pessoas com útero podem abortar e que outras não podem.

Decidimos que algumas não correm risco de morrer abortando e outras correm.

Decidimos que algumas jamais serão presas optando pelo aborto e que outras serão.

Decidimos que pessoas brancas podem abortar e que pessoas negras e periféricas não podem.

Isso está solidamente decidido e, se a ideia é debater o aborto publicamente, seria importante falarmos do tema sem sermos hipócritas.

Uma em cada sete mulheres no Brasil já fez um aborto na vida. Quem não mora em favelas e periferias, quem pode pagar pelo aborto nas clínicas e consultórios bem estruturados que exercem a prática, sobreviveu ao procedimento que, com o devido cuidado, no devido lugar e com os devidos profissionais, leva apenas alguns minutos.

Se você não é uma dessas pessoas, você conhece alguém que já fez um aborto seguro. A algumas de nós é dado o direito de abortar. A outras, não. Essa é a realidade e um debate honesto sobre o tema começa daí.

Um dos apaixonados ativistas da luta contra o aborto é o ex-deputado cassado Deltan Dallagnol que, em entrevista recente, deixou essa realidade muito clara quando contou ao entrevistador que um médico sugeriu que sua mãe abortasse a gravidez que o gerou.

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Deltan achou que estava advogando contra o aborto ao contar a história quando estava, na verdade, apenas explicando justamente quem pode e quem não pode abortar no Brasil.

À mãe dele foi dado o direito de interromper a gravidez, vejam que coisa. Ela escolheu seguir com a dela.

É sobre escolha, verdade. Mas é também sobre muito mais.

É também sobre dissimulação e falsidade.

Os homens mais atuantes na luta contra o aborto são aqueles que não hesitam em mandar suas amantes para uma clínica de aborto caso elas engravidem. São esses os que falam em nome de Deus e da família e saem de seus trabalhos para pagar por sexo antes de ir para casa encontrar mulheres e filhos.

Tudo isso é sabido, ainda que pouco falado.

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Para falarmos francamente sobre o tema é preciso que deixemos a hipocrisia, a moralidade e a religião do lado de fora da porta.

Por que excluir a religião do debate? Por alguns motivos.

O primeiro e mais óbvio é a moralidade seletiva de alguns: se levarmos a religião para dentro seria o caso de nos perguntarmos o que exatamente decide-se seguir e o que se decide ignorar a respeito das indicações morais contidas nos livros.

Ter escravos pode? Os livros dizem que sim.

Aparar a barba pode ou, como mandam os textos, temos que matar aquele que aparar?

Ter mulheres e concubinas pode? Apedrejar mulheres que não são virgens pode? Comer camarão pode? Trabalhar domingo pode? Quem decide o que fica na pauta e o que sai da pauta bíblica?

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Coerência não é o forte daqueles que entram no debate público com uma Bíblia debaixo do braço e, pior, lendo o livro como quem lê a Folha de S. Paulo.

Vejam: não houve um dia e um horário em que Noé abriu a porta de sua arca e o primeiro casal de ornitorrincos entrou. Não é uma notícia, é um mito e, como todos os mitos, é uma narrativa fantástica e exagerada, não baseada em fatos, e de alto teor simbólico.

O segundo motivo é outra obviedade: a fé de uma pessoa não pode ser imposta à vida de outra. Deve ser seguida por quem nela acredita, mas jamais enfiada goela abaixo daqueles que não compartilham da mesma crença.

A vida em sociedade abriga muitas crenças e também a falta de crenças. Religião não pode se intrometer na organização social assim como o Estado não pode reescrever trechos de textos sagrados ou propor uma checagem de fatos dos livros - não são notícias, são histórias mitológicas.

O terceiro motivo para excluirmos a religião do debate deveria ser o mais óbvio deles, mas infelizmente não é: Debater quando uma vida começa é como debater quantos anjos cabem dançando na cabeça de um alfinete. Você pode ter suas ideias, eu tenho as minhas, mas o debate sério e que se propõe a fazer uso de lógica e razão fica, diante da impossibilidade de nos ampararmos em fatos, vazio de significado, de coerência e de inteligência.

Repitam comigo: não há como afirmar que a alma existe, muito menos, portanto, em que exato momento ela entraria em um corpo.

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Assim, chamar Deus ou uma cartilha de crenças religiosas para vigiar úteros é recurso para quem quer interromper o debate - é a criança que vira a mesa de jogo quando sabe que não tem mais recursos para ganhar.

Religião não entra na conversa sobre aborto e lideranças religiosas não poderiam, em nome de um debate justo, serem chamadas a palpitar publicamente sobre aborto no noticiário.

Respeitar quem é contra o aborto é importante nos seguintes termos: se sua religião não permite, não aborte e não encoraje sua mulher, sua amante, sua filha, sua neta, sua concubina a abortar. Pronto.

Nesse ponto deixamos a religião e as crenças da porta para fora em nome de um debate sem hipocrisias.

Homem-cis que quer debater o tema deve primeiro tirar a crença do jogo e, segundo, fazer o exercício de imaginar o que sentiria se o estado começasse a regular sobre seu pênis.

Imaginemos um mundo do avesso:

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Vasectomia passa a ser obrigatória depois de você engravidar uma mulher que não planejou um filho. Masturbação, por ser desperdício do sêmen que geraria um futuro ser humano e, no limite, também assassinato, fica igualmente proibida. Mulher pode continuar se masturbando porque seu gozo não tem fins reprodutivos. Querem manter a criminalização do aborto? Os homens serão presos também. Você é o pai do feto nessa história de uma tentativa de aborto? Cana.

Vamos alargar: todo homem que engravidar uma mulher que não deseja ter filho nesse mundo antiaborto será obrigado a participar igualitariamente da criação. Não falo de pensão alimentícia. Falo em levar e buscar na escola, de passar a noite em claro para cuidar, de ir a reuniões escolares, de passar metade do tempo com os filhos, de fazer lição junto, de levar ao médico, de faltar ao trabalho para tratar de um filho doente, de saber quando é hora de comprar novo uniforme etc etc etc. Não dividiu metade-metade do tempo da criação? Cana.

Topariam viver nesse mundo?

Homens-cis jovens que queiram entrar legitimamente no debate precisam se perguntar o que fariam se as namoradas engravidassem.

Se estamos a fim de um debate sem hipocrisia seria preciso dizer claramente que proibir aborto não é defender a vida. Nem por um segundo.

Nem mesmo os mais fanáticos "defensores da vida" - como eles se denominam - acreditam que abortar um feto é a mesma coisa que assassinar um bebê porque, se acreditassem, passariam os dias dilacerados diante do genocídio em nossas favelas e periferias.

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A cada criança morta em troca de tiros os "defensores da vida" iriam para as ruas aos bandos e aos berros empunhado seus cartazes "Eu defendo a vida! Parem de matar nossas crianças!".

Não fazem isso porque não estão em campanha pela vida, mas sim pelo disciplinamento do que é ser mulher nesse mundo.

E aqui chegamos ao centro do verdadeiro debate, livre de crenças e falsidades: é sobre regular nossos corpos, sobre nos manter controladas, sobre perpetuar uma ideia autoritária e patriarcal de família.

Fechem suas pernas imundas. Nós diremos como, quando e com quem vocês farão sexo. Nós manteremos vocês submissas e domesticadas. Nós decidimos sobre seus corpos. Nós controlaremos vocês para manter de pé essa instituição patriarcal e autoritária que chamamos de família.

Não foi por acaso que o mais recente golpe de estado que esse país sofreu foi dado, de forma literal e sonora, em nome de Deus e da família.

É disso que se trata e de nada além disso. Crenças, figuras sagradas, almas, moral? tudo incluído no debate de forma desonesta a fim de interditar e limitar o diálogo sobre aborto.

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Sem a histeria das crenças ficaria claro que o debate não pode tratar apenas de interrupção de gravidez, mas dos direitos reprodutivos de mulheres e pessoas com útero. Querem falar em proteger a família? Então o único caminho decente é falar de justiça reprodutiva.

Há, por exemplo, mulheres que querem ter filhos mas optam pelo aborto mesmo correndo o risco de morrerem ou de serem presas porque não têm as mais básicas condições para criar uma criança e sabem que nem o estado nem o pai irão participar dessa jornada.

Ah, mas coloca para adoção, dizem. Bem, há alguns problemas com essa ideia.

O primeiro é a perversão de obrigar uma mulher a passar por nove meses de gravidez e depois negar a ela o direito de criar seu filho.

A segunda é uma pergunta: quem adota?

Você? Porque temos hoje milhares de crianças esperando por um lar. Você que se declara "a favor da vida" está preocupado com essas crianças? Está preenchendo os documentos necessários para adotar algumas? Está sem dormir pensando nessas vidas em risco?

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Outra vez, precisamos deixar a hipocrisia do lado de fora desse debate.

Debater direito reprodutivo, tema que inclui aborto, é debater creches públicas, acesso aos cuidados de saúde a mãe e filho, educação gratuita e de qualidade, o papel do pai, o papel do racismo na exclusão de direitos femininos como anestesia na hora do parto, carga horária de trabalho fora de casa para quem cuida dos filhos, igualdade no pagamento de salário para homens e mulheres.

Os "defensores da vida" deveriam estar berrando por esse debate amplo: queremos creches para que essa mulher aqui não aborte, eles deveriam dizer. Queremos acesso a saúde pública de qualidade para que essa mulher aqui não aborte. Queremos o fim da matança de crianças em favelas e periferias. Queremos que toda criança tenha acesso a água encanada. Queremos que toda criança tenha acesso à três refeições por dia.

Defender a (suposta) vida de um feto e ignorar a brutal e real vida das crianças pobres que já nasceram não é atitude cristã, decente, digna ou tolerável. É apenas covarde, abjeta e diabólica.

Os defensores da família deveriam estar berrando pelas ruas com seus cartazes: Queremos que essa mulher aqui trabalhe poucas horas por dia para que ela possa ficar com sua criança em casa e cuidar da melhor forma possível de seu bem-estar porque nada é mais importante do que amar e respeitar uma criança. Queremos educação pública farta e de qualidade para que essa mulher aqui, caso engravide, decida ter o filho por se sentir amparada mesmo que o pai faça o que é comum: fuja como um rato. Queremos uma sociedade estruturada para criar suas crianças. Creches públicas e gratuitas já!

Isso sim seria defender a vida. Menos que isso é vulgaridade e falsidade.

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Um debate maduro e íntegro é um debate sobre justiça reprodutiva e sobre o sistema capitalista - e qualquer debate sobre aborto deve incluir essas questões.

O resto é fanatismo, extremismo, machismo, misoginia e racismo - ou um episódio ruim de Handmade's Tale.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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