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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cuca não é um monstro

Colunista do UOL

21/04/2023 04h00

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Vou começar com a seguinte declaração: Cuca não é um monstro.

Cuca é sintoma de uma sociedade adoentada.

Cuca é reflexo de uma cultura violenta que se recusa a olhar para o espelho.

Cuca é um sujeito de fala mansa e gestos doces.

Já conversei com ele, já dividimos um mesmo taxi no trânsito do Rio durante um longo trajeto.

É inteligente, excelente treinador e pessoa agradável para trocar uma ideia.

Cuca não é um monstro.

Mas nossa sociedade, essa sim, atua de forma monstruosa.

E a diretoria do Corinthians deu um passo em direção ao abismo ao mandar um recado alto e claro: ser condenado por envolvimento em estupro de uma criança de 13 anos não pega nada.

Não passa nada.

Segue o jogo.

Precisamos de treinador e o cara é bom.

Então, danem-se os escrúpulos.

Sigamos com cuidado para falar do caso.

Cuca penetrou à força o corpo de uma garota na Suíça nos anos 80 quando era jogador do Grêmio?

Não temos como provar que ele atuou ativamente no ato de relação sexual coagida com uma adolescente de 13 anos na Suíça, o que pela lei brasileira se chama estupro. Além do que, estupro, naquela época, exigia penetração.

Hoje, felizmente, já sabemos que estupro não precisa conter penetração e essa consciência alargou a compreensão a respeito do crime.

No processo, a criança não o identificou como estuprador, um quadro bastante comum em estupros coletivos especialmente envolvendo crianças: dado o tamanho do trauma nem todos os abusadores podem ser identificados.

Cuca estava no quarto quando o estupro ocorreu?

Sim.

E ele mesmo nunca negou.

Disse até que a menina aparentava ter 18 anos e não 13.

O que Cuca fazia enquanto seus colegas praticavam sexo sob coação de uma criança?

Lia um livro? Meditava em posição de Lotus? Tirava fotos da vista do quarto? Executava movimentos de Tai-Chi?

O que será que ele fazia nessa hora?

Esmurrava quem abusava da criança? Chamava a polícia? Berrava na janela pedindo ajuda? Saia correndo pelos corredores do hotel clamando pela polícia?

O que fazia Cuca na cena do crime?

Deixo aberta a pergunta e vocês usem aí a experiência para responder.

Houve uma investigação, houve análises forenses, houve muitos depoimentos, houve o devido processo legal do começo ao fim.

Na civilizada Suiça.

O resultado?

Cuca foi condenado à prisão por envolvimento em estupro de uma menina de 13 anos depois de uma investigação séria e imparcial.

Cuca cumpriu a pena?

Não. Ele nunca voltou a Suíça.

Cuca foi julgado à revelia como ele diz?

Não.

Advogados do Grêmio acompanharam o passo a passo do julgamento e apresentaram defesa. Ele poderia ter voltado a Suiça e acompanhado o julgamento. Não fez porque não quis.

Cuca já falou honestamente sobre o que fazia no quarto durante o estupro?

Ou por que achou de boas a menina entrar no quarto com quatro homens?

Ou o que fizeram seus amigos com a menina?

Ou o que de fato ocorreu naquela noite?

Não. Não. Não e não.

Cuca deu um depoimento à minha amiga Marilia Ruiz, o único depoimento em que ele toca na questão, e apenas disse de diferentes modos que não participou do estupro.

Mas os fatos dizem o contrário já que estar presente e não fazer nada para impedir a violência sexual e moral contra uma criança é sim participar para que ela ocorra.

Não é menos pior ter sido a testemunha passiva do estupro de uma criança do que executar um estupro.

Ambas as coisas são abjetas.

Supondo - para ficar na hipótese de que ele apenas teria testemunhado o crime - que foi o que aconteceu, o que isso diz sobre Cuca e sobre uma sociedade que naturaliza a barbárie contra mulheres e crianças?

Sim, nós todos cometemos erros inomináveis e temos a chance de repará-los.

Uma dessas chances passaria, nesse caso específico, por falar honestamente sobre o episódio e, então, atuar na luta para que crianças não sejam estupradas nunca mais em nenhum lugar do mundo.

Se envolver em causas. Gastar dinheiro com as causas. Falar, se implicar, se envolver.

Se desculpar. Reconhecer o erro. Mostrar arrependimento e amadurecimento.

Deixar o pacto da masculinidade que ele fez com os amigões estupradores para trás.

Estabelecer um pacto com a decência.

