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Blog do Juca Kfouri

REPORTAGEM

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O Clássico da Amizade - Uma lição da década de 1990

29/06/2023 18h20

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POR BERNARDO PASQUALETTE

Sou Botafogo por influência da minha avó. Toda a minha família por parte de mãe é botafoguense; já por parte de pai, todos cruzmaltinos. Minha história, aliás, é muito bonita: minha avó conheceu o meu avô nas arquibancadas de concreto do antigo estádio de General Severiano. Já Adão, meu tio-avô paterno, fez o primeiro gol da história do futebol profissional do Vasco. Sou Botafogo até debaixo d'água, mas tenho um carinho sincero pelo Vasco. Desde que o Glorioso não cruze o caminho cruzmaltino, claro.

Dito isso, resgato uma tradição da década de 1990 que serve de inspiração para os dias atuais. Botafogo e Vasco jogam o que se denomina "clássico da amizade", torcidas amigas que confraternizam antes dos jogos, como deveria ocorrer em qualquer partida de futebol. Durante os anos de 1990 havia uma tradição antes das partidas entre os dois times no Maracanã, da qual jamais me esqueci: a troca de bandeiras entre as torcidas.

Remeto, então, ao ano de 1997, no qual eu presenciei tal experiência. Mas, antes, uma contextualização: Botafogo e Vasco, naquele ano, rivalizavam em jogos muito tumultuados, sobretudo pelo clima de conflagração que irrompia entre as diretorias.

O Vasco vivia ainda sob o domínio do dirigente Eurico Miranda, inimigo histórico do futebol; na Federação de Futebol do Rio de Janeiro, estava Eduardo Vianna, o eterno Caixa D'água, o que piorava o que já era por demais ruim; a defender os interesses alvinegros, José Luiz Rolim, a lutar contra o sistema. Não gosto de maniqueísmos, mas - de fato - era uma luta do bem contra o mal.

O campeonato carioca de 1997 foi marcado por uma série de confusões fora de campo: o torneio começou antecipadamente para o Vasco, com os demais clubes grandes do Rio ingressando na competição quase um mês depois; no clássico entre Botafogo e Vasco, pela Taça Guanabara, houve uma controvérsia sobre a cor dos calções dos times, o que atrasou o início do jogo em quase uma hora - a partida ficou marcada pela discussão pública, em pleno gramado de São Januário, entre os mandatários dos dois clubes; o campeonato foi paralisado por quase um mês pela convocação de jogadores do Vasco para a Copa América e para uma competição de futebol júnior, o que esvaziou as finais da competição.

Se os cartolas não se entendiam, a lição de civilidade vinha das arquibancadas. Na final da Taça Guanabara, para um público de 80.000 pessoas, as torcidas protagonizaram uma tradição que havia muito tempo emocionava o Maracanã: a já mencionada troca de bandeiras.

Funcionava da seguinte forma: cerca de uma hora antes do jogo, após a esperada entrada das bandeiras no estádio, o Maracanã silenciava e todas as bandeiras que tremulavam nas arquibancadas do então maior estádio do mundo eram arriadas. Neste momento, começava o ritual: do último degrau da arquibancada, lá do alto, descia na torcida do Vasco um torcedor do Botafogo com uma bandeira alvinegra e vice-versa. Desciam sincronizados, o que dava um contorno estético ainda mais bonito à cena. Por cerca de um minuto, só uma bandeira alvinegra tremulava no lado cruzmaltino e apenas uma bandeira vascaína tremulava no lado alvinegro. Ato contínuo, as bandeiras de Vasco e Botafogo voltavam a tremular em suas respectivas torcidas, só que agora acompanhadas por uma solitária bandeira adversária. Salvas entusiastas de aplausos e fortes assobios marcavam o final da "cerimônia".

Tudo isso levava cerca de cinco minutos. Mas, não parava por aí. Pouco depois, o solitário torcedor que fez a "visita" a arquibancada adversária retornava as suas origens e novamente as bandeiras eram arriadas. Só quando a bandeira "visitante" retornava todas as bandeiras - dos dois lados - voltavam a tremular e, naquele momento, a saudável disputa de cânticos do velho Maracanã retornava a pleno vapor - cada lado defendendo com ardor seu pavilhão.

Para uma criança de 12 anos era difícil entender o que tudo aquilo queria dizer. Coube ao meu tio, companhia assídua naquelas tardes de domingo, me explicar o significado: tratava-se de altivez. Conceito um tanto abstrato que o meu tio me explicou da seguinte forma: - altivez é que nem beleza, dificílimo definir, mas quando você bate o olho, você identifica. Logo depois, uma explicação menos abstrata: - somos adversários, jamais inimigos. Vamos chegar e retornar do estádio em paz, fazer o nosso lanche ao final do jogo junto à torcida do Vasco sem o menor problema e voltaremos todos bem para a casa. Quem ganhar tira sarro, quem perder espera a próxima partida.

Fica a lição de altivez para os dias atuais. Diante de tanta polarização, guerras, ataques subalternos à democracia, o futebol traz exemplos de que pessoas com convicções distintas podem - e, sobretudo, devem -conviver civilizadamente.

Domingo, no Nílton Santos, haverá novo Clássico da Amizade.

O Botafogo tentando manter a liderança do campeonato brasileiro, o Vasco querendo deixar a zona de rebaixamento - e todos os ingredientes postos para um domingo de ótimo futebol no Rio de Janeiro. As colocações das equipes dizem muito pouco, pois, como filosofava o centroavante Jardel, artilheiro cruzmaltino na final do campeonato carioca de 1994, clássico é clássico e vice-versa.

Tudo pode acontecer.

A nota triste é a ausência da torcida cruzmaltina - impedida de participar da festa em função do tumulto ocorrido em São Januário, após a partida entre Vasco e Goiás. Quem sabe no returno, com o mando de campo do Vasco, o jogo não possa ser realizado no Maracanã e a velha tradição da troca de bandeiras - hoje um legado longínquo olvidado na década de 1990 - possa retornar. Mais do que o significado para o futebol, seria uma mensagem para a própria sociedade - uma lição de que opostos podem conviver pacificamente - cada qual com suas convicções.

Vamos tentar?