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Fábio Seixas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Marmelada da Áustria, há 20 anos, enterrou a inocência da Fórmula 1

Colunista do UOL

12/05/2022 04h00

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"Uma atitude antiesportiva da Ferrari combinada à subserviência de Rubens Barrichello transformou 12 de maio de 2002 em um dia de vergonha para a F1. Primeiro colocado nos treinos livres de sexta, pole position no sábado, líder do GP da Áustria por 69 das 71 voltas, o brasileiro acatou uma ordem da escuderia e, a 10 m da linha de chegada, deixou Michael Schumacher passar. Pela primeira vez em 52 anos de história da F1, um pódio foi vaiado. Sem graça, o tetracampeão mundial puxou Barrichello para o degrau mais alto. Com os ferraristas juntos e visivelmente embaraçados, Zeltweg acompanhou o hino alemão."

Assim, em tom indignado, um certo Fábio Seixas escreveu na Folha de S.Paulo sobre o GP da Áustria de 2002. A maior marmelada da história da F1 completa 20 anos nesta quinta-feira, 12 de maio. Analisada com o distanciamento que só o tempo traz, e com o precedente que criou, é mais fácil de engolir.

Foi o dia do "hoje não, hoje sim" do Cléber Machado. Foi o domingo do único pódio sob vaias que a categoria já viu. Foi uma corrida inesquecível para quem assistiu pela TV e para este blogueiro, que estava lá em Zeltweg como repórter da Folha e da Rádio Bandeirantes.

A F1 vivia o auge da era Schumacher. Dois anos antes, o alemão havia encerrado o jejum de títulos da Ferrari, que durou 20 temporadas. Mais do que um piloto genial, ele era o centro da mudança: levou para Maranello nomes-chave dos seus dois títulos na Benetton, como os engenheiros Ross Brawn e Rory Byrne, transformando a estrutura da escuderia.

Schumacher, em suma, mandava na Ferrari. E foi nesse ambiente que Barrichello desembarcou em 2000, carregado de esperança e ingenuidade. "Não vou ser o segundo piloto. Serei o 1B", disse numa concorrida entrevista coletiva em São Paulo, dias após o anúncio oficial da equipe.

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Rubens Barrichello e Michael Schumacher na apresentação da Ferrari em 2000
Imagem: Ferrari

Alemão e brasileiro dividiram os boxes por seis temporadas. Não se tornaram amigos, mas também não se detestavam. Já no primeiro ano, Barrichello entendeu como o jogo era jogado. E aceitou, tanto que assinou renovações de contrato. Seu maior problema, de fato, era se equilibrar entre a realidade interna e o discurso que fazia para o público brasileiro a cada GP.

(Nada como o passar dos anos. Décadas depois, entendo melhor sua irritação com parte da imprensa, eu incluído, quando questionado sobre as discrepâncias entre o que prometia e o que acontecia. Por outro lado, foi uma armadilha que armou para si próprio, na pressão de substituir o insubstituível.)

O episódio de 2002 não foi nem sequer o primeiro em que Barrichello precisou obedecer a equipe e ajudar o companheiro. Em 2000, no Canadá, foi orientado a "proteger" Schumacher, apesar estar mais rápido na pista, em condições de ultrapassá-lo. "O Michael é o presente, eu sou o futuro da Ferrari", disse, na ocasião. E em 2001, na mesma Zeltweg, cedeu a segunda posição. "Naquele dia, verbalmente me falaram que se a luta fosse pelo primeiro [lugar], não aconteceria", disse, anos depois, numa participação no extinto Arena SporTV.

Aconteceu. E justamente num domingo que parecia preparado para uma sambadinha no pódio.

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Michael Schumacher e Rubens Barrichello no pódio do GP da Áustria de 2002
Imagem: Divulgação

Na quinta-feira, a Ferrari anunciou a renovação do contrato de Barrichello por mais dois anos, até o fim de 2004. Na sexta, ele foi o mais rápido no primeiro treino livre. No sábado, cravou sua quinta pole na carreira, a terceira pela Ferrari, a primeira com pista seca. Domingo era Dia das Mães, o que em se tratando de Barrichello incluiu promessas de vitória e de homenagem.

Mas o fantasma da ordem de equipe rondava. "O brasileiro impôs a maior lavada de um companheiro de Ferrari em cima de Schumacher: foi 0s622 mais rápido que o tetracampeão. E, o mais importante, conseguiu colocar um piloto adversário [Ralf Schumacher] entre ele e o líder do campeonato. Evita, assim, qualquer possibilidade de a Ferrari pedir para ele 'aliviar' o ritmo na largada", escrevi no relato da classificação que estampou a Folha de domingo.

Rondava por quê? Aquela era só a sexta etapa do Mundial, e Schumacher sobrava no campeonato com quatro vitórias. Somava 44 pontos contra 23 de Montoya. Até os tijolinhos vermelhos da fábrica de Maranello sabiam que o alemão dispararia para o título: fechou a fatura com seis GPs de antecedência.

Rondava porque Schumacher mandava, porque os chefes ferraristas não tinham lá muito escrúpulos e porque Barrichello fazia um início de campeonato pífio até então: só havia pontuado em uma das cinco etapas e era apenas o sexto no Mundial de Pilotos.

A corrida foi um passeio da Ferrari.

Barrichello segurou a ponta, o companheiro logo se livrou do irmão e ambos começaram a abrir vantagem para a concorrência. Na 20ª volta, o tetracampeão já tinha 30s sobre Ralf, o terceiro colocado, uma eternidade. Na 23ª, o motor Honda do BAR de Panis explodiu, e o safety car entrou. Os ferraristas aproveitaram para ir aos pits na volta seguinte, e Schumacher perdeu novamente a posição para o caçula, que se manteve na pista.

A relargada veio na 28ª volta, mas Heidfeld atravessou a pista e bateu em Sato: novo safety car. Quando a disputa foi retomada, nove voltas depois, Barrichello manteve a vantagem, seguido por Ralf. Na 47ª, o piloto da Williams enfim parou nos boxes. Pronto: faltando 24 voltas para a bandeirada, o brasileiro passou a ter o companheiro como sombra.

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Rubens Barrichello e Michael Schumacher no GP da Áustria em 2002
Imagem: Christof Koepsel/Bongarts/Getty Images

Todos, de torcedores a jornalistas, começamos a especular sobre o que aconteceria. Na transmissão da Rádio Bandeirantes, lembro bem, tentávamos acreditar que a Ferrari não daria ordem nenhuma. A cada volta, a vitória brasileira parecia se concretizar. "No meio da corrida eu apostei que não iam fazer aquilo", disse Cléber Machado, no Arena SporTV já citado aqui.

A crença ficou mais forte quando Barrichello e Schumacher fizeram seus últimos pits, respectivamente nas voltas 61 e 62, e a Ferrari não inverteu as posições. Se fosse para mudar algo, seria ali. Ou antes. Repito: foram longas 24 voltas com os dois na ponta da corrida.

Mas, não. A inversão só aconteceria na reta final, a 10 m da bandeirada. "Foi uma briga de oito voltas. Eu fui até a penúltima curva decidido a não fazer", contou o brasileiro depois.

A troca começou a ficar mais clara na última volta, com Schumacher encostando cada vez mais. Eu estava no pitlane e, com a tensão tomando conta do autódromo, fui para a mureta em vez de me dirigir para entrevistar Jean Todt ou Brawn, como de hábito. Vi, diante dos meus olhos, Barrichello reduzindo a velocidade e Schumacher fazendo a ultrapassagem. Vencendo.

O sentimento naquele instante foi de que algo havia quebrado. O esporte. Vivíamos daquilo, viajávamos para todas as corridas, contávamos aquelas histórias o ano todo... Pra quê? Era tudo ensaiado, combinado, manipulado? E o velho lema de "que vença o melhor"?

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Michael Schumacher e Rubens Barrichello no pódio de Zeltweg, há 20 anos
Imagem: Reprodução

As cenas seguintes foram históricas e patéticas. A torcida vaiando, Schumacher colocando Barrichello no topo do pódio e lhe entregando seu troféu, os rostos constrangidos. Na sala de imprensa, o clima foi pesado. A entrevista acabou quando um colega sueco perguntou: "Se a F1 se trata de um esporte de equipes, por que há um Mundial de Pilotos?" Barrichello pegou o microfone, mas nada falou. Levantou-se e foi embora. Schumacher seguiu o companheiro. Juan Pablo Montoya, terceiro colocado, foi irônico: "Graças a Deus não sou piloto da Ferrari."

Vinte anos depois, o que mais choca é a maneira como tudo aconteceu: a manobra nos últimos metros. A ordem em si parece até natural: sim, o Mundial ainda estava no começo, mas já havia um abismo entre os dois na tabela.

De lá pra cá, muitas outras vezes muitas outras equipes mandaram muitos outros pilotos inverterem posições. Nunca nos chocamos tanto, não nos chocamos mais. Talvez por nunca ter sido tão acintoso. Mas certamente por termos vivido Zeltweg, por estarmos calejados.

Naquele domingo de 2002, há 20 anos, perdemos a inocência.