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Alicia Klein

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que o embate entre Ícaro e Leifert tem a ver com o esporte

Ícaro Silva e Tiago Leifert - Reprodução
Ícaro Silva e Tiago Leifert Imagem: Reprodução

23/12/2021 09h38

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Em tese, nada. Na prática, tudo.

Tudo porque é um reflexo da sociedade racista, classista, machista e LGBTfóbica em que vivemos. Na qual a opinião de um homem negro queer será sempre questionada de forma diferente daquela de um homem branco hétero e rico.

Ícaro não pode achar o BBB uma merda. É ofensivo. Mas um monte de gente famosa pode espinafrar Vidas Secretas 2, em que Ícaro atua, chamando até de pornochanchada. Tudo bem. Segue o jogo.

A repercussão da discussão entre ele e Tiago Leifert me fez pensar muito no que vemos na cobertura esportiva. E não só porque foi nela que Tiago começou.

Sempre que assisto a uma mesa redonda povoada apenas com homens brancos, penso: por que isso ainda é tolerado? Se partimos do princípio de que mulheres e pessoas negras são igualmente competentes (afinal, poucos vão admitir publicamente o contrário), por que não recebem espaço? Se o que vemos nem sempre é bom, podemos presumir que a mediocridade é privilégio apenas dos homens brancos?

O trecho mais pungente da carta de resposta de Ícaro a Leifert é, para mim, aquele que ilumina justamente esta diferença, nem sempre óbvia para quem nasceu do privilégio (me incluo aí), mas permanentemente rasgada na carne de quem vive o preconceito todos os dias.

"E o terceiro e mais importante ponto a ser treplicado em sua cartinha: possivelmente você nunca vai entender isso, mas para uma pessoa preta e queer estar em destaque, contratada ou empregada, ela precisa realmente ser EXCELENTE. Então não tem como você estar pagando meu salário, Tiago. Não fossem meu talento, minha história, minha trajetória, uma luta filhadaputa diária e essa cara bonita, eu acho que nem estaria vivo."

"Eu acho que nem estaria vivo." Não é que não seria famoso, não estaria na Globo, na Disney e na Netflix. Não estaria vivo. Por viver em um dos países que mais mata pretos e pessoas LGBT. Por habitar uma sociedade que não hesita em proteger os já protegidos e jogar pedra nos historicamente apedrejados.

Um lugar em que ainda tem gente que acredita em meritocracia. Se este é o seu caso, indago-lhe: se ao ligar uma tela e buscar entretenimento encontramos 10 Leiferts para cada Ícaro (se tanto), o que explica esse abismo? Ou você acredita que os Leiferts são superiores, caso em que precisa se reconhecer racista/classista/homofóbico, ou você acredita que todos estes preconceitos são estruturais e impedem a ascensão destas pessoas. Não há meio-termo, lamento.

Como mulher no esporte, sou por vezes lembrada (por homens, claro) de que não existe machismo na indústria e que as mulheres boas terão espaço naturalmente. O resto é mimimi.

Mimimi também desse povo chato que vê racismo em tudo. Não se pode mais falar nada que lá vem a patrulha politicamente correta.

Como já definiram muito bem: mimimi é a dor que dói no outro.

Ah, a arrogância de não achar racismo onde os negros veem racismo. O que nós, pessoas brancas, sabemos sobre sentir o racismo na pele? Nada, absolutamente nada. Como os homens não sabem sobre sentir a misoginia. A dupla dor de ver os opressores decidindo o que devem ou não sentir os oprimidos. Um pqp sem fim.

Talvez a alusão ao esporte tenha sido apenas uma desculpa para desabafar nesta coluna esportiva. Talvez eu esteja arrependida de usar este espaço para mais amenidades do que deveria, a fim de evitar os assuntos que me levam a ser xingada nas redes sociais. Ou processada. Talvez eu precise me lembrar de que poder escolher os assuntos certos e evitar as ofensas seja parte do meu privilégio de pessoa branca. Talvez eu não saiba o que fazer a respeito, além de ficar puta da vida.

O que definitivamente não consigo é ficar calada vendo tanta gente boa sem poder dar um passo fora da linha sob pena de perder o que foi tão duro conquistar, enquanto outras, até menos competentes, têm passe livre vitalício para esquecer a linha e viver sob suas próprias regras. Não precisam se preocupar em ser excelentes, nem mesmo decentes. Seu espaço está garantido.

Até quando?