Com um mundo onde as filhas dele, e as netas, possam viver emancipadas.

Eis o treinador contratado pelo time que usa os slogans "time do povo" e "respeita as minas".

Ser aliado dos direitos das mulheres é uma prática de vida, não uma hashtag ou uma frase de efeito em camiseta.

A contratação de Cuca é assim, uma pancada em todas nós.

Uma soco em nossos estômagos.

Uma imensa tristeza que supera rebaixamento, décadas sem título e derrotas para Tolimas.

Mas sejamos francos: Cuca não é uma peça destacada da sociedade.

Cuca não é um sociopata.

Cuca não é uma exceção.

Cuca é a regra.

E é importante que entendamos isso.

Muitos dos que o condenam publicamente hoje certamente já fizeram coisas parecidas.

Trata-se de uma sociedade que produz homens que acreditam ser um direito de nascimento abusar do corpo de uma mulher - prensando na balada, puxando pelo cabelo para exigir um beijo, fingindo não escutar ela dizer não, testemunhando amigos abusarem, fazendo pactos entre eles para nunca contar o que houve etc.

O Corinthians, ao contratar Cuca, diz à sociedade que estupro faz parte do jogo.

A cultura do estupro não para de vencer.

A contratação de Cuca pelo Corinthians é mais uma vitória.

Nem todo homem faz coisas desse tipo, repetem em coro vozes masculinas.

Verdade.

Conheço homens incríveis que nunca sequer forçaram beijo na balada.

Mas até esses homens incríveis se beneficiam de uma sociedade que atua sob essas verdades e que coloca o corpo de uma mulher como objeto a ser violado na medida da ocasião, da farra, da necessidade de provar sua masculinidade para os amigos, de demonstrar poder.

Estupro é arma de guerra, uma arma usada há séculos por exércitos em território inimigo.

Estupro fala de poder e de humilhação.

O inimigo, no caso do cotidiano sem guerra aparente, somos nós: mulheres e crianças.

O território a ser ocupado são nossos corpos.

Esse é um mundo que nos separa em putas e em santas, e que não vê nada entre uma e outra.

A menina de 13 anos no quarto era a puta. As filhas são as santas.

A questão é que a santa de um vira, a depender da ocasião, a puta de outro.

E assim somos jogadas para cá e para lá sem que nos considerem sujeitos plenos.

Podemos ser putas e podemos ser santas.

Podemos ser o que quisermos nesse escopo do que é existir como mulher.

Mas somos nós que diremos o que somos, quando somos e como somos.

Esse é um mundo que diz a uma menina: não saia com roupas provocantes mas não diz ao menino "não estupre". O recado é dado às meninas: não se deixe estuprar. Se acontecer, você será responsável.

Um mundo que coloca nas universidades placas instruindo meninas e mulheres a como agir em caso de violência sexual mas não coloca placas orientando homens a se comportar.

Um mundo em que o time que se diz do povo contrata como treinador alguém condenado por envolvimento no estupro de uma criança não pode ser sério.

Mas não se enganem: isso não é sobre Cuca.

Fulanizar o debate é enfraquecê-lo.

Não é sobre Cuca; vou repetir mil vezes se necessário.

É sobre nossos corpos abusados a cada dez minutos.

Sobre nossos corpos destruídos a cada seis horas.

Sobre nossos corpos assassinados a cada dia.

É sobre as mulheres que vieram antes e foram silenciadas.

Sobre nossas mães, avós, bisavós.

Nossas filhas, netas, bisnetas.

É sobre decência, dignidade, existência.

É sobre uma cultura que usa o estupro como ferramenta de poder que sujeita o corpo de uma mulher à força de um homem.

É sobre "pintar um clima" com meninas de 11, 12, 13 anos.

É sobre o pacto macabro da masculinidade que aceita um estupro coletivo desde que nunca mais se fale dele.

Haverá hoje mesmo no noticiário dezenas, centenas de jornalistas apontando seus dedos sujos para a cara de Cuca.

Como se eles fossem uma coisa muito destacada do treinador que agora defenderá o Corinthians.

Cuca não é um monstro e seria preciso que todos nos implicássemos nesse horror para que essa sociedade monstruosa pudesse ser transformada.

Não é sobre Cuca.

É sobre o que diz o Corinthians a sua torcida com essa contratação, sobre o que o clube pensa a respeito da violência de gênero, sobre a hipocrisia de usar "respeita as minas" pra ganhar mais um dinheirinho das torcedoras humilhadas.

Ser mulher e gostar de futebol é gostar de um esporte que nos detesta.