Juca Kfouri

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Reportagem

Ayrton Senna e a tragédia da técnica

POR GERALDO MAYRINK*

Ayrton Senna foi o primeiro herói nacional que fez carreira, fama e lenda sob a espreita onipresente da morte. Ela o colheu aos 34 anos, em maio de 1994, no acidente na pista italiana de Ímola, mas nem por isso a corrida parou. Foi noticiado que ele ainda lutava pela vida num hospital, mantendo um suspense macabro, pois sua cabeça havia sido esmigalhada numa fração de segundos. O helicóptero que o retirou da pista para socorrê-lo num hospital na verdade inaugurava um cortejo fúnebre, pois transportava um cadáver. Assim, como oficialmente o tricampeão apenas agonizava, a disputa continuou, rendendo a fortuna de sempre para os vivos a bordo de suas máquinas. Morto, Ayrton continuou a fazer dinheiro. Sua família ganhou a parte dele na disputa, mais seguros. O espetáculo não pode parar.

Com a morte à espreita, ele foi também o primeiro dos nossos ídolos a ser sacrificado no altar da modernidade tecnológica. A extensão desta perda pode ser avaliada pelo fato de que o sucesso na Fórmula 1 se deu na televisão, em altíssima velocidade, e que Senna era o sucessor natural, e por méritos, de outros campeões como Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet. Foi a Fórmula 1 que pela primeira vez afrontou a hegemonia do futebol no Brasil. Foi a televisão que botou os bólidos dentro das casas. A conjugação da grande quantidade de pilotos brasileiros com a enorme popularidade das corridas tornou a tragédia pior do que ela já era em si. Os brasileiros, até que Senna morreu, formavam o maior público de corridas do mundo (perdendo apenas para os chineses, o povo mais populoso), num país em que sobram carros oferecidos a preços extorsivos nos pátios das montadoras e a maioria da população anda a pé ou se espreme em ônibus e trens de subúrbio. A paixão nacional foi criada com vitórias, e não por causa do sonho de um dia conseguir alguma coisa naqueles inacessíveis depósitos repletos de carros caros. Nos 25 anos anteriores à morte de Senna, os pilotos brasileiros venceram 78 corridas e 8 campeonatos.

Um dos patrocinadores da Fórmula 1 fez uma pesquisa com telespectadores de São Paulo, em 1993, perguntando se eles continuariam acompanhando as corridas mesmo se os grids de largada não contassem com brasileiros. Trinta e quatro por cento responderam que não. Na disputa de 1992, o pico de audiência, quando Nigel Mansell já havia conseguido o título de campeão, foi de 24 pontos. Nos momentos em que Senna estava bem, o pico chegava a 30. Isso significa que seis milhões de brasileiros só tinham interesse em assistir à corrida por causa da performance dele. Para alguns estudiosos e especuladores, era inevitável que Senna e outros conterrâneos subissem ao pódio. São esportistas que vêm de uma cultura "contextual", ao contrário dos pilotos de origem anglo-saxã, que pertencem a uma cultura "contratual". Esta é uma teoria do historiador americano Matthew Shirts. Ele deixou sua cátedra na Universidade de Washington para morar na Vila Madalena, um bairro de classe média de São Paulo cheio de ladeiras, artistas e bares barulhentos, onde se tornou um corintiano de quatro costados. Naquela hippielândia deslocada do tempo foi se formando como observador atento do Brazil, nele incluído o mundo das corridas. "É impressionante como se gastam palavras para criticar o que não funciona no Brasil, e dificilmente se produz sequer uma explicação decente para êxitos extraordinários", escreveu Shirts.

Segundo ele, nas culturas "contratuais", como a anglo-saxônica, o comportamento é determinado por uma série de regras preestabelecidas e aceitas (o teatrólogo Harold Pinter esboçou uma caricatura disto e de seus conterrâneos: "O inglês é aquele que avança um sinal de madrugada, sem ninguém por perto, para numa caixa dos correios e manda uma carta ao departamento de trânsito, denunciando a si mesmo"). Nas culturais "contextuais", como a brasileira, o comportamento é determinado pelas contingências de cada situação. Diante de uma estrada ou rua vazias, o motorista para, olha e, se não vê ninguém, segue em frente. Por isso os pilotos europeus são levados pelas máquinas (e o público torce pelas suas escuderias, Ferrari, Lotus, McLaren) enquanto os brasileiros procuram o que há de não-tecnológico nas corridas — as surpresas surgidas em cada situação nova (quer dizer, o "contexto"), o caráter sobre-humano da velocidade para só então imprimir uma marca pessoal. O público brasileiro aplaude nomes, carregando no acento final — Ayrtón, Emersón, Nelsón e não as marcas que pilotam. Eles se viram, não importa que carros guiem. Assim, não há tecnologia, por mais de ponta que seja, que resista a um dos mais duradouros mitos brasileiros, o do jeitinho.

Acrescente-se a este um outro mito, o da preguiça verde-anil, e o terreno para a ascensão e glória de personagens da raça de Senna estará aplainado. O lazer do brasileiro é mais ócio que outra coisa, muito diferente do praticado por americanos e europeus, que partem em alegres excursões organizadas ("contratuais", talvez) para aproveitar um feriado junto à natureza, comendo tortas de maçã e bebendo sucos, todos cantando em coro. Um programão que seria rejeitado por aqui. O lazer brasileiro é mais rude, concentra-se na tela de TV, que aparece sob medida nesta história. Na tela desfilam não só o que há de mais moderno sobre rodas, como também o ancestral fascínio pela luta da vida contra a morte.

Nessa arena, diante do horror de milhões de espectadores, Ayrton Senna cumpriu exemplarmente seu destino de ídolo. Morreu em combate, durante um espetáculo, num privilégio trágico que só contempla os heróis.

https://twitter.com/GeraldoMayrink/status/1785269408840999262

*Geraldo Mayrink foi um dos grandes jornalistas deste país.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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