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Verão de 92: conquista da Dinamarca teve ONU e Guerra como protagonistas

Só recentemente vi o filme Verão de 92. Ele trata da conquista improvável da Eurocopa de 1992 pela Dinamarca. Uma história que merecia mesmo ser contada, pelo ponto de vista desportivo, humano e também jurídico.

Não fosse a interferência de organismos internacionais e de questões jurídicas e políticas, a Dinamarca sequer participaria da Euro daquele ano. Em tempos de Guerra, como na Ucrânia e em Gaza, é importante buscar esse exemplo para mostrar o caminho político de usar o esporte como instrumento de pressão internacional no necessário combate à Guerra, deixando questões jurídicas em segundo plano, foi tomado também em um caso que mudou a história da Eurocopa de 1992, com a exclusão da Iuguslávia e a entrada da "penetra" Dinamarca.

Mas antes de chegar a história da Euro, uma contextualização se faz necessária.

A década de 90 marcou um momento de grandes conflitos internacionais justamente no leste europeu em função do fim da antiga União das repúblicas Socialistas Soviéticas, hoje Rússia. Um dos locais de conflito mais intenso e triste foi na antiga Iuguslávia, com a tentativa de algumas regiões de buscarem independência do governo central do país. Em 1992, o país entrou em uma guerra civil, envolvendo croatas, eslovenos e bósnios

E, diferentemente de agora, quando o próprio movimento esportivo avançou e decidiu banir a Rússia, foram os organismos internacionais que obrigaram o movimento privado do esporte a afastar a Iuguslávia de eventos esportivos de maneira indireta, atingindo em cheio a autonomia esportiva.

O caso da Iuguslávia

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, através da Resolução 757 (1992) lembrava a "responsabilidade primária pela Carta das Nações Unidas para a manutenção da paz e segurança", obrigando os Estados membros da ONU a tomarem "as medidas necessárias para impedir a participação em eventos esportivos sob sua cobertura territorial de pessoas ou grupos que representem a República Federativa da Iugoslávia". Ou seja, um país membro da ONU não poderia receber equipes do país em guerra.

A Resolução denunciava o desrespeito da antiga Iugoslávia em não permitir acesso à ajuda humanitária, como previa a Resolução. Havia também questões de direitos humanos em pauta, mas elas não avançaram. Assim como o Conselho não levou em consideração a soberania e a nacionalidade segundo a ordem desportiva.

Entendendo a autonomia das entidades esportivas, a Resolução não mencionava as organizações esportivas. Nem precisava para atingir o objetivo. Como o que mais importa na ordem esportiva são suas competições, que sempre serão territorializadas, a determinação de proibir a expressão nacional em eventos esportivos pelos países membros já cumpria sua finalidade também no campo esportivo, limitando a autonomia da lex sportiva sobre seus atores e campeonatos.

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Isso aconteceu às vésperas de dois grandes eventos esportivos, a Eurocopa de futebol e as Olimpíadas. Ou seja, UEFA e COI sofrendo irritações provocadas por ordem jurídica externa. E cada movimento tomou um caminho diferente.

UEFA e COI tomam caminhos diferentes

Na esteira da ONU, a FIFA e a UEFA decidiram punir a Iuguslávia e suspender a Federação Nacional de futebol do país. A decisão veio a dez dias do início da competição, com sede na Suécia. "Estávamos prontos para ganhar a Euro", lembrou o volante sérvio Jokanovic, em entrevista ao jornal espanhol El Pais. A Dinamarca herdou a vaga e fez história. Os jogadores que trocaram as férias pelo principal campeonato Europeu de seleções levantaram a taça. A penetra virou a dona da festa.

Já o COI, tentando preservar os atletas, encontrou um outro caminho.

Nos jogos de Barcelona 1992, para driblar a determinação da ONU (que a Espanha teria que cumprir) e garantir a universalidade dos jogos, o Comitê se baseou no que hoje é a a Regra 6.1 da Carta Olímpica, Os Jogos Olímpicos são competições entre atletas [?] e não entre países". Assim, criou uma equipe neutra com atletas Iugoslavos, Macedônios e da ex-União Soviética.

Dessa forma, o COI conseguiu proteger atletas e não colocar em conflito a lex sportiva com a lex pública. Afinal, a decisão do Conselho de Segurança, muito embora vinculasse apenas Estados membro, atingia em cheio o esporte. A ONU não dialogou com o movimento esportivo, não respeitando o ordenamento privado e transnacional do exporte.

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Este é mais um caso exemplar de momentos do esporte em que diferentes ordens jurídicas se encontram, e aquela que esta do "lado de fora" se sente competente para determinar caminhos que atingirão a organização esportiva. Refletir sobre essas irritações é necessário para entender os limites da autonomia de uma ordem jurídica, que por mais importante que seja jamais será absoluta.

Sobre o filme

Verão de 92 foi produzido em 2015 e lançado em 2016. Dirigido e co-roteirizado pelo também dinamarquês Kasper Barfoed, o filme destaca Richard Nielsen (Ulrich Thomsen), treinador que assume o lugar de Sepp Piontek (técnico da lendária Dinamáquina de 1986) após rejeição a outros profissionais para comandar a equipe para as Eliminatórias da Euro.

O técnico é apresentado como um estudioso, mas que enfrenta a resistência dentro da própria entidade dinamarquesa, bem como da imprensa, da torcida e principalmente dos atletas. Seu cargo vive em ameaça constante, pois o desempenho em campo nunca satisfaz por completo a todos.

Embora aborde as Eliminatórias de maneira mais rápida, o foco é na trajetória na Eurocopa. A Dinamarca tinha pouco tempo para vencer a desconfiança de todos e buscar o improvável.

O filme é bom, traz uma história relevante para o cenário mundial que mostra relações permanentes do jogo com a vida, tem um roteiro que agrada e imagens e passagens que sempre nos tocam (independentemente de ser ou não apaixonado por futebol). São 92 minutos de uma experiência agradável.

Embora não discuta em profundidade a questão que colocou a Dinamarca na Euro, o filme é também documento importante dessa história que mudou o panorama do futebol europeu e mundial.

E, quase sempre, essas histórias merecem um filme.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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