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Fábio Seixas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ninguém está confortável em Jeddah, mas o show vai continuar

Os chefes da Haas, Guenther Steiner (esq.), e da AlphaTauri, Franz Tost, com o presidente da FIA, Mohammed Ben Sulayem - ANDREJ ISAKOVIC/AFP
Os chefes da Haas, Guenther Steiner (esq.), e da AlphaTauri, Franz Tost, com o presidente da FIA, Mohammed Ben Sulayem Imagem: ANDREJ ISAKOVIC/AFP

Colunista do UOL

26/03/2022 08h52

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"Ontem foi um dia difícil para a F1, tenso para os pilotos. Talvez seja complicado compreender se você nunca pilotou nesta pista tão rápida e desafiadora de Jeddah, mas vendo a fumaça do incidente foi difícil manter o foco e deixar de lado preocupações humanas que surgem naturalmente."

O parágrafo acima é parte da declaração conjunta emitida pelos pilotos neste sábado, horas antes do reinício das atividades para o GP da Arábia Saudita.

Está num comunicado da GPDA, a associação que os reúne, e postado nas redes por Wurz, presidente do grupo e que não está em Jeddah.

"Opiniões diferentes foram divididas e discutidas. Tendo ouvido não apenas o comando da F1 mas também ministros do governo saudita que explicaram que as medidas de segurança foram elevadas ao máximo, a conclusão foi que iremos treinar e classificar hoje e correr amanhã. Esperamos que o GP da Arábia Saudita de 2022 seja lembrado como uma grande corrida e não pelo incidente de ontem", termina o comunicado.

A nota passa algumas impressões.

A primeira, óbvia, de medo de correr a 12 km de um lugar que foi alvo de ataques de drones e mísseis balísticos. São as "preocupações humanas que surgem naturalmente".

Passa ainda a ideia de divergências dentro do grupo. Graças ao linguarudo Marko, por exemplo, sabemos que Verstappen era a favor de correr, enquanto seu companheiro se mandaria dali rápido, se pudesse. "Pérez está mais assustado, mas ele vive na Cidade do México, onde também não há muita segurança", disse o austríaco, uma comparação descabida. mais uma declaração estapafúrdia para sua coleção.

Por fim, está claro que o comunicado da GPDA não fala tudo.

Foram mais de três horas de reunião. Entra e sai na sala. Movimento frenético. Houve um momento em que os pilotos ficaram sozinhos. Chamaram, então, Domenicali, o homem forte da Liberty. Ben Sulayem, árabe e presidente da FIA, também participou das conversas. Em outro ato, alguns chefes de equipes deixaram a sala e foram para a torre de controle. Russell, o único diretor da GPDA no circuito _o outro é Vettel, afastado por Covid_ também foi para lá.

Muito mais aconteceu do que discussões de opiniões e explicações de ministros...

A BBC deixou no ar que as equipes poderiam ter problemas em deixar Jeddah se decidissem cancelar a corrida. Será? Estamos falando de um regime ditatorial que atropela os direitos humanos diariamente. Não duvido que algo assim tenha sido insinuado. Mas daí a fazer...

Nos últimos anos, países como Arábia Saudita, Bahrein e Qatar passaram a patrocinar e atrair grandes eventos esportivos com um objetivo em mente: limpar a barra com o resto do mundo, passar a imagem de nações modernas e pujantes. Fazer a F1 de refém, aos olhos de todo o planeta, não me parece muito coerente com essa estratégia.

É mais plausível pensar em negócios, em pressões financeiras e políticas.

jeda - Reprodução/Twitter - Reprodução/Twitter
George Russell durante o primeiro treino livre em Jeddah, com a fumaça preta do incêndio ao fundo
Imagem: Reprodução/Twitter

Como escrevi ontem, o contrato da F1 com a Aramco, estatal saudita do petróleo, foi assinado em 2020, tem duração de 10 anos e envolve US$ 450 milhões. Outro ponto: a F1 hoje é da Liberty, um grupo dos EUA, aliado do regime saudita há décadas, país que em troca de petróleo fecha os olhos para o que acontece por ali. Por fim, o emirático Ben Sulayem, empossado na FIA em dezembro, tem fortes ligações com a família real de Dubai. Os Emirados Árabes são aliados da Arábia Saudita nas ofensivas contra o Iêmen _em janeiro, os rebeldes Houthis, os mesmos que atacaram Jeddah ontem, lançaram mísseis contra Abu Dhabi.

Para não deixar passar em branco, FIA e Liberty também se pronunciaram neste sábado. A nota é insossa e vaga. Diz que o governo saudita deu "detalhadas garantias" de que o evento será seguro e que todas as partes manterão um "diálogo aberto" no fim de semana e no futuro.

Só saberemos o que realmente aconteceu quando a F1 estiver longe de Jeddah. Até lá, os assessores blindarão os pilotos e o comando da categoria fingirá que está tudo normal.

Tivemos uma amostra disso no início do segundo treino livre de ontem. Da mesma forma que antigamente evitava mostrar imagens de acidentes graves, a F1 ontem decidiu fingir que nada estranho estava acontecendo. Sonegou informação. E segue sonegando, com um excesso de filtros que não adota quando um problema qualquer acomete outro GP mundo afora.

Isso que dá se aliar a ditaduras.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL