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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gesto de goleiro argentino simulando pênis com troféu foi desfecho perfeito

Emiliano Martínez, da Argentina, brincou ao receber troféu de melhor goleiro da Copa do Mundo - Kai Pfaffenbach/Reuters
Emiliano Martínez, da Argentina, brincou ao receber troféu de melhor goleiro da Copa do Mundo Imagem: Kai Pfaffenbach/Reuters

Colunista do UOL

19/12/2022 18h15

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O troféu de melhor goleiro da Copa como um imenso pênis rígido: que final apoteótico para um torneio radicalmente testosterônico.

O que representa mais o poder do que o falo imenso e ereto?

Perto de Emiliano Martínez enquanto ele fazia de seu trofeu o simulacro de um pau duro apontando para uma parte da torcida estavam os homens mais poderosos do mundo: o Emir do Qatar, o genro de Donald Trump (Jared Kushner), o bilionário abobado que comprou o Twitter - Elon Musk -, o presidente francês e uma série de outros magnatas que controlam tudo no mundo, das leis à comunicação.

Uma Copa onde pouco se viu mulheres na torcida, num país em que não ser um homem local de comportamento heterossexual faz de você um ser humano inferior.

Tudo feito por homens para homens entre homens.

O Qatar é um lugar grotesco sem dúvida, mas será que ele é assim tão diferente das chamadas democracias?

Ao redor de Martínez com seu falo dourado rígido e imenso estavam alguns líderes "democráticos" que compartilham da cartilha da masculinidade dominante.

Uns de forma mais direta, outros de forma docemente indireta.

Ronaldo e seus pentacampeões estiveram por lá durante a Copa, confortavelmente misturados à monarquia absolutista qatari.

Não lembro de ter visto jogadoras nas tribunas, mas lembro do comportamento cheio de masculinidade tóxica que os pentacampeões exerceram sobre Casagrande. Na escola seriam da turma do bullying.

Para levar a taça a campo no dia da final, Iker Casillas. Ao lado dele havia uma mulher elegantemente vestida.

Não sei quem era, nem seu nome foi mencionado durante a transmissão. Perdi alguma coisa? Alguém sabe de quem estou falando ou se tratava apenas de um troféu ao lado da taça?

Mulheres não interessam e não importa dizer seus nomes.

Muita coisa está em jogo quando falamos de masculinidade e de futebol.

O futebol é uma das poucas arenas onde homens heterossexuais podem demonstrar carinho um pelo outro sem correrem o risco de serem chamados de viados.

O homem branco heterossexual e burguês é entendido como o sujeito político universal. Não se fala em identidade nesse caso.

O filósofo Paul Preciado, um homem trans, conta a respeito do que percebeu ao adquirir o corpo de um homem branco e ser exposto aos códigos internos da masculinidade:

"Assim como as mulheres vão ao banheiro para refazer sua máscara de feminilidade, os homens vão ao banheiro para se esquecer por um instante de sua heterossexualidade e afirmar um prazer escondido de estar sozinhos, sem esse estranho alter ego que são as mulheres das quais devem estar acompanhados socialmente para exercer uma função reprodutiva e heteroconsensual".

Preciado diz que, como pessoa trans, a primeira coisa que aprendeu foi a caminhar na rua sendo olhado como homem. Ele aprendeu a olhar reto e para o alto em vez de para o lado e para baixo como fazia quando era mulher.

Aprendeu a cruzar o olhar com outros homens sem baixar os olhos ou se sentir obrigado a sorrir. Assim, ele acessou o privilégio da universalidade.

"Eu nunca havia me sentido universal", escreve. "Era mulher, era lésbica, era migrante. Conhecia a alteridades, não a universalidade".

O gesto fálico de Emiliano Martínez não era destinado a nenhuma mulher. Era a outros homens. A eles importava comunicar seu falo banhado a ouro, enorme e ereto. Esses são os códigos da masculinidade.

São entendidos em Doha, em Paris, em São Paulo, Buenos Aires, Londres, Luanda, Nova York, Moscou, Tóquio e Pequim. São captados em metrópoles e vilarejos.

O pênis de ouro rígido e imenso foi, de fato, a cena mais coerente para o encerramento da Copa.

Nada para ver aqui. Circulando.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi publicado no texto, Jared Kushner é genro de Donald Trump, e não cunhado. O erro foi corrigido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